Duas décadas antes de ser laureado com o Prêmio Nobel da Paz, o ginecologista Denis Mukwege viu 35 pacientes serem mortos nos leitos do hospital, em Lemera, na República Democrática do Congo. Fugiu para Bukavu e passou a atender os sobreviventes na guerra civil em tendas. Sua sala de cirurgia improvisada também foi destruída. Em 1999, fundou o Hospital de Panzi.
Ao perceber que as mulheres chegavam trazendo no corpo o horror do conflito, deflagrou sua guerra particular contra o estupro em massa. Violência sexual no país virou arma dos grupos rebeldes para destruir vidas e comunidades. Além do auxílio físico, Mukwege ajuda na reconstrução psicológica das vítimas e lhes presta apoio judicial – muitos de seus algozes ainda estão por perto. Já tratou mais de 85 mil pacientes com danos e traumas ginecológicos. Em 2018, junto com a ativista yazidi Nadia Murad, ganhou o Nobel da Paz. Antes de chegar a Porto Alegre para palestrar no ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, na segunda-feira passada, ele concedeu a seguinte entrevista a ZH.
Certa vez, o senhor contou que, quando se sente cansado diante das situações que enfrenta, lembra-se das caminhadas com seu pai, um pastor pentecostal no interior do Congo. Ele dizia que era “médico de almas”. Hoje, o senhor é um homem com forte espiritualidade e médico. Como a espiritualidade ajuda no seu ofício?
A espiritualidade precedeu a medicina em nível global e em minha vida privada. De fato, meu pai era um médico de almas, mas para alcançar a medicina científica é necessário, acima de tudo, a mesma compaixão ensinada ao cristão. Devemos ser capazes de nos colocar no lugar da outra pessoa, para ajudá-la de forma adequada e eficaz. Até hoje, sou inspirado por ambos, mas antes de tudo compaixão pelo outro, sabendo que ele ou ela gostaria de ter o que eu tenho ou o que eu também gostaria de ter: a paz no coração, o bem-estar da saúde, a capacidade de projetar-se para um futuro ideal.
O senhor viu o hospital de Lemera ser atacado e destruído na guerra. Foi um dos únicos sobreviventes. Como o senhor lida com essas memórias?
Os problemas atuais me preocupam o suficiente para preencher minha memória, mas, ainda assim, não consigo esquecer por um momento sequer o que aconteceu em Lemera em outubro de 1996. É difícil para um homem normal esquecer tal atrocidade, operar pessoas doentes, dizer-lhes que tudo iria ficar bem, ver seus sorrisos de esperança, e depois saber que foram mortas em seu leito, com o corpo médico a sua cabeceira. Tal trauma é difícil de deixar no passado. Infelizmente, as atrocidades atuais continuam nos trazendo de volta a todo esse passado macabro.
os crimes de violência sexual foram elevados a nível internacional por este prêmio, o que nos encoraja, pois, durante muito tempo, tivemos a impressão de que esses crimes eram simplesmente ignorados pelo mundo. Mas agora ninguém pode dizer que não sabia.
DENIS MUKWEGE
O senhor costuma dizer que não precisava de mais prêmios. O que mudou na sua vida depois do Nobel?
Depois do Prêmio Nobel, as responsabilidades cresceram no nível internacional. De fato, os crimes de violência sexual foram elevados a nível internacional por este prêmio, o que nos encoraja, pois, durante muito tempo, tivemos a impressão de que esses crimes eram simplesmente ignorados pelo mundo. Mas agora ninguém pode dizer que não sabia. O que mudou na minha vida é que temos de assumir um discurso internacional e relatar a todos que esse problema não era apenas congolês. Além da sala de cirurgia, agora tenho que apoiar todas as lutas contra os ataques às mulheres na Ásia, América, África e Europa. Estou orgulhoso e motivado por essa nova coesão.
