
Por Jorge Barcellos
Doutor em Educação pela UFRGS
Como pensar o Estado após o assassinato de Ágatha Félix? Morta com um tiro nas costas, é o exemplo cruel da perversidade de Estado. Perversidade é diferente de maldade: maldoso é um cruel, alguém que “caiu no mal”, mas ser perverso é ser pior “o ser perverso é um maldoso particularmente retorcido”, diz o filósofo Patrick Vignoles.
A perversidade de Estado é uma disposição profunda, é a causa da maldade. Sabíamos que governos neoliberais são perversos no campo econômico, é só olhar suas realizações: retirada de direitos, fim da aposentadoria e redução de verbas para áreas vitais. Descobrimos agora seus efeitos na política em atos de maldade particular, anormal, que indicam que a disposição de nossos governantes para a perversão é inata, e por isso, angustiante. É essa disposição natural, esse instinto dos governantes para fazer o mal é que leva suas forças policiais a agir mal e fazer vítimas inocentes.
O governo é responsável pela morte de Ágatha Félix, mas a sociedade é responsável por eleger governantes perversos. Fazer o mal é a doença dos governantes neoliberais, disposição patológica e irresponsável, e as autoridades devem ser responsabilizadas, pelo direito e pela moral, pelo mal que cometeram. Produtos de diretrizes de assassinato intencionais, seus efeitos implicam em responsabilização, pois não é possível viver num governo com vontade deliberada de aniquilação.
O Estado perverso destrói e se destrói e agora mata crianças. Agatha não foi a primeira e não será a última. Por isso é preciso parar o comportamento perverso do Estado, que produz desnaturalização do homem e desorganização da cultura. Fazemos isso nas eleições. A perversidade do Estado é forma do ódio do homem incapaz de reconhecer que odeia inconscientemente crianças pobres e negras, esse é seu sadismo. O assassinato de Ágatha deveria ser visto pelo que é, como crime contra a humanidade, crime contra a essência humana, pois a política de combate à violência adotada pelo Rio de Janeiro antecipa o nosso destino, o do genocídio, que aniquilará centenas de mártires indefesos, crime que não podemos suportar porque perverso, porque baseado numa inversão, a da admiração e amor que devemos ter pelas crianças.
Mais: a morte de Agatha revela uma genealogia, uma técnica e uma tática. Primeiro, sua morte coloca em crise a noção defendida pelo Estado de guerra ao crime. Se crianças morrem, a estratégia adotada só pode ser covarde.
É preciso recuar. Segundo, evidencia a adoção de uma técnica discursiva, um trabalho discursivo baseado no conceito de “dano colateral”: a ideia de que, numa guerra, há vítimas. A ideia de “guerra com riscos” é indefensável, alquimia grosseira que recoloca o direito do Estado de matar, atualização do poder soberano que diz que o Estado se dá o direito do “assassinato seletivo” e, com ele, violar todo e qualquer princípio de direito. Técnica de Estado, tática discursiva.
O que caracteriza essa visão é que ela termina com a distinção entre zona hostil e zona segura. Na política neoliberal, as comunidades periféricas são zona hostil generalizada, deixadas ao desamparo das políticas sociais e o governo não faz esforço algum para ocultar que está tratando os cidadãos pobres como material perigoso. O ícone disso tudo é a imagem do governador do Rio de Janeiro do alto da cidade em um helicóptero, imagem atualizada da representação do Olho de Deus, a famosa gravura publicada em 1551 onde, do alto, um olho abraça com o seu olhar o mundo inteiro, ficção que reforça o princípio do olhar como vigília permanente. Tolice: não é mais necessário isso, basta ver do alto nossas favelas e sair atirando.
O Oriente é aqui: o que sentimos não é exatamente dor, é petrificação, o terror em massa, o luto e o isolamento psíquico. Se aceitamos a morte de Ágatha, aceitaremos a tese do dano colateral, aceitaremos como natural a desigualdade de direitos e oportunidades pré-existentes e aceitaremos a distribuição desigual dos custos dessa política de combate à violência. Sua perversão está na relação entre pobreza e se tornar vítima, que é inaceitável: os riscos não são neutros e não são iguais e nem seus efeitos, aleatórios. A morte de Ágatha mostra a convergência entre as vítimas inocentes e a escala de desigualdade, de que os pobres são os candidatos privilegiados aos danos colaterais – “Os dados do jogo são viciados”, diz o sociólogo Zygmund Bauman.