Quando Donald Trump e Vladimir Putin renegam acordos nucleares, o mundo prende a respiração, com medo de uma guerra atômica. Países como o Iraque são invadidos sob o argumento de que detêm armas químicas. E um dos maiores pesadelos da segurança internacional é que terroristas ponham mãos em material biológico. Há, porém, uma arma primitiva que pouco desperta revolta na comunidade internacional, mas que, no século 21, ainda produz catástrofes humanitárias na África: o estupro.
Com a discrição que lhe é característica, o médico congolês Denis Mukwege, 64 anos, grita, por meio de um trabalho silencioso, contra a violência sexual como estratégia de guerra. O estupro, por si só, é uma tragédia pessoal. Mas, no país africano, ganha contornos de limpeza étnica: provoca deslocamento de civis, declínio demográfico, destrói a economia e desintegra o tecido familiar e social. Quando um grupo guerrilheiro invade uma localidade da República Democrática do Congo, o estupro ocorre em público, às vezes de forma coletiva – até 300 mulheres ao mesmo tempo, enquanto pais, mães, filhos, filhas, maridos das vítimas são obrigados a assistir às cenas de horror.
Mukwege, laureado com o Nobel da Paz em 2018 com a yazidi Nadia Murad e palestrante desta segunda-feira (19) do ciclo Fronteiras do Pensamento, entendeu que, para resgatar a integridade feminina, não poderia ser apenas médico. Era necessário ser psicólogo, amigo, empreendedor e também um guerreiro.
Quando em 1998 a guerra civil estourou, 35 pacientes de seu hospital em Lemera foram mortos nos leitos. Ele fugiu para Bukavu e começou a atender pacientes em tendas. Construiu uma sala de cirurgia, mas as estruturas também foram destruídas. Em 1999, fundou o Hospital de Panzi. Ao receber a primeira vítima de estupro, o ginecologista percebeu que ela havia sido alvo de uma arma tão defenestrável quanto arsenais de destruição em massa. Além da violência sexual, os agressores atiraram nas coxas e nos órgãos genitais da vítima. Outras mulheres continuaram a chegar. Mukwege já tratou mais de 85 mil pacientes com danos e traumas ginecológicos.
— Nas zonas de conflito, as batalhas se passam nos corpos das mulheres — denunciou certa vez.
Ao gritar para o mundo, contando o que ocorria em seu país, também ele se tornou alvo. Em 2012, sofreu um atentado no qual seus cinco filhos foram feitos reféns e seu segurança foi morto. Com a família, o médico exilou-se na França. Mas retornou à África quando percebeu que mulheres congolesas haviam criado um movimento para levá-lo de volta a Bukavu.
Mukwege passou a morar dentro do hospital, protegido pelos capacetes azuis da Organização das Nações Unidas (ONU). Desenvolveu uma cadeia de atendimento: faz exames psicológicos antes de levar as vítimas da guerra a cirurgia, provê alimentação e, após o tratamento, as ajuda a desenvolver novas habilidades. Ainda as auxilia no aspecto legal, com advogados para levar os casos à Justiça.
Esse homem tornou-se mais do que um Quixote no coração da África, e sim um farol no coração das trevas.
MILTON PAULO DE OLIVEIRA
Cirurgião plástico e chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital São Lucas da PUCRS
Em 2015, Mukwege obteve grau de doutor na Universidade Livre de Bruxelas, com tese sobre o tratamento das fístulas traumáticas urogenitais. Fundou em 2014 um movimento feminista masculino, V-Men Congo. Com a projeção, pede às multinacionais maior controle para que não comprem “minerais de sangue”, que contribuem para a violência na África.
— Esse homem tornou-se mais do que um Quixote no coração da África, e sim um farol no coração das trevas — diz o cirurgião plástico Milton Paulo de Oliveira, chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital São Lucas da PUCRS, que conheceu Mukwege há 11 anos, quando também ele se aventurou a operar crianças na África.
Na primeira vez em que o congolês esteve em Porto Alegre, em 2010, para a edição daquele ano do Fronteiras do Pensamento e antes de se tornar Nobel da Paz, Milton foi anfitrião do colega.
O gaúcho e gremista brincou:
— Em Porto Alegre, não temos guerra. Mas também há uma disputa. Quando chegares, tens de dizer que és do Grêmio.
Mukwege seguiu a dica ao chegar ao Salgado Filho e foi logo tascando um “sou do Grêmio” por onde andava naqueles dias. Em entrevista a ZH, antes de voltar à Capital, ontem, Mukwege contou que o reconhecimento com o Nobel fez aumentar sua responsabilidade. Agora, luta não apenas pelas mulheres congolesas, mas de África, Ásia, Europa e América:
— Por muito tempo, tivemos a impressão de que esses crimes foram ignorados. Agora, ninguém pode dizer que não sabia.
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e Hospital Moinhos de Vento, parceria cultural PUCRS, e empresas parceiras Unicred e CMPC. Universidade parceira UFRGS e promoção Grupo RBS.
Além desse evento, o Nobel participará de palestra nesta terça-feira (20), às 19h, no Anfiteatro Schwester Hilda Sturm, no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre.
Fronteiras do Pensamento 2019
Próximos convidados
2 de setembro
Janna Levin – Física teórica e astrônoma norte-americana, é referência na pesquisa sobre buracos negros.
23 de setembro
Werner Herzog – Cineasta alemão que dirigiu clássicos como Fitzcarraldo (1982) alterna registros na ficção e no documentário em temas como a relação do homem com a natureza e tecnologia.
21 de outubro
Contardo Calligaris – Psicanalista, colunista e escritor italiano radicado no Brasil.
11 de novembro
Luc Ferry – Escritor, professor, filósofo e ex-ministro da educação da França, autor do best-seller Aprender a Viver (1996).
Conferências sempre às segundas-feiras, às 19h45min, no Salão de Atos da UFRGS
(Av. Paulo Gama, 110), exceto no dia 21/10, quando será no Salão de Atos da PUCRS.
Os passaportes estão esgotados. Mais informações no portal fronteiras.com e pelo telefone 4020-2050.