Por André Salata
Sociólogo, professor da PUCRS, pesquisador visitante na Cardiff University e membro do Observatório da Dívida Social na América Latina (RedODSAL)
Nos últimos anos, a preocupação com o crescimento das desigualdades novamente ganhou força em muitos países ocidentais. No Brasil, desde a Constituição de 1988 o Estado assumiu explicitamente o combate às desigualdades como uma de suas metas. E os sucessivos governos que se alternaram entre 1995 e 2016 contribuíram ativamente, cada um a sua maneira, com maior ou menor ênfase, para esse objetivo.
Curiosamente, entretanto, justo no momento em que, em nível global, os olhares voltam-se mais atentamente para a questão das desigualdades e seus efeitos deletérios, parte da sociedade brasileira parece disposta a romper o acordo firmado em torno do tema. Talvez como prenúncio, a “Ponte para o Futuro”, espécie de plano de governo do ex-presidente Michel Temer, já não mencionava, nem uma vez, a palavra “desigualdade”. Desde então, tem aparecido com maior frequência no debate público a conhecida ideia de que a desigualdade não seria um problema digno de ser enfrentado, e que nossos esforços deveriam se concentrar só em elevar o padrão de vida da parcela mais vulnerável da população. Combater a pobreza, mas não tocar nas desigualdades.
Um primeiro ponto a ser questionado nesse tipo de argumentação é a separação entre o enfrentamento à pobreza e às desigualdades. Como se sabe, a taxa de pobreza de um país pode ser explicada por dois fatores, sendo o volume de recursos o primeiro e a distribuição desses recursos – leia-se, a desigualdade – o segundo. Países podem ter um elevado número de pessoas abaixo da linha de pobreza porque possuem poucos recursos – é o caso de muitas nações do continente africano –, e também porque distribuem mal os recursos que têm. No caso do Brasil, estudos já demonstraram que a má distribuição de recursos é o maior responsável pela pobreza no país, e que a melhoria da distribuição de renda, aliada a crescimento econômico, seria o caminho melhor para combatê-la.
Com efeito, a redução das desigualdades deveria fazer parte de qualquer plano eficiente de melhoria do padrão de vida na população mais vulnerável. E estimativas de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que ela foi responsável por cerca de metade da significativa redução da pobreza observada no início deste século no país.
É também muitas vezes sugerido que medidas visando a uma distribuição de recursos mais equânime poderiam inibir o crescimento econômico e, assim, as melhorias no padrão de vida da população. Realmente, desigualdade e eficiência parecem caminhar juntas até certo ponto, e qualquer defesa intransigente e radical da igualdade pode ter efeitos contraproducentes, como a História já demonstrou.
No entanto, inúmeros resultados de pesquisa sugerem que no Brasil, e mesmo em países muito menos desiguais que o nosso, a desigualdade impõe enormes barreiras ao uso eficiente dos recursos humanos – já que, quanto maiores as distâncias inicias, menores as chances de talentos, habilidades e esforço prevalecerem como critérios de estratificação. Por exemplo, uma análise realizada a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que, ainda em 2015, se acaso na loteria da vida você tivesse nascido nas classes inferiores, suas chances de ter entrado na universidade até os 24 anos seriam quase 10 vezes menores do que as de um jovem de classe média alta.
A partir de certo ponto, portanto, como recentemente reconhecido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – instituições acima de qualquer suspeita –, a desigualdade prejudica a utilização eficiente de capital humano e, de tal modo, interfere na capacidade de crescimento econômico sustentável e de elevação do padrão de vida da população mais pobre.
Ainda, quando a concentração de recursos nos extremos da distribuição é muito elevada, como é o caso do Brasil – onde o 1% mais rico da população detém quase um quarto da renda –, corre-se o risco de que o topo da pirâmide se torne poderoso demais, a ponto de direcionar metas, ações e gastos públicos a seu favor. Por conseguinte, uma desigualdade elevada dificulta também a adoção de políticas que poderiam vir a melhorar a situação socioeconômica da parcela mais vulnerável da população.
Conforme sustentado por Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, a desigualdade tem um preço, já que compromete as possibilidades de desenvolvimento a longo prazo. No Brasil esse preço tem sido muito alto. Talvez, se estivéssemos na Dinamarca ou na Suécia, países com coeficiente de Gini (medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini) abaixo de 0,3, o debate fosse mais pertinente. No Brasil, onde o coeficiente de Gini está atualmente em 0,54, e crescendo – quanto mais próximo de 1, menos igualitário –, a redução das desigualdades é não apenas moralmente justificável, mas social e economicamente desejável.