Seu trabalho contribui para dar visibilidade ao dramas na África. Em suas viagens, o senhor percebe que, para muitos de nós, o continente e suas tragédias são invisíveis? Por que isso ocorre?
Acho que isso está acontecendo a partir de uma asfixia evidente da mídia, mas também a partir de informações tendenciosas. A África é muito mais considerada como uma área de mineração: são seus recursos que sempre interessaram ao mundo. Às vezes, sentimos que, para muitas pessoas, essa África não faz parte da humanidade, tanto que damos muito mais atenção aos recursos naturais do que aos seres humanos que vivem lá. Assim, temos experimentado muitos desastres na África, mas dificilmente são mencionados na mídia internacional. É uma triste realidade.
Que papel teve a sua família na formação do ser humano no qual o senhor se tornou? E de sua mãe em especial?
Minha mãe tem sido o pilar da minha educação, como todas as mães do mundo são responsáveis por seus filhos. A coisa mais importante que ela me deu foi me tratar de forma igual à que tratava as minhas irmãs. Ela sempre me fez entender que não havia um papel específico para mim em relação às minhas irmãs. Todos estávamos sujeitos às mesmas regras, o que me permitiu ver o mundo de maneira diferente até hoje. Meu pai, é claro, desempenhou um grande papel, mas são as mulheres que começam a educação e o acompanhamento da vida de uma criança na sociedade humana. Como muitas mães, a minha lutou pela minha sobrevivência, confrontada com as fraquezas e doenças das crianças. Ela continua até hoje me vendo como a mesma criança que ela salvou de tudo para ver crescer e para se tornar um homem. Devo tudo a minha mãe, a meu pai e a toda a minha família, que contribuiu muito para a minha percepção da vida, para minha capacidade de relacionamento e consideração pelo outro.
Das tantas histórias que viu, ouviu e contribuiu para mudar, existe alguma que mais lhe emocionou? Alguma que tenha feito o senhor perceber que algo precisava ser feito.
Sim, vivi e ouvi muitas histórias. Tive a graça de ajudar a mudar algumas, especialmente das mulheres que chegaram ao Hospital de Panzi, em condições físicas alarmantes depois da violência sexual atroz que tinham sofrido. Tenho visto corpos e mentes para reconstituir e, até hoje, muitas deixam nossas instituições com um sorriso, com gratidão. A situação que me fez entender que eu tinha de ir além do bloco cirúrgico para tentar impedir essas atrocidades foi a continuação desse flagelo e a falta de ação dos líderes do meu país. Eu havia me rebelado ao descobrir que a garota que eu iria operar era filha de uma vítima de violência sexual que eu já havia operado. Também havia operado a vó dela pelas mesmas razões. Eu iria lidar com a violência sexual ao longo de três gerações da mesma família. Os estupros se tornaram a destruição de gerações. Até hoje, esse trabalho de proteção além da sala de cirurgia continua enfrentando indiferença além das fronteiras do meu país. Demorou muitos anos para os ouvidos da comunidade internacional começarem a escutar nossa angústia.
Apesar de tantas tragédias, o senhor vê finais felizes?
Uma história que termina bem depende de quem a vive. Para mim, médico, a história pode terminar bem quando o paciente está curado e retoma sua vida. Vejo muitas histórias assim. No entanto, para o paciente, é a mesma percepção? A mulher congolesa considerará que sua história pode acabar bem quando houver justiça e condenação dos criminosos que a sujeitaram ao pior. E eu concordo com isso, tendo escutado mulheres sobreviventes de violência sexual ao redor do mundo. Todas têm o mesmo estado de espírito: não nos esquecemos do mal que nos foi causado e queremos que os culpados e aqueles que os apoiaram reconheçam o mal e que haja reparações. Para contar uma história que terminou bem: o julgamento de Kavumu sobre o estupro de crianças. Em uma vila, um grupo armado estava estuprando crianças até o dia em que essas milícias foram presas com seus líderes. Levei cinco anos para tratar dessas crianças, foi doloroso. Após a prisão desses algozes, o medo parou na aldeia. Muitas vítimas (pais de crianças estupradas) sentiram-se aliviados com a sentença dos executores, porque, finalmente, o mal foi apontado e removido da sociedade. Mas ainda há muitas dessas mulheres que enfrentam seus algozes até hoje, e que ficam sabendo que eles foram promovidos a cargos de responsabilidade. É uma continuidade de numerosas histórias que terminam mal.
