
Por Nilton Mullet Pereira
Professor de História na UFRGS
Uma aula de História funciona como se fosse uma contínua interrogação: como chegamos até aqui? E pensa o tempo como o pensamento, que “pensa sua própria história (passado), mas para se libertar do que ele pensa (presente) e poder, enfim, ‘pensar de outra forma’ (futuro)”, como escreveu Deleuze na obra Foucault. Nesse sentido, a cada aula de História se renova o acontecimento, repartindo sem cessar o presente em passado e futuro, como forças que “ameaçam tudo o que há”, pondo crenças e modelos dos quais nos servimos para perceber o mundo num abismo que os apresenta como contingência e acidente.
Se, por um lado, a aula de História nos mostra o profundo esquecimento, por outro nos faz lembrar como este mundo foi possível, de tal forma que a pergunta que se renova é: como pensamos do modo que pensamos hoje? Ou como foi possível esse mundo de maldades que ameaçam existências, formas de vida, práticas culturais, histórias e memórias?
É por viver esse paradoxo que precisamos de aulas de História. Esquecer o mal não faz com que esse desapareça. Precisamos de aulas de História que problematizam nossa memória coletiva e as estruturas do imaginário que produzem parte dos passados com os quais nos relacionamos, criados a partir da TV, do cinema, das redes sociais, de discursos políticos e aulas de História já ministradas.
“Como chegamos até aqui” se refere a um agora que consiste em um tempo/espaço de liberdades; de possibilidades de fala; de liberdade religiosa; de direitos humanos; de democracia; que, inclusive, tornam possível a publicação deste texto. Sem a aula de História, o esquecimento sugaria para um profundo silêncio o mal desde onde construímos o que chamamos de civilização.
Hayden White diz que “nossa vangloriada ‘civilização’ deve seus méritos e benefícios aos tipos peculiares de crueldade cometidos pelos humanos contra sua própria espécie” (O Passado Prático). Construímos uma civilização sobre estruturas do mal. Esquecer essas estruturas que nos fizeram chegar até aqui significa supor que tudo já está feito e, ainda, esquecer que, mesmo que tenhamos tido ampliação das liberdades, os espectros desse passado que criou, cultivou e deu forma e sentido ao mal e à crueldade rondam nosso cotidiano e nossos imaginários e se apresentam, vez por outra, com novas máscaras a nos seduzir e a propor novas formas de maldade.
O mal e a crueldade não deixaram de existir, ainda que nossos olhos procurem não vê-los.
Mas como chegamos até aqui?
Chegamos até aqui recobertos pelo mal. Ainda que os fragmentos que irei descrever pareçam estar num passado que passou, insisto que o mal e a crueldade não estão no passado, residem também no presente, insistem no agora e, infelizmente, ainda subsistirão em um futuro próximo e previsível. Essa interrogação típica de uma aula de História conserva uma vontade de potência para criar novas configurações, onde nem o mal e nem a crueldade sejam as estratégias que regulam as relações humanas e que produzem a riqueza sobre o sofrimento e o privilégio sobre a dor.
A liberdade religiosa que cremos ter hoje foi precedida por uma caça implacável às mulheres (também a homens), acusadas de bruxaria, levadas a morrer queimadas em fogueiras. Atos realizados em locais públicos e vistos como espetáculo; por uma proibição às religiões de matriz africana, consideradas demoníacas, fato que demonstra uma prática racista e um processo de depreciação que se mantém até hoje; pelos julgamentos no Tribunal da Santa Inquisição que perseguia pensadores, escritores, mulheres e qualquer pessoa acusada de heresia, utilizando-se de tortura como forma de extrair confissões.
A liberdade de opinião e de expressão, a democracia e os direitos humanos foram precedidas por ditaduras onde censura, tortura e morte foram comuns e aceitas pelo silêncio de boa parte das pessoas: Argentina, Chile, Uruguai, Brasil, dentre tantos outros, na América e fora dela; por um regime que constituiu uma máquina de matar, produzindo a banalização do mal, no continente que se achava o lugar da liberdade e da democracia, a Europa. Esse regime, o Nazifascismo, matou milhares com uma racionalização da maldade, fazendo seres humanos vítimas de um Estado que praticou a morte como política. O mal e a crueldade vitimaram a diferença. Tanto o conceito quanto as existências: judeus, negros, ciganos, testemunhas de jeová, gays... Uma lista que nunca temos como completar.
A liberdade de existir como pessoas, hoje ameaçada, foi precedida por um processo gigantesco de desumanização, sustentáculo da produção intensa e ilimitada de riquezas no continente europeu e pelo capitalismo global; por genocídios na América e na África. Genocídio de povos indígenas inteiros: línguas, culturas, cosmologias, metafísicas, epistemologias – quanto perdemos de potencialidades para produzir a vida no planeta?; pelo genocídio do povo Hereró, na Namíbia, em pleno século 20, apenas mais um exemplo; por incontáveis séculos de escravização de pessoas da África. No Brasil, foram 300 anos de escravização (desumanização) e mais 131 anos de preconceito e discriminação, construindo um conjunto de privilégios que se mantém, dando forma a uma política de branquitude. Perdas incontáveis de futuro, de vida.
Criamos, sim, uma civilização sobre as estruturas do mal.
Deixaremos de contar essa história? Esqueceremos que o Brasil não é uma democracia racial? Ou admitiremos que o presente não é só resultado de um passado cruel, mas pode ser, ainda que um ambiente de liberdades, lugar onde a maldade e o ódio são atualidades de um passado que não passa?
Mas uma aula de História também mostra que chegamos até aqui porque inventamos o amor, a amizade e mil formas de relações produtivas e igualitárias. Por que tivemos Spartacus na Roma antiga; porque tivemos Aqualtune, a luz de Palmares; porque temos Davi Kopenawa, uma das vozes do povo Yanomami; porque tivemos Kate Sheppard e o sufrágio das mulheres.
Também porque tivemos muitos dos quais não sabemos os nomes, mas criaram formas de existir e resistir, continuando a trazer alegria ao mundo, num jogo paradoxal, que não esquece do sofrimento, mas que não deixa de lembrar de práticas amorosas e de afetos para, mesmo nas mais difíceis condições, fazer da vida uma “obra de arte” e nos permitir imaginar futuros onde bem e mal sejam palavras desconhecidas.