Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Faça a América grande de novo. Há, nas frases de impacto dos presidentes do Brasil e dos Estados Unidos, uma premissa: a sociedade atual é decadente e precisa de ajustes. A estratégia de argumentação é típica de políticos que atuam em meio a guerras culturais: evidencia quando temas morais, e não políticos, econômicos ou sociais, passam a nortear os governantes, argumenta o filósofo Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Filosofia pela mesma instituição. Pesquisador da relação entre tecnologia e democracia, políticas sociais, movimentos sociais e privacidade, o cientista criou, em 2016, o Monitor do Debate Político no Meio Digital, para acompanhar as publicações de brasileiros em redes sociais. Nesta entrevista, analisa os motivos que explicam a polarização brasileira.
O senhor já declarou que o Brasil vive hoje uma guerra cultural. Esse termo surgiu nos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial. O que é?
O conceito de “guerra cultural” surgiu na sociologia norte-americana para descrever a centralidade de temas morais na pauta política. São assuntos que sempre estiveram na agenda, mas de maneira periférica, como o aborto, o porte de armas e o casamento gay. Eles passaram a definir a organização do espectro político até marcarem a cisão entre esquerda e direita. Por que isso aconteceu? Dentre as explicações, a que me parece mais convincente é a de Andrew Hartman (historiador norte-americano e professor da Universidade de Illinois): guerras culturais são uma reação do campo conservador às mudanças dos costumes promovidas pelo movimento negro, LGBT+ e feminista. O movimento feminista, que no começo queria o sufrágio universal, lutou para que homens e mulheres estivessem em posição de igualdade. O movimento negro quis que negros e brancos convivessem em espaços comuns. E o movimento LGBT+ quis que héteros e homossexuais se respeitassem. Essas mudanças em relacionamentos interpessoais começaram a ser incorporadas pela sociedade. No início dos anos 1990, os conservadores passaram a se ver como uma “minoria” e, para evitar um “apocalipse imoral”, como diziam, se organizaram para lutar contra essas mudanças. Essa reação do campo conservador recebe o nome de “guerras culturais”.
E como isso se manifesta no Brasil?
No caso brasileiro, começou na campanha da Igreja Católica e, depois, dos evangélicos, contra a chamada “ideologia de gênero”, que é uma leitura católica do feminismo. A ideia é de que a agenda feminista destruiria a família e poderia gerar até uma crise de natalidade no planeta. Contra esse suposto projeto feminista, setores conservadores católicos se organizaram, primeiro no Peru e, após a publicação de vários livros, em outros países. Isso estruturou o debate do conservadorismo brasileiro e encontrou, depois, o Escola Sem Partido. É, mais uma vez, a reação conservadora às transformações pelas quais a sociedade passou. Isso se tornou o centro da agenda política até o país eleger um presidente praticamente com essas pautas.
Como a guerra cultural se expressa nas redes sociais?
Primeiro, houve a maturação de um debate que ocorria no campo religioso. Depois, a elevação da participação cívica após os protestos de junho de 2013, que trouxeram uma ruptura no país. Em seguida, uma ampliação dos usos de mídia social, onde novos temas são incorporados aos debates com muito mais rapidez. A sociedade está extremamente mobilizada, e esses temas morais entraram na onda de ativismo. O contexto facilitou a rápida emergência das guerras culturais, que ganharam uma centralidade maior e mais rápida no Brasil do que possuem nos Estados Unidos. Lá, o assunto vem sendo discutido há 30 anos. No Brasil, esse processo explodiu de uma maneira mais rápida e, em consequência disso, tendo efeitos muito mais intensos. Quando um tema ganha a sociedade, pessoas-chave que organizam esse debate acabam ganhando projeção. Bolsonaro é um soldado das guerras culturais.
Por quê?
O tema dele é o combate à criminalidade, a luta contra a “ideologia de gênero”, as críticas ao casamento gay, o combate à corrupção e o antipetismo. Havia uma crítica antissistema, na qual o PT era apresentado como caso máximo de degeneração do sistema. Sua candidatura à Presidência que não falou de política social, de economia, de educação ou de saúde. O debate se deu inteiramente em torno de temas morais. E foi uma campanha puramente digital. Foi assim que ele saiu vencedor.
Antes, direita e esquerda se diferenciavam na política econômica e social. Mas essas diferenças se tornaram muito pequenas. A capacidade de fazer algo de diferente em relação a seu antagonista político se tornou pequena. Então, o espectro político passou a se hiperdiferenciar em temas morais. No assunto moral, de apelo emocional forte, soluções intermediárias não existem.
A polarização é pressuposto para a existência das guerras culturais?