A República Democrática do Congo, nos últimos 20 anos, testemunhou estupros em praça pública, em que pais são forçados a ser espectadores do que é feito com sua filha, onde exigem que o marido testemunhe o estupro de sua esposa, um líder religioso assistir ao estupro de sua esposa.
DENIS MUKWEGE
Como o estupro deixa de ser uma tragédia individual para se tornar uma tragédia coletiva, uma estratégia de guerra para aniquilar sociedades inteiras?
Estupro com extrema violência, como temos experimentado nos últimos 20 anos na República Democrática do Congo, sempre foi uma tragédia coletiva. É diferente do que muitas sociedades chamam de estupro, que é um homem que ataca uma mulher para satisfazer um desejo sexual. A República Democrática do Congo, nos últimos 20 anos, testemunhou estupros em praça pública, em que pais são forçados a ser espectadores do que é feito com sua filha, onde exigem que o marido testemunhe o estupro de sua esposa, um líder religioso assistir ao estupro de sua esposa. As consequências são bem previsíveis, e as estamos vivendo até hoje: a destruição do tecido social. A redução ao estado animal da sociedade, onde regras, hábitos e costumes são abalados por esse único ato repugnante.
O senhor depara com a angústia de ter de operar pela segunda, terceira ou quarta vez uma mesma mulher?
É um evento muito pesado, muito difícil de aceitar. Tratei meninas que, depois de curadas, se recusaram a voltar para seus vilarejos. Não podemos manter todos os pacientes no hospital e, lembro-me de ter convencido algumas delas a voltar, apesar de sua relutância bem justificada. Lembro-me de uma que havia voltado para mim alguns meses depois, mais seriamente violada do que a primeira vez. Dessa vez, ela havia sido infectada pelo HIV. O que dizer a uma paciente assim? Esses problemas de violência sexual podem fazer com que uma sociedade inteira, até mesmo um médico, se questione. Quando uma cirurgia é necessária para um caso de violência sexual, devemos agir para resolver o problema, mas não podemos, infelizmente, assumir responsabilidades do Estado que deveria as proteger. Quando as vítimas que tratamos estão curadas, é sempre uma alegria. Mas quando voltam, depois de serem estupradas pela segunda ou nona vez, é uma decepção, um desânimo, um colapso social.
Como é a estrutura hoje no hospital onde o senhor trabalha? O senhor ainda consegue dar tratamento personalizado às pacientes, como fazia antes do Nobel?
O Hospital de Panzi foi construído durante o período de guerra com capacidade de 150 leitos. Hoje, recebemos 450 pacientes e percebemos a necessidade de expansão. No que diz respeito ao pessoal, temos 399 funcionários, dos quais 23 são especialistas em alguma área da medicina e 25 são clínicos gerais. Temos 105 enfermeiros. Sempre que possível, tentamos fornecer cuidados centrados na pessoa. Dialogamos, discutimos juntos como será o seu tratamento. Isso é feito por meio de parcerias com instituições como a Fundação Panzi. As carências são muitas, temos mais casos para gerenciar do que equipe disponível. Mas administramos bem e com uma taxa de satisfação que sempre nos encoraja. Interagimos bem com nossos pacientes e muitas vezes é como se virassem da nossa família.
O senhor e sua família sofreram um atentado em 2012, seu segurança foi morto e seus filhos, mantidos reféns por horas. As ameaças continuam?
