Regulamentar Facebook e Google para evitar excessos é preciso, uma vez que as informações pessoais de nossa vida cotidiana estão nas mãos dessas empresas. E o jornalismo precisa se adaptar ao novo contexto político da sociedade. Esses são dois argumentos defendidos com convicção por Rosental Alves, 67 anos, titular da cátedra de Comunicação da Unesco (órgão das Nações Unidas para ciência, cultura e educação) e uma das maiores autoridades do mundo na área.
Carioca que construiu carreira no Jornal do Brasil, como repórter, correspondente internacional e editor, ele vive nos Estados Unidos há mais de duas décadas. Trabalha como fundador do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da Universidade do Texas e é membro do conselho de laboratórios de estudo em jornalismo na Universidade de Harvard e de Columbia. Rosental concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH:
Estamos na era da pós-verdade: o compromisso em discutir com base em fatos não é mais um pressuposto. O terreno é fértil para fake news. O que fazer?
Não gosto muito da expressão "era da pós-verdade", porque é como se a "era da verdade" tivesse sido encerrada. Na realidade, estamos na era dos ataques à verdade ou de assalto à verdade, que ocorre graças a um dos aspectos mais importantes da revolução digital: a democratização da informação. Um dos privilégios que os meios de comunicação tinha era deter quase que o monopólio da distribuição de informações. Isso foi rompido, o que empoderou as pessoas e organizações da sociedade civil a terem algumas dessas habilidades. Para nós, veteranos na revolução digital, essa mudança nos dava um grande otimismo sobre o futuro. Sonhávamos que isso fortaleceria a democracia, que as pessoas seriam mais bem informadas. Mas o sonho virou pesadelo. Não pensávamos que os maus seriam mais eficientes e rápidos do que os bons em aproveitar as características desse novo ecossistema. Chamo de maus aqueles que têm usado a tecnologia para manipular informação, influenciar as eleições e o pensamento político, levando a essa polarização que vemos ao redor do globo.
Sonhávamos que a revolução digital fortaleceria a democracia, que as pessoas seriam mais bem informadas. Mas o sonho virou pesadelo. Não pensávamos que os maus seriam mais eficientes e rápidos do que os bons em aproveitar as características desse novo ecossistema. Chamo de maus aqueles que têm usado a tecnologia para manipular informação, influenciar as eleições e o pensamento político.
Por definição, o que governantes dizem é notícia ou tem potencial de ser. Mas como lidar com a profusão de declarações de políticos sem base em fatos e na ciência? A imprensa deveria deixar de reportar?
A imprensa não pode usar a mesma metodologia de avaliação do que é notícia que usava no mundo anterior. De maneira geral, na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, vemos que a maior parte da imprensa continua usando esse critério. Em uma situação de assalto à verdade como vemos hoje, o jornalismo feito simplesmente com a mesma neutralidade anterior torna-se um amplificador das mentiras, falsidades que os news makers (pessoas que a imprensa acompanha) tentam levar à população. Sabe-se que muitos leitores não passam da manchete e do primeiro parágrafo da notícia. Se você simplesmente dá uma manchete que reproduz uma falsidade que um poderoso disse, não importa que, no quinto parágrafo, você diga que ele se contradiz. Você já ajudou a espalhar a mentira. O jornalismo é dinâmico e precisa mudar com a criação desse novo ambiente midiático. Deve tomar medidas de precaução para não ser só uma correia de transmissão de mentiras.
O senhor cita o caso específico de quando uma pessoa fala uma mentira. E quando a declaração é um ataque a direitos humanos?
A gente tem de pensar antes de reproduzir o que as pessoas falam. Se um news maker fez uma declaração ou tomou posição moralmente questionável, isso é notícia, não dá para deixar de publicar, porque é algo que tem consequências políticas e sociais. Mas como você enquadra a declaração? Quando você publica uma mentira, mesmo que o desmentido seja feito, você a divulga. Isso é uma armadilha.
O senhor já afirmou que o problema das fake news é que elas jogam com emoções. Como dialogar com o familiar ou amigo que compartilha desinformação?
Todo cidadão tem obrigação de desbancar mentiras. E é responsabilidade de cada pessoa, em cada grupo onde está inserida, checar o que fala em vez de simplesmente passar adiante uma mentira que pode ser verdade. É relativamente fácil, com o Google: bastam 30 segundos para verificar se a informação é velha ou se é mentira. Mas o jogo é muito desigual. As emoções têm sido manipuladas de uma maneira muito forte para a disseminação de mentiras. E o WhatsApp empoderou cada um de nós a criar nossa própria rede social privativa. Em um momento no qual há uma pressão muito grande para o Facebook tomar providências que evitem abusos, é mais difícil fazer regulações dentro do WhatsApp. Em comparação ao Facebook, as bolhas no WhatsApp são fechadas, fora do escrutínio público. Passamos por uma fase de transição para um mundo diferente do anterior. Mas acho que essa febre de acreditar em uma mentira e retransmiti-la vai passar, porque as pessoas começarão a desenvolver o “desconfiômetro”. Bom, talvez seja esperançoso da minha parte.
