
Por Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr.
Presidente da Appoa, doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, autor de “Perversões: o Desejo do Analista em Questão” (Appris, 2019)
Refletir sobre o espírito do nosso tempo é um desafio para todo psicanalista que se interroga sobre os valores postos em causa na atualidade. Diante de tamanha complexidade é fundamental interrogar o modelo disruptivo da nova lógica de mercado, a ascensão do discurso moralista e suas consequências na recusa às diferenças.
O modelo disruptivo na esteira da voracidade capitalista produz efeitos que vão desde as competições selvagens por emprego, potencializadas pela ascensão da gestão tecnológica do trabalho, até a propagação de imperativos de sucessos que cobram melhorias contínuas de performances. No cenário da escravidão contemporânea, metas, resultados, resiliência e meritocracia tornaram-se palavras de ordem. Estamos imersos num mercado que requer lucro a qualquer custo, no qual a produção de números se impõe exigindo que todos transformem-se numa espécie de empresários de si mesmos.
Testemunhamos novas formas de desintegração do laço social, pois o risco de transformar tudo em mercadoria nos espreita, colocando em cena a produção de modelos em série em detrimento das singularidades. Como consequências, temos desde as obediências dóceis e segregações, materializadas em expressões de desamparo e depressão, até a fragilização do sentido de viver juntos na diferença e construir políticas solidárias de convivência.
As pessoas demandam análise, hoje, como tentativa de não sucumbir à massa. Para além do mal-estar dos sintomas de cada indivíduo, analisar-se é uma forma de reconhecer tanto o próprio estilo quanto uma posição singular em relação ao saber. Por isso, a psicanálise é antissegregativa, pois o psicanalista labora para escutar a singularidade do desejo de cada sujeito, assim como para abrir algumas frestas para pensar na sua responsabilidade com o outro.
A ascensão do discurso moralista e a recusa às diferenças coloca em cena a proliferação de uma lógica perversa capaz de destituir o outro de sua condição de sujeito. Cada vez mais constatamos esse fenômeno com as declarações violentas contra os diretos humanos, as sucessivas incitações de repúdio às minorias e as vergonhosas homenagens a torturadores, sem falar na indiferença com quem está abaixo da linha da miséria.
Em uma sociedade perversa, o obsceno invade a cena pública, e tudo pode ser dito sem consequências, inclusive a propagação sistemática de mentiras e difamações. O perverso é um moralista por excelência. De um lado, ele se apresenta como guardião dos bons costumes e do bem para todos; de outro, busca chocar, escandalizar, desmentir e propagar o ódio com uma racionalidade eminentemente paranoica. Geralmente fabrica um vilão do qual é preciso se defender, depois, ataca o suposto algoz como se ele fosse uma espécie de encarnação do mal.
A retórica moralista não produz abertura ao diálogo, pelo contrário, são intrínsecas a sua natureza as posições totalitárias. Defensores da hierarquia recrutam adeptos para marchar em suas trincheiras de forma submissa. Nesse ímpeto de justiça, defendem um ideal social heteronormativo, excludente e monocromático, evidenciando o lodo de “perversão puritana” que eclodiu em nosso país nos últimos anos.
O pensamento crítico não faz parte dessa lógica incapaz de interrogar às próprias certezas. Avessos à coletividade e à democratização dos saberes, os moralistas são adeptos da seletividade, pois a segregação de classes é o fundamento de seu projeto político.
Colocar em discussão os efeitos nefastos dos moralistas de plantão pode ser uma forma de lidar com a perversidade que habita em nós mesmos, libertando-nos de preconceitos na esperança de transpor uma passividade complacente. Em tempos de radicalidade, na qual alguns se autointitulam os “homens de bem”, erguer muros é tentador. Além do sujeito se proteger de possíveis ameaças, ele pode acreditar na perigosa ilusão de pertencer ao lado mais digno. Portanto, há um grande desafio em encontrar brechas nesses paredões de intolerâncias e não ser engolfado pela impostura de soterrar diferenças.
O congresso
O Congresso Internacional Appoa Psicanálise e o Espírito do Nosso Tempo será realizado entre sexta-feira (8) e o domingo (10) na Associação Leopoldina Juvenil (Rua Marques do Herval, 280), em Porto Alegre. Entre os conferencistas estão os franceses Roland Chemama e Marc Darmon e os brasileiros Maria Rita Kehl e Donaldo Schüler. Haverá apresentações de 52 trabalhos de psicanalistas e profissionais de outras áreas. Informações em appoa.org.br.