Até um almoço de domingo, em família, tem sido um desafio para muitos brasileiros. Assim como entrar no Facebook, dirigir até o trabalho ou tomar um chope no happy hour. Não há reduto que permaneça intocado pela polarização radical de opiniões. Essa expressão, que tem se tornado cada vez mais cotidiana, ilustra a dicotomia política que o Brasil vive desde, pelo menos, as manifestações de junho de 2013. Muito mais do que a simples discordância de ideias, a polarização indica, no atual contexto, uma negação ao debate, promovendo um cenário de intolerância que a cada dia se torna mais comum – na vida “real” ou no ambiente virtual.
Pablo Ortellado, professor de políticas públicas da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da polarização política nas redes sociais, destaca que o tema deixou o cenário social “mais pesado”:
– Há um antagonismo de tal ordem que acabou gerando comportamentos automáticos. Se um determinado campo é a favor de uma coisa, o outro é automaticamente contra. É a negação instantânea, simplesmente a partir do que alguém acredita que o outro representa.
A verdade não é tão importante no mundo polarizado. Em tempos de notícias falsas e ódio online, títulos de reportagens valem mais do que seu próprio conteúdo e comportamentos automáticos são reforçados constantemente de acordo com o círculo social no qual estão inseridos. Mas não se sinta mal. A culpa não é sua; é de todos nós, segundo a ciência. Ou melhor: a culpa é dos 3 milhões de anos de seleção natural que transformaram aquele hominídeo lascador de pedras em um comentador frenético de Facebook.
O cérebro humano é uma estrutura complexa e que desafia os cientistas até hoje. Além de ser o principal órgão do sistema nervoso central, capaz de coordenar pensamento e movimento, o cérebro permite às pessoas interagir com o meio ambiente, promovendo a comunicação e a relação com outros seres. E a verdade é que fazer tudo isso dá muito trabalho. Em repouso, o cérebro humano consome cerca de 20% da energia total produzida pelo corpo – o suficiente para acender uma lâmpada de 25 watts. Não é à toa que você evoluiu de forma a, sempre que possível, economizar sua bateria. Mas de que maneira isso se relaciona ao fato de mudar ou não de ideia durante uma discussão?
A professora Keitiline Viacava, doutora em psicologia pela UFRGS, explica que, para compreender as funções do cérebro, é possível dividi-lo em dois sistemas diferentes, embora interconectados. O primeiro, mais primitivo, é comumente chamado de “sistema 1”. É a parte intuitiva da mente, muito influenciada pelas emoções e pelo hábito. Foi isso que possibilitou aos primeiros hominídeos seguirem ativos e protagonistas mesmo em cenários de extrema dificuldade. Esse sistema também é conhecido como límbico, e por muito tempo foi considerado o “cérebro emocional”.
Já o “sistema 2” é aquele no qual ocorre um tipo de processamento mais elevado, considerado o pensamento racional. É nessa área que as informações são analisadas para que se tornem ações controladas. Aqui já passa a existir um processo de planejamento, deliberação e execução. Trata-se de uma área que evoluiu junto da espécie humana, possibilitando a criação de campos das ciências como a lógica, a matemática e a física.
Sobre a ideia da “economia energética” reforçar comportamentos guiados pela emoção, a professora explica que é muito complicado processar todos os estímulos que uma pessoa recebe – imagem, som, cheiro, sensações térmicas: uma enxurrada de informações a cada milissegundo. Assim, o cérebro precisa agir “no automático”, reproduzindo padrões que já foram previamente considerados seguros. E não só em ações simples, como não colocar a mão no fogo. Aqui entram problemas complexos, como aceitar ou não uma informação que contradiga uma visão de mundo. Keitiline exemplifica:
Nossos estudos sugerem que a polarização surgiu no primeiro semestre de 2014, ou seja, não é um comportamento que sempre fez parte da sociedade brasileira. O pensamento polarizado teve uma data de início no país.
PABLO ORTELLADO
Filósofo, coordenador do projeto Monitor do Debate Político Digital
– Somente pensar antes de agir não significa necessariamente que estamos sendo racionais. Podemos estar utilizando a área analítica do nosso cérebro, mas é importante entender que temos uma tendência natural a reforçar aspectos que garantem nosso bemestar. Conceitos como prazer e perigo estão enraizados dentro de outros mais complexos. Por exemplo: mudar de opinião gera desconforto, ou seja, um gasto energético, algo que vai contra nosso sistema límbico.
