Considerada uma das grandes feridas sociais do Brasil, a desigualdade deve voltar a crescer em razão do coronavírus. Ao dificultar a vida dos mais pobres, o cenário desafia o desenvolvimento econômico do país como um todo depois da pandemia. Para diminuir os estragos, especialistas destacam a necessidade de medidas de amparo aos mais vulneráveis durante a crise.
Uma das formas de medir o espaço que separa as camadas mais ricas das mais desfavorecidas é o Índice de Gini, que varia em uma escala de zero a um. Quando o indicador sobe, sinaliza aumento na desigualdade da renda do trabalho. Quando baixa, mostra que a diferença entre os ganhos das duas pontas da sociedade ficou menor.
No Brasil, o índice caiu no quarto trimestre do ano passado depois de 18 altas consecutivas, aponta o centro de estudos FGV Social, da Fundação Getulio Vargas. Isso significa que a última recessão enfrentada pelo país fez a desigualdade subir desde o início de 2015, até finalmente voltar a cair no fim do ano passado.
Na ocasião, o Índice de Gini atingiu a marca de 0,6276, recuo de 0,12% frente ao quarto trimestre de 2018. A questão é que a nova crise gerada pelo coronavírus provoca resultados indigestos como o aumento do desemprego. Com a perda de renda em classes mais vulneráveis, nova piora aparece no cenário, diz o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social.
– A tendência é de que a desigualdade volte a subir com a parada ocorrida na economia – frisa o pesquisador, referência na análise sobre distribuição de renda no país.
Um dos motivos que explicam a projeção mais pessimista é o elevado nível de informalidade no Brasil. Com o distanciamento social imposto pela covid-19, trabalhadores sem carteira assinada ou CNPJ viram o faturamento desabar. É o caso, por exemplo, de vendedores ambulantes ou motoristas de aplicativos de transporte.
– Com alto nível de informalidade, países em desenvolvimento tendem a ampliar a desigualdade social. Muitos informais têm o ganha-pão no dia a dia. Precisam estar na rua para conseguir renda. Com o distanciamento, esse público sente mais – pontua o economista Felipe Garcia, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
O número de informais passou a crescer com a recessão de 2015 e 2016, alcançando no Rio Grande do Sul a marca de 1,9 milhão de trabalhadores no quarto trimestre de 2019, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No país, o dado mais recente corresponde ao período de janeiro a março. No intervalo, o Brasil tinha 36,8 milhões de profissionais sem registro formal. O grupo respondia por 39,9% do mercado de trabalho nacional à época.
– A informalidade é uma das grandes chagas da desigualdade. É causa e consequência desse problema. Trabalhadores autônomos estão sendo muito penalizados pela pandemia – observa o economista Ely José de Mattos, professor da Escola de Negócios da PUCRS.
Na pandemia, o governo Bolsonaro fechou acordo com o Congresso e anunciou o auxílio emergencial de R$ 600, por três meses, para informais. Diante da crise, Neri ressalta a importância da transferência de renda para a população. O economista ainda alerta sobre postura "ambígua" do governo:
– Ao aumentar os gastos fiscais, o governo quer viabilizar a permanência das pessoas em casa, só que o presidente fala em ir para a rua. É como se um carro fosse acelerado e freado ao mesmo tempo.
Nas últimas semanas, o auxílio de R$ 600 gerou filas em agências da Caixa no país. Para Garcia, que foi secretário adjunto de Política Econômica do Ministério da Economia em 2019, a dificuldade para fazer a ajuda chegar a quem mais precisa reflete erros históricos:
– Temos projetos sociais que não se conversam, foram construídos a partir de demandas momentâneas ao longo do tempo. Tanto é que o governo precisou correr para colocar porção de gente para dentro do auxílio de R$ 600.
Reflexos no desenvolvimento
O aumento da desigualdade social é um dos fatores que podem comprometer o desenvolvimento de um país. No caso brasileiro, além de prejudicar os mais pobres, tende a abalar a produtividade da economia, sublinha Ely José de Mattos, professor da Escola de Negócios da PUCRS:
– A desigualdade atinge o capital humano. A consequência é a baixa produtividade da economia. Por exemplo, poderíamos espalhar fábricas de chips pelo Brasil, mas não teríamos profissionais capacitados para preencher todas as vagas.
Em 2019, o indicador de produtividade do trabalho no Brasil caiu 1% na comparação com 2018, aponta pesquisa da Fundação Getulio Vargas. Isso quer dizer que a capacidade do país de elaborar bens e serviços, em um mesmo recorte de tempo, registrou baixa.
Para Ely, o combate à desigualdade começa com a transferência de renda para a população. Na opinião do economista, o auxílio de R$ 600 a trabalhadores informais é uma "boa política", mas precisaria ser estendido para mais de três meses.
Professor da Universidade Federal de Pelotas, Felipe Garcia diz que a crise do coronavírus deixou à mostra a penúria fiscal vivida pelo país. As restrições nas contas públicas dificultam medidas de auxílio, completa:
– A relevância do compromisso com o quadro fiscal aparece em períodos como este. Agora é hora de dar dinheiro aos mais pobres e crédito para as empresas. Depois da crise, isso tem de ser revisto.