O senhor mencionou a regulamentação do Facebook. O próximo desafio, então, é o WhatsApp?
É uma situação delicada. Não queremos delegar a Facebook e Google o poder de censura. Eu sou a favor de uma regulamentação positiva, que tenha por base a liberdade de expressão e que possa proibir abusos. O próprio Facebook tem evoluído na sua velha posição de negar a possibilidade de qualquer regulamentação para, agora, desenvolver seus próprios sistemas internos de verificação. O Google e o Facebook de hoje são bem diferentes de dois anos atrás. Críticos podem continuar dizendo que eles precisam fazer muito mais, mas o desafio deles é bem grande também – o YouTube tem 400 novas horas de vídeo por minuto. No meio do caminho, eles vão errar, vetando coisas que não deveriam. A gente tem que entender isso, mas continuar demandando mais controles.
O senhor defende que redes sociais não são apenas plataformas, mas também empresas de mídia. Por quê?
As plataformas (como Facebook e Google) têm defendido a tese de que são como uma companhia telefônica, que não é responsável se uma pessoa liga e ameaça outra. essa situação não pode perdurar: as plataformas são meios de comunicação. não podem se eximir da responsabilidade gigantesca sobre a epidemia de notícias falsas, de bolhas de radicalismo, de disseminação de discursos de ódio bem debaixo do nariz delas.
Esse é o ponto nevrálgico. As plataformas têm defendido a tese de que são como uma companhia telefônica, que não é responsável se uma pessoa liga e ameaça outra pessoa. Só que está claro que essa situação não pode perdurar: as plataformas são meios de comunicação. Elas não podem se eximir da responsabilidade gigantesca sobre a epidemia de notícias falsas, de bolhas de radicalismo, de disseminação de discursos de ódio bem debaixo do nariz delas. Se continuarem não querendo ser vistas como meios de comunicação com responsabilidade de publicadores, então teríamos que encontrar uma categoria especial para elas, na pior das hipóteses. Mas, para ser justo, nos últimos dois anos, elas têm tomado medidas. O Facebook acaba de anunciar que terá uma aba de notícias, começou a contratar jornalistas e admitir a possibilidade justa e necessária de pagar os meios de comunicação pelas notícias que publica. Isso faz com que seja um publisher. (Nota da redação: A União Europeia aprovou, em abril, exigência de que obras artísticas e intelectuais só sejam compartilhadas no Facebook e YouTube com autorização do autor. Nos EUA, o Google recebeu multa de US$ 5 bilhões por quebra de privacidade. No Brasil, o Conselho Executivo das Normas-Padrão, órgão que estabelece diretrizes para o mercado publicitário brasileiro, reconheceu Google e Facebook como veículos de mídia).
Como o senhor vê a movimentação de países europeus para regulamentar o Facebook?
Pode ser que haja alguns exageros nas regulamentações dos países europeus, mas eles estão na vanguarda do mundo. Resolveram tomar iniciativas muito estudadas que podem estar exageradas em um aspecto, mas você não faz um omelete sem quebrar os ovos. É parte do processo de construção do novo ambiente midiático.
O que é acertado e o que é exagerado na regulamentação europeia?
O Google virou o indexador da grande biblioteca que é a internet. Mas a simples indexação de notícias não é uma violação de direitos de autorais, sobretudo se o Google não ganha dinheiro diretamente com isso. Se ele se tornar um agregador de notícias com intenções comerciais explícitas, talvez mude a situação. Mas acho que a gente precisa entender que o grande negócio dessas plataformas são os dados que extraem da gente, sem nossa autorização. A Europa levantou a questão sobre isso: as empresas de tecnologia não podem pegar dados sobre as pessoas sem autorização. Se o petróleo, nos anos 1920, era o novo ouro, nos anos 2020 o novo ouro são os dados. As plataformas sabem mais sobre nós do que nós mesmos. Não é uma boa isso ser feito sem nenhum controle da sociedade.
Qual o paralelo que o senhor faz entre a cobertura que a imprensa americana faz do governo Trump e a que a brasileira faz da gestão Bolsonaro?