Muito disso pode ser compreendido quando confrontado com um conceito da psicologia cognitiva chamada viés de confirmação. Difundido na década de 1990 por meio dos estudos do psicólogo israelense Daniel Kahneman, a ideia mostra que, mesmo em situações nas quais estão amplamente amparadas por dados objetivos, as pessoas não tomam decisões 100% racionais, baseadas apenas na lógica. Pelo contrário: tendem a agir de forma emocional e ignorar diversas informações no momento da escolha.
Esse estudo, que deu a Kahneman o prêmio Nobel de Economia (ele é um teórico das chamadas finanças comportamentais, hoje com 83 anos), foi marcante no campo dos vieses comportamentais. Diversos já foram descobertos e catalogados pela psicologia cognitiva, entretanto, poucos se mostram tão presentes na sociedade contemporânea quanto a tendência de confirmação.
O professor de psicologia da PUCRS Tárcio Soares explica que esse viés nada mais é do que a tendência de um indivíduo cercarse de pessoas que tenham a mesma visão de mundo que ele:
– O ser humano é predisposto biologicamente a ter uma certa visão da sociedade, e mudá-la é custoso. Para não gerar estresse, as pessoas buscam o que confirma seu ponto de vista e ignoram o que o desacredita. Isso é perceptível no futebol: quando penso que meu time foi prejudicado, minhas avaliações deixam de ser neutras. Passo a lembrar muito mais de quando ele foi lesado do que de quando foi favorecido.
O desconforto que leva algumas pessoas a se esquivarem de indivíduos, grupos e fontes de notícias que as façam sentir inseguras é o que a psicologia comportamental chama de dissonância cognitiva. Para evitar essa incoerência entre o mundo exterior e o mental é que as pessoas tendem a alimentar, mesmo de que forma inconsciente, o viés de confirmação.
O outro, um inimigo
Para a ciência, sempre que alguém toma uma decisão, três áreas da mente são acionadas: a afetiva, a cognitiva e a comportamental. Para entender a interação delas, usemos o tabagismo como exemplo: uma pessoa pode não gostar de cigarro (afeto), pode pensar que fumar faz mal à saúde (cognição) ou, por fim, pode não querer ficar perto de fumantes (comportamento).
– Dessa forma, toda atitude é um somatório desses três domínios – explica Keitiline Viacava.
A questão é que, às vezes, uma dessas áreas fala mais alto, sobrepondo-se às demais. Sobretudo em uma discussão familiar, ou em um post de rede social, fica difícil dissociar todos os gatilhos afetivos e comportamentais dos fatos puros e simples. Essa dificuldade que você sente é o que a ciência chama de viés de confirmação: tudo ao seu redor parece colaborar para manter sua opinião como ela está. É aí que começa o perigo da polarização.
Quer uma chance para ver o viés de confirmação agindo? Faça um exercício rápido enquanto lê esta reportagem. Pense no nome Getúlio Vargas. O que vem à mente? Para muitos, a imagem de um grande líder político que consolidou as leis trabalhistas no Brasil e, não por acaso, tornou-se conhecido como “o pai dos pobres”. Para outros, a imagem que ficou é a de um ditador que, em sua cruzada contra o comunismo nos anos 1930, foi capaz de extraditar a judia alemã Olga Benário, então grávida de Luís Carlos Prestes, o que a condenou aos campos de concentração nazistas.
Entender o outro como inimigo foi um recurso útil para nossa evolução. Mas, hoje, essa herança presta apenas um desserviço. Transformamos o Facebook na nossa 'selva contemporânea' e deixamos aflorar lá essas características. Somos homens das cavernas com redes sociais.
TÁRCIO SOARES
Professor de Psicologia da PUCRS
Vargas foi uma das figuras mais controversas da história política do país. É possível cultuar imagens díspares de sua atuação e de seu legado – sempre amparado por fatos. Escolher um lado é algo natural. Fechar-se nele e refutar todo o resto é, mais uma vez, o viés de confirmação agindo.
O viés de confirmação é uma consequência natural do processamento cerebral, que tende a “eleger uma realidade” confortável e lutar para mantê-la. Essa ideia ficou evidente a partir do trabalho do psicólogo social polonês Henri Tajfel (1919–1982). Defensor da teoria da identidade social, Tajfel destacou a tendência do ser humano a classificar a sociedade em um genérico sentimento de “nós contra eles” e a ter um preconceito implícito com tudo o que é diferente.
No estudo de Tajfel, um grupo de pessoas foi dividido por base na preferência de determinado gênero artístico – um conceito aleatório. Os participantes não sabiam desse interesse em comum com os demais, não conheciam os outros envolvidos na pesquisa e sequer cogitavam interagir com eles no futuro. Com base nisso, os times realizaram tarefas de uma gincana, acumulando pontos em atividades e desafios.