As guerras culturais dividem a sociedade e emergem no vácuo de diferenciação do sistema político. Antes, direita e esquerda se diferenciavam na política econômica e social. A direita defendia menos intervenção do Estado, e a esquerda, mais intervenção no Estado. Esse debate foi estabelecido no século 20, mas as diferenças se tornaram muito pequenas. Isso ocorreu a partir dos anos 1970, quando, devido à crise fiscal, começou a sobrar pouco dinheiro do Estado para políticas públicas, porque o dinheiro já estava todo marcado – na Previdência, por exemplo. A capacidade de fazer algo de diferente em relação a seu antagonista político, então, se tornou pequena. Enquanto isso, outro movimento que corre em paralelo, que é o avanço das transformações na sociedade e a reação dos conservadores, passa a ser tragado para dentro do sistema político. Como o espectro político não se diferenciou mais em políticas, passou a se hiperdiferenciar em temas morais. Os temas morais, hoje, são o motor da política. No assunto moral, de apelo emocional forte, soluções intermediárias não existem, porque isso é o mesmo que ter perdido. No debate polarizado, o aborto é direito da mulher sobre o corpo ou assassinato de bebês.
Há muitos políticos que acentuam a polarização. Que estratégia é essa? E como alcançar o diálogo?
Polarização é um antagonismo político tão grande que gera intolerância com quem tem identidade política adversária e um alinhamento de posições. Há comportamentos automáticos em relação a uma série de tópicos. Tudo no que a polarização toca, passa a dividir. Hoje, se você é feminista, há grandes chances de você ser de esquerda. E, se você é anticorrupção, dá praticamente para presumir que você é de direita. E, nesse contexto, você fica intolerante com os seus “adversários”. Atualmente, isso não ocorre só com políticos e militantes, mas com a sociedade civil.
A política entrou na vida das pessoas a tal ponto que há quem não queira se relacionar com quem é de outro espectro político que não o seu. Famílias se dividiram por causa de divergências políticas. Como o senhor vê esse cenário?
Há uma corrente da ciência política que defende a polarização porque as pessoas teriam mais interesse pela política. Mas eu chamo a atenção para o fato de que o ônus é maior. Os principais são a intolerância, a incapacidade de aceitar o outro e a incapacidade de as partes aceitarem posições em comum nas disputas políticas. Em uma situação não polarizada para uma disputa no parlamento, você perde e, na eleição seguinte, recupera. Mas, com o nível de passionalidade e engajamento atual, tudo é profundamente indignante e nada é aceitável se não for minha posição. O resultado é revolta e frustração. Há, ainda, um outro elemento: a radicalização das posições. As pessoas ficam com convicções cada vez mais profundas e radicais, o que as empurra para posições mais extremas. Nosso presidente Bolsonaro era anedótico e estava há 20 anos como figura marginal. Com a radicalização, as pessoas foram empurradas para posições mais extremas a ponto de um lado desses extremos adotar um candidato que defende tortura. A radicalização também faz pessoas da esquerda duvidarem da facada no Bolsonaro e não verem nada demais na Venezuela. Com a cabeça quente, vê-se indignação no campo adversário e nada demais no próprio pensamento. Fica-se cego aos próprios excessos. É o viés de confirmação: a predisposição psicológica de aceitarmos informações que corroboram o que já pensamos e a dificuldade de aceitarmos o que questiona nossas crenças. Isso não nasceu na polarização, mas, em tempos de convicções muito fortes, se acentua.
Não é possível ter privacidade nas redes sociais. temos bancos de dados valiosos demais e regulação de menos. Esses dados têm potencial de uso político muito grande para acharmos que políticos simplesmente não vão querer usá-los.
As redes sociais favorecem essa, como o senhor diz, “cegueira” aos próprios excessos?
As redes sociais alimentam esses grupos de pessoas de convicções muito fortes. Elas favorecem, mas não sei se são a causa. O argumento que defende isso é de que as bolhas são criadas por algoritmos das mídias sociais e que a polarização ocorre porque passamos muito tempo nas redes. Meu ceticismo se deve ao fato de que nosso comportamento fora das redes tem o mesmo formato. Pessoas de esquerda se reúnem com amigos de esquerda, e pessoas de direita tendem a se reunir com pessoas de direita. Tendemos a buscar pessoas que pensam de forma parecida.
Mas antes não se viam pessoas tão intolerantes. Há quem queira se relacionar ou morar só com quem é de esquerda ou de direita.
As redes sociais colaboram para a polarização, sem dúvida. Mas não acredito que sejam a causa da polarização, e sim que são fenômenos acontecendo na mesma época. Minha evidência para isso é que os Estados Unidos estão polarizados muito antes da emergência das mídias sociais e exportaram uma polarização até para países avessos à influência norte-americana, como a França, onde houve passeatas contra o casamento gay.
O senhor criou o Monitor do Debate Político no Meio Digital, que acompanha o que brasileiros falam em redes sociais. Como descreveria o nascimento, a vida e a morte de uma fake news na internet?