A cronologia do ataque de outubro de 2012 e as circunstâncias relacionadas a ele pareciam ser claras. Eu havia sido avisado, um ano antes, por uma autoridade, que, se eu falasse na tribuna da ONU (Organização das Nações Unidas), teria de suportar as consequências quando voltasse ao país. Em 2012, menos de uma semana após meu discurso na ONU, minha vida estava sendo atacada e meu funcionário foi assassinado. Para mim, isso está claramente relacionado ao meu trabalho com instituições internacionais. Como qualquer ser humano, sinto medo, tanto por mim quanto por minha família. Mas, se há uma coisa que precisa ser superada para se avançar, é o medo. Tive o apoio de toda a minha família para continuar com esse trabalho e devo continuar. Caso contrário, deixaria o campo aberto para mal e abandonaria o bem-estar ao qual, naturalmente, todos aspiramos. As ameaças persistem. Elas são reais e presentes. Se continuarmos recebendo vítimas de violência sexual de todas as idades de diferentes partes do país, isso é prova do perigo enfrentado diariamente pelo cidadão congolês comum. E eu sou um desses cidadãos. Se continuarmos sofrendo ataques diante de qualquer protesto reivindicando direitos de cidadão, é porque estou em perigo. Eu rejeito violação de direitos humanos. Se continuarmos vendo a proteção e a promoção de torturadores comprovados, às vezes apoiados pela comunidade internacional, isso mostra que estamos à mercê daqueles que são reconhecidos como perigosos. Sim, estou em perigo, com milhões de outros congoleses.
O senhor afirmou certa vez: “É incrível ver o que os homens conseguem fazer com as mulheres, não parecem seres humanos”. Infelizmente, machismo, sexismo e misoginia não se manifestam só na África. Aqui, no Brasil, o assassinato de mulheres também é uma realidade.
De fato, o que vivemos no Congo tem sido vivido quase em todos os conflitos, Ruanda, Bósnia, Mianmar, Síria, Líbia. Nos perguntamos isso. Por que os homens atacam tanto as mulheres? Por que as desprezam tanto? Por que abusam tanto? Seja fisicamente, psicologicamente ou socialmente. Testemunhei atrocidades cometidas às mulheres que mesmo os animais não fariam com suas fêmeas.
Sou humano como qualquer outro e, às vezes, choro, especialmente quando testemunho o sofrimento dos outros. Como qualquer humano, não suporto a dor.
DENIS MUKWEGE
Como o senhor lida com o seu lado psicológico? O senhor costuma chorar?
Sou humano como qualquer outro e, às vezes, choro, especialmente quando testemunho o sofrimento dos outros. Como qualquer humano, não suporto a dor. Mas a compaixão pelos outros me faz chorar com eles. Mas chorar não é suficiente, devemos agir. Muitas vezes ajo mais do que choro, especialmente quando sei que ainda posso fazer alguma coisa. O ser humano deve agir para mudar alguma coisa em sua vida diária e não parar e ficar chorando por sua má sorte.
Há 10 anos, o senhor esteve em Porto Alegre. O que o senhor acha que mudou na sociedade brasileira desde então? Havia uma expectativa de parcerias entre Brasil e África. Avançou?
Em Porto Alegre, há 10 anos, me senti em casa. O povo brasileiro e o nosso se beneficiam do mesmo ambiente e do mesmo humanismo cujas raízes devem ser preservadas. O que mudou aqui, no Congo, ao longo dos anos, é que você tem sido capaz de exercer suas prerrogativas democráticas, e acho que vocês poderiam servir de exemplo para outras nações emergentes, incluindo a minha em iniciativas de desenvolvimento e vida social harmoniosa. A parceria entre o Brasil e a África e especialmente entre Porto Alegre e nós, em Bukavu ou Panzi, ainda não decolou. Mas continuamos confiantes porque, diante do trabalho a ser feito, caberá a nós nos engajarmos. Em outras palavras, o trabalho está lá, ele está esperando por nós para fazê-lo.