Em certo ponto, foram apresentadas duas opções: na primeira, era possível prejudicar as pessoas do outro grupo, fazendo com que cada uma delas perdesse US$ 100. A contrapartida seria que você e seu grupo também perderiam uma quantidade considerável de dinheiro. A outra opção era presentear o outro grupo com US$ 100, fato que faria você e seu grupo também serem beneficiados com uma boa quantia.
Na pesquisa de Tajfel, a esmagadora maioria dos participantes escolheu prejudicar o grupo “rival”, abrindo mão do próprio bem-estar para que o adversário sofresse. Esse tipo de comportamento surgiu de forma natural, apenas após um curto período de interação. Se tão pouco tempo já foi suficiente para as pessoas desenvolverem um senso de pertencimento capaz de influenciar suas ações, o que uma exposição prolongada a temas como política, religião e sexualidade pode fazer?
– Entender o outro como inimigo foi um recurso útil para nossa evolução, já que, no passado, era preciso disputar com grupos questões como território e recursos. Mas, hoje, essa herança evolutiva presta apenas um desserviço. Transformamos o Facebook na nossa “selva contemporânea” e deixamos aflorar lá essas características. Nossos esquemas mentais ainda estão presos ao nosso passado. Somos homens das cavernas com redes sociais – reflete Tárcio Soares.
De fato, as redes sociais parecem ser um grande palco para as opiniões polarizadas. Diante desse aspecto, o filósofo e professor Pablo Ortellado deu início ao projeto Monitor do Debate Político no Meio Digital, na esperança de entender ao menos o viés político da polarização que tem tomado conta da sociedade ocidental.
Responsável por quantificar e avaliar o conteúdo produzido por mais de 200 sites e 500 páginas de Facebook que abordam temas como política, ambientalismo, questões do movimento feminista, negro e LGBTQI e reações do campo conservador a essas esferas, o monitor de Ortellado analisa – com a ajuda de um robô – um fluxo de mais de 6 mil notícias e postagens diárias.
– Nossos estudos mostram que a polarização surgiu no primeiro semestre de 2014, ou seja, não é um comportamento que sempre fez parte da sociedade brasileira. O pensamento polarizado teve uma data de início, o que significa que houve fatores que provocaram essa mudança – explica.
Segundo Ortellado, os protestos de junho de 2013 foram o primeiro passo para o surgimento da polarização. Junte a isso o julgamento do Mensalão e os primeiros resultados da Operação Lava-Jato e você terá o cenário atual: muitas postagens na internet, muitas brigas em almoços de família e pouca informação concreta.
As curtidas e a "dor social"
O Facebook, rede social acessada por 100 milhões de brasileiros, funciona como um potencializador de visões de mundo predeterminadas. Isso porque seus algoritmos analisam o comportamento de cada usuário, oferecendo postagens e conteúdos de acordo com seus interesses.
– O fato de as pessoas passarem muitas horas por dia lendo, publicando e escrevendo suas opiniões nesses ambientes virtuais fortalece a sensação de grupo e a própria emoção individual sobre os temas discutidos, já que, no Facebook, você está sendo gratificado pela sua opinião por meio de curtidas e comentários – explica Tárcio Soares.
Esse é outro detalhe da mente humana que pode ser analisado de forma mais objetiva. Estudo encomendado pela empresa Ford mostra que 62% dos adultos têm melhor autoestima depois de serem curtidos e compartilhados em redes sociais. Além disso, cientistas já concluíram que a rejeição e a exclusão em ambientes virtuais geram dor social, ativando inclusive as mesmas áreas do cérebro que processam dor física.
A pergunta que fica, no fim das contas, é se as pessoas estão mesmo dispostas a mudar de “lado”. A ciência é categórica: não é fácil, há esforço envolvido, mas é possível, sim, desenvolver novas opiniões sobre algum assunto. Você só precisa treinar seu cérebro para reconhecer os sinais. Um dos primeiros e mais relevantes talvez seja a falta de opiniões diferentes da sua em seu círculo social. Por que isso acontece? Agora que você já se familiarizou com os termos, basta se perguntar quais vieses comportamentais o seu almoço em família no final de semana está reforçando. Estariam todos fugindo de qualquer tipo de dissonância cognitiva entre o prato principal e a sobremesa?
Por via das dúvidas, uma boa dica é seguir o conselho que a filósofa, escritora e professora Márcia Tiburi compartilhou na sua palestra InteligênciaPontoCom: pelo menos evite se tornar paranoico. Segundo ela, toda pessoa incapaz de mudar de opinião apresenta uma personalidade paranoica, que despreza totalmente o valor do diálogo.
