O jornalista cearense Lira Neto entregou-se, nos últimos anos, a projetos biográficos para os quais nenhum tema ou região geográfica são estranhos. Já biografou o escritor cearense José de Alencar, o santo popular Padre Cícero, também seu conterrâneo, a cantora carioca Maysa e agora se concentra no gaúcho Getúlio Vargas. Por e-mail, Lira Neto falou a ZH sobre os desafios de biografar o personagem nacional mais importante do século 20:
Zero Hora - Há décadas, comenta-se que Getúlio não tem uma biografia à altura de sua importância na sociedade brasileira. O que o levou a assumir essa empreitada?
Lira Neto - O que me levou a assumir o desafio oi justamente a constatação e o incômodo de não existir até aqui uma biografia, na verdadeira acepção do termo, sobre esse personagem que, sem dúvida, é o mais importante e controvertido de toda a história republicana brasileira. Há centenas de livros sobre Getúlio. Mas a maioria peca pelo impressionismo, pela paixão política e por rancores ideológicos.
ZH - O senhor esteve em Porto Alegre para pesquisar documentos e cenários? O que encontrou no Estado que lhe ajudou a construir o retrato do biografado?
Lira Neto - O Rio Grande ofereceu-me um manancial precioso de documentos. Boa parte da pesquisa foi feita aí. Entre tantos outros, cito apenas um: o caso do assassinato do índio em 1920, crime atribuído a Getúlio por seus inimigos políticos. Lutero Vargas, no livro que escreveu sobre o pai, levantou a tese de homonímia. Mas, como jornalista, eu não poderia me conformar apenas com a palavra do filho. Precisava de fontes mais inequívocas. O meu livro traz, pela primeira vez, os autos do processo. Está tudo lá. Por que ninguém conseguira localizar esses documentos antes? Não foi tão difícil assim. Só precisei de um pouco de disposição e de algum faro jornalístico. Aliás, é isso que sou um repórter. Obcecado por boas histórias.
ZH - Que impressão o senhor tinha de Getúlio antes de começar as pesquisas? E como essa impressão mudou agora que o trabalho está começando a ser publicado?
Lira Neto - Nenhum brasileiro minimamente informado desconhece, em linhas gerais, a trajetória de Getúlio. Isso constitui um desafio a mais para qualquer biógrafo. Não digo que, ao longo do trabalho de pesquisa, minhas "impressões" sobre Getúlio foram alvo de um impacto que, por si só, eu as tenha modificado. Mas, na tarefa de biografá-lo, de vasculhar sua correspondência privada, de ler seus escritos pessoais, compreendi muitas sutilezas e nuances de sua personalidade, que aliás o livro procurar retratar.
ZH - Getúlio Vargas foi um dos líderes políticos sobre o qual mais se escreveu até hoje no Brasil e, ao mesmo tempo, está já a uma distância tal no tempo que seus principais colaboradores já morreram. Como essas duas circunstâncias afetaram o livro?
Lira Neto - Esse é um dilema básico do ofício biográfico. A pesquisa histórica exige o distanciamento que só o tempo proporciona. Ao mesmo tempo, entrevistar pessoas com as quais o biografado conviveu sempre ajuda a enriquecer a reconstituição de cenários e situações. No caso de Getúlio, especialmente na fase compreendida pelo primeiro volume da trilogia, a ausência de testemunhas oculares ainda vivas foi suplantada pelo arquivo monumental do biografado e de pessoas próximas a ele, como Oswaldo Aranha, todos sob a guarda do CPDOC da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
ZH - O senhor relata várias ocasiões em que Getúlio lidou com impasses políticos usando protelações e sinais ambíguos e apresenta as opiniões contrárias que tais expedientes provocavam em homens menos elusivos e mais impetuosos, como João Neves da Fontoura. O senhor crê que o arroubo de João Neves, ao assinar um pacto eleitoral com o governo de Minas para a eleição de 1929, levou Getúlio a reboque?
Lira Neto - Getúlio tinha uma relação muito particular com o tempo. Nunca apressava os acontecimentos. Muitas vezes, passou por hesitante, cauteloso em demasia, não raro por medroso. Mas esse era um dos traços definidores de sua ação política. Era um observador astuto do cenário que o rodeava. Só entrava em ação quando conseguia fazer uma leitura completa da conjuntura, sopesando possibilidades e riscos. Em geral, não se arriscava. Preferia aguardar o momento propício. Foi isso que lhe deu um extraordinário senso de oportunidade histórica. Foi por isso também que, mesmo quando compelido a sair da sombra pela força do pacto de Neves com os mineiros, continuou no controle da situação, em movimentos calculados para não destruir todas as pontes que pudessem lhe permitir uma margem de manobra razoável para, inclusive, recuar se fosse preciso.
ZH - Boa parte do primeiro volume é uma detalhada reconstituição do ambiente político gaúcho durante a infância e a juventude de Getúlio. Em algum momento, o senhor teve alguma dúvida se o livro estava "gaúcho demais"?
Lira Neto - Mas o primeiro volume da trilogia tinha mesmo a obrigação de ser o "mais gaúcho possível". Só entendendo o Rio Grande do Sul e suas circunstâncias históricas é possível entender a trajetória futura de Getúlio. Impossível compreender o getulismo sem entender antes o que foi o castilhismo-borgismo, por exemplo. Ao mesmo tempo, embora a narrativa se passe essencialmente no Rio Grande, procurei mostrar o que há de mais universal nos dramas internos nessa grande saga gaúcha. Além do mais, nunca entendi por que só a história do Rio de Janeiro e de São Paulo são consideradas "nacionais" enquanto a história dos outros Estados são tidas como "regionais".
ZH - Face a momentos de encruzilhada, como aceitar a candidatura ou empreender a revolução para tomada de poder, já se percebe nas cartas e no diário de Getúlio o suicídio como última saída. A que o senhor atribui esse fatalismo da psique de Getúlio?
Lira Neto - Não tenho o instrumental necessário para fazer análises desse teor, sob pena de cair em alguma espécie de esquematismo psicológico, ou seja, em um psicologismo de botequim. Mas não há dúvida de que o suicídio foi uma saída extrema sempre cogitada, em vários momentos da trajetória de Getúlio.
ZH -Percebe-se na leitura que, apesar de tudo o que deixou anotado e escrito, Getúlio ainda é um desafio para a compreensão de sua psique complexa. Como o senhor lidou com esse desafio?
Lira Neto - As muitas ambivalências e contradições de Getúlio foram responsáveis pela construção de alguns clichês em torno de sua figura histórica. O da "eterna esfinge" é um deles. Não tive a intenção de "desvendar" Getúlio. Muito pelo contrário, trabalhei com o intuito de provocar novas interrogações sobre ele.
ZH - Vargas ainda está presente na política nacional?
Lira Neto - Respondo-lhe, a propósito, com outra pergunta. Alguém pode ter alguma dúvida sobre isso? FHC disse que é preciso virar a página histórica da Era Vargas. Portanto, a tal página ainda está aberta. Lula colocou o nome de Getúlio no Panteão dos Heróis da Pátria, e Dilma afirma que ele ajudou o Brasil a conquistar sua soberania. A CLT é alvo constante de discussões. Getúlio, para o bem e para o mal, está mais vivo do que nunca.