Evito a expressão “fake news”. Não é que notícia falsa não exista, mas é que, quando falamos em “notícia falsa”, dá a impressão de que a natureza do problema é a existência de grupos que produzam mentira. Não acho que isso aconteça. O que ocorre é a constituição de centros de produção de notícias hiperpartidárias: textos que parecem notícias, com manchete e aspas, mas que são falsos porque não houve apuração jornalística. Com a polarização da sociedade, há um mercado leitor muito engajado e um mercado de textos que buscam agradar a esse leitor, confirmar suas crenças e estimular o antagonismo com o campo adversário. Quando fazemos medições em redes sociais, vemos que metade das notícias consumidas vem de campos hiperpartidários.
Há uma desconfiança em relação à ciência, com crescimento de ideias terraplanistas, por exemplo. Por que esse tipo de questionamento ganha espaço hoje? O crescimento desse tipo de fonte de informação muito partidária faz com que os fatos, que em outros tempos norteariam o debate, sejam corroídos e disputados pelo campo político. Quando o tema é politizado, a base factual vai erodindo, porque as pessoas ficam convictas e não conseguem ter distanciamento para aceitar evidências contrárias que as questionem. Isso acontece dos dois lados. Partes da direita questionam o aquecimento global causado pelo homem e dizem que isso é conspiração. E partes da esquerda negam o déficit na Previdência. No passado, as pessoas divergiam sobre a melhor solução. Agora, nem concordamos sobre haver problema.
Qual a saída para rompermos a polarização?
Precisamos desacelerar e desarmar as pessoas. É preciso tomar distância sobre o que estamos apaixonados. Não vejo solução que não passe por arrefecimento das convicções políticas. Não acho que as soluções passam pela tecnologia, e sim por lideranças políticas. Precisamos achar soluções políticas para desarmar a polarização. E isso passa por debates públicos.
Qual o papel de gigantes da tecnologia, como Google e Facebook, nesse contexto?
Já há consenso – inclusive dos diretores dessas empresas – de que deve haver uma regulação de suas atuações. Elas precisam ser reguladas economicamente, para combater a concentração do dinheiro. A regulamentação deve ser em relação aos algoritmos, que não são transparentes e cujas decisões têm impactos políticos e sociais. E temos a questão de regular discursos de ódio e da privacidade de dados. Há uma longa agenda de regulação para decidir sobre a comunicação digital.
O senhor acredita que os esforços dessas empresas estão sendo suficientes para regular ou coibir esses discursos de ódio?
Para a regulação de conteúdo, Google e Facebook demoraram para agir, mas estão agindo. Só que isso não pode ser papel delas. Não queremos que quem tome uma decisão sobre o que é discurso de ódio seja uma empresa privada que opera em 250 países. Precisamos de uma regulação do poder público, que responde às pessoas.
Sobre privacidade, que é uma das áreas dos seus estudos: dados íntimos do nosso cotidiano são entregues a empresas de tecnologia. Qual é o maior risco disso?
O maior risco é aquilo de que já temos evidências desde o escândalo do (Edward) Snowden em 2013: é o uso de dados, coletados com propósito de propaganda, para práticas de vigilância. O que vimos nesse escândalo é que a NSA, a agência de espionagem norte-americana, fez uso desses bancos de dados. E não sabemos qual era o grau de cumplicidade de empresas de tecnologia – se foram forçadas ou cooperaram no fornecimento de dados. O fato é que os documentos que Snowden vazou mostram que o governo norte-americano usava dados, recolhidos com propósitos econômicos, para espionagem industrial e monitoramento de dissidentes e de lideranças políticas de outros países.
É possível ter privacidade nas redes sociais?
Não. Temos bancos de dados valiosos demais e regulação de menos. Esses dados têm potencial de uso político muito grande para acharmos que políticos simplesmente não vão querer usá-los.
Como o senhor vê o futuro da sociedade e da democracia digital?
Vivemos tempos difíceis. Não acho que a dificuldade advenha das mídias sociais. Nossa principal ameaça é a polarização política, que empurra as pessoas para posições perigosas. Embora não esteja certo se são a causa, as mídias sociais são um componente importante. Ficamos quatro horas e meia por dia nos alimentando de informações partidárias, memes, notícias falsas e partidarizadas, permanentemente indignados com o outro lado e convictos de nossas crenças. Talvez desarmar isso passe por usar menos esses recursos da tecnologia, esfriar a cabeça e tomar distância do problema. Só assim o veremos melhor.
O monitor
O Monitor do Debate Político no Meio Digital é um projeto que busca mapear, mensurar e analisar o ecossistema de debate político na internet. Recolhendo o que é publicado nos veículos de comunicação e no Facebook, promove análises jornalística e de engajamento, o que é compartilhado com os leitores por meio de relatórios semanais ou agrupados por temas. Acesse em monitordigital.org ou na página de Facebook do projeto, em facebook.com/monitordodebatepolitico.