– Esse tipo de indivíduo é aquele que não consegue conversar porque simplesmente não sabe fazer isso – diz Márcia. – Ele organiza o mundo a partir de um padrão de conhecimento no qual tudo está pronto, e olha tudo à luz de suas próprias experiências. Sendo assim, o que vem de fora, para ele, só pode representar perigo ou ser falso. O paranoico é incapaz de reconhecer que as experiências dos outros podem ampliar seu próprio horizonte.
O centrão ignorado
O jornalismo é um dos campos que sentem as consequências da polarização. Ao se encaixar em uma “turma ideológica”, as pessoas muitas vezes apenas reproduzem conceitos genéricos sobre temas complexos – discursos não raramente embasados na leitura apenas de títulos de reportagens ou mesmo na repercussão de notícias falsas. O resultado, em inúmeros casos? Interlocutores cansados de falar com quem se nega a ouvir.
– As possibilidades de se discutir algo mais complexo, que exige certo tempo de estudo, análise e debate, não compensam mais. E se esse sentimento se abate sobre nós, que somos jornalistas, o que não acontece com a pessoa comum, que vê só gritaria por todo lado? – questiona Jeronimo Teixeira, colunista da revista Veja.
Teixeira acredita que muitas vezes comunicadores se preocupam apenas em tentar convencer os lados polarizados, esquecendo da parcela de público que fica no meio do caminho. Para ele, o interlocutor que “parte de um ponto de vista mais moderado” tem sido preterido:
– É uma pena, pois é melhor dialogar com o público moderado do que com o sujeito que vai em caixas de comentários destilar ofensas.
Esse sentimento de ódio e raiva não pode servir como desculpa para não discutirmos política na esfera pública. É muito fácil dizer que, por causa da insalubridade do debate, você prefere não participar.
XICO SÁ
Jornalista e comunicador
Quem enxerga o momento atual de forma mais otimista é o jornalista Xico Sá, que considera o debate contínuo nas redes sociais um “fenômeno lindo”. Ele defende a ideia de que nunca antes se discutiu tanto a política quanto hoje no Brasil, o que é sinal de amadurecimento.
– Falar diariamente e sem censura sobre a nossa cidadania é algo fenomenal. Talvez em alguns momentos, e são muitos, admito, não exista civilidade nessas discussões. Mas isso é parte do processo. Acho que só o fato de avançarmos para esse momento já é bom demais – comenta Sá.
Outra tese que o jornalista defende é a de que a polarização de opiniões é o reflexo de uma sociedade que ainda está pouco acostumada a debater:
– Esse sentimento de ódio e raiva não pode servir como desculpa para não discutirmos política na esfera pública. É muito fácil dizer que, por causa da insalubridade do debate, você prefere não participar. Não acredito que vamos ter um final hollywoodiano, feliz nas discussões estabelecidas, mas prevejo um processo no qual vamos aprendendo e discutindo cada vez melhor com os outros. É nesse sentido que sou otimista.
De acordo com dados do Monitor do Debate Político no Meio Digital, apenas uma pequena parcela da população brasileira está, de fato, polarizada: algo em torno de 10% a 15%. O que faz esse número parecer maior é uma mistura de vícios cognitivos e algoritmos do Facebook, capazes de potencializar em 20% o processo de se deparar apenas com coisas que estão de acordo com suas crenças em sua timeline.
– Dos 100 milhões de usuários brasileiros do Facebook, apenas 12 milhões estão claramente divididos: 7 milhões no campo antipetista e 5 milhões na esquerda, além dos cerca de 1 milhão de pessoas que se dizem ao centro. Ou seja, trata-se de um número pequeno se pensarmos na totalidade dos usuários – explica Pablo Ortellado.
A verdade é que existem mais pessoas “no meio do caminho” do que se pode imaginar. De acordo com pesquisa encomendada ao Instituto Idea Big Data e divulgada em novembro pelo jornal Valor Econômico, as posições dos brasileiros são menos conservadoras do que indicam as redes sociais.
O olhar mais ponderado da maioria indica, então, que as pessoas estariam mais dispostas a mudar de opinião? Não necessariamente. O risco e a incerteza, advindos de fatores biológicos ou sociais, são algo que nossa espécie aprendeu a evitar ao longo da evolução.
Talvez uma solução seja o bom humor, como sugere Sá:
– Você não pode deixar que a polarização governe a sua vida. Meu conselho é: vai transar! Mas depois volte e continue discutindo, de modo civilizado. Todos vão sair ganhando