A imprensa nos EUA tem apanhado muito. Trump não tem limites nas mentiras e na manipulação das informações. Ao longo da formação de sua persona pública, Trump chegava a ligar para jornais de Nova York imitando outra voz para sair nas colunas sociais e ter a imagem projetada de rico, bonito e famoso. De outro lado, a imprensa se construiu no século 20 dentro de padrões de objetividade e neutralidade. Mas jornais chegaram a um ponto aqui em que começaram a questionar isso. A imprensa brasileira está passando por momentos similares. O presidente Bolsonaro é um imitador do presidente Trump na fórmula de falar radicalismos e de manter uma campanha de desmoralização da imprensa. Os mesmos jornalistas e meios de comunicação que eram execrados pela esquerda, vistos como parciais, opositores e injustos, agora são execrados pela direita e pelo governo de extrema-direita com os mesmos adjetivos.
O senhor vê diferença na hostilidade a jornalistas durante o governo do PT e agora, no governo Bolsonaro?
O jornalista não existe para agradar aos poderosos, mas sim para incomodá-los. E cumprem o seu papel agora como cumpriram na época do PT. É muito interessante que a Míriam Leitão tenha sido atacada injustamente por petistas e agora seja atacada por bolsonaristas. Isso mostra que ela tinha coerência na essência de seu trabalho. Na época de PT, PSDB, Itamar Franco e (José) Sarney, havia coberturas desagradáveis da imprensa, mas nenhum presidente declarou guerra. É lamentável. Mesmo na ditadura militar, não havia o discurso de que a imprensa é inimiga. Eu me formei jornalista vivendo na ditadura militar, recebendo ligações da Polícia Federal sobre ordem de censura, quando eu trabalhava na Rádio Jornal do Brasil. Recebíamos ligações e depois uma nota do que o governo não queria que fosse posto no ar. Era censura explícita. Alguns jornais foram sufocados à morte por meios financeiros, como o Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, mas mesmo assim não havia o discurso de que a imprensa é inimiga, como há hoje nos EUA e no Brasil. É uma situação realmente sem precedentes, fruto de tendência assustadora ao autoritarismo. Aqui nos EUA, qualquer coisa que desagrade a Trump é chamada de fake news. Bolsonaro, com o O Globo na mão, mostrou uma reportagem que o desagradava, da mesma forma como (Hugo) Chávez fazia regularmente ao ir para a televisão, ou o Rafael Correa, no Equador, que rasgava jornal em frente às câmeras. O Bolsonaro não chegou aí ainda, mas está no caminho.
Um em cada cinco brasileiros vive em uma cidade que não tem jornal para ler. É o caso de 70% das cidades do norte do Brasil. São os desertos de notícia. Qual o impacto disso para a vida dessas pessoas?
Aqui nos EUA, as evidências são grandes. Quando um jornal desaparece, há estudos mostrando que os funcionários públicos começam a aumentar os próprios salários, os contratos de empreiteiras passam a ficar mais caros e aumenta a polarização na comunidade.
Como avalia os vazamentos de conversas de procuradores da Lava-Jato e a forma como o Intercept vem conduzindo a cobertura?
A revolução digital criou a possibilidade de esses grandes vazamentos de dados existirem. Não tenho nenhuma dúvida de que o material recebido pelo Intercept é de interesse público e que foi processado com critérios jornalísticos profissionais e éticos. O Intercept pode ter cometido alguns erros, porque é uma apuração humana – sei que houve erro na grafia do nome de uma procuradora, por exemplo. Mas não pegaram a base de dados sem critério. Inclusive, chamaram outros meios para ajudar na investigação. Fizeram o trabalho jornalístico que seria feito por qualquer organização jornalística. Existe uma jurisprudência da Suprema Corte Americana, desde os documentos do Pentágono da década de 1970, segundo a qual uma informação que o jornalista considera de interesse público pode ser publicada mesmo que obtida de maneira criminosa, desde que o jornalista não tenha participado da obtenção. A abominável insinuação de que o Glenn Greenwald poderia ser preso é uma mentalidade de ditador. Em uma democracia, existe essa possibilidade de publicação.
O que é preciso focar para o futuro?
Eu sou muito otimista sobre o futuro do jornalismo. As revoluções são geralmente seguidas por um período de caos. Estamos nessa confusão agora, mas são as dores do parto de um ecossistema midiático novo, no qual o jornalismo vai sobreviver e prosperar. O mundo nunca deixou de ter jornalistas. O contador de histórias é parte de qualquer grupo humano desde o tempo das cavernas. A tecnologia cria problemas, mas depois os seres humanos a usam para criar soluções.