Áudios, áudios e mais áudios – entremeados por alguns emojis, para mudar pelo menos um pouquinho o tom da conversa – preenchem a tela do celular da engraxate Vera Pereira da Silva em Porto Alegre. Nesse "diálogo" no WhatsApp com uma amiga, assim como acontece com tantos outros contatos dela, há bem mais gravações de voz do que palavras escritas.
— Por mim, mandaria só áudio. É muito melhor do que escrever. Falando, todo mundo entende — defende Vera, antes de mandar uma mensagem para um dos grupos de que participa no aplicativo.
— Pessoal, vocês nem vão acreditar: estou aqui dando entrevista!
Para Vera e uma parcela significativa de brasileiros, enviar áudios virou a forma preferida de se comunicar virtualmente. Os entusiastas da voz garantem que, assim, a compreensão fica muito mais fácil: não há, como no texto, tanta margem para interpretações diferentes; a entonação, a urgência ou a serenidade ao falar expressam muito mais do que a escrita, mesmo quando auxiliada pelos emojis. E também entra em jogo a praticidade, já que é possível gravar uma mensagem enquanto se faz outras atividades, e até mesmo a segurança, pois se pode manter o olhar atento aos arredores, sem a necessidade de baixar a cabeça e digitar.
— Acho que uns 80% das mensagens que mando são de áudio. E ainda não vi ninguém reclamando. É bom porque você pode parar, dividir a conversa, ir falando aos poucos... realmente não vejo desvantagem — avalia o taxista Júlio Fraga, 33 anos.
Há, porém, quem não goste – nem de enviar, nem de receber mensagens de voz. O arquiteto Alex Warth, 34 anos, entende que pode ser até mais prático para quem está falando, mas ouvir não é tão simples assim. Em público, no trabalho, receber arquivos de áudio, ele estima, é um passaporte para consternação e armadilhas.
— Sempre tem um engraçadinho que manda algo constrangedor, então não dá para aliviar. Melhor mandar texto, que é mais fácil de ver e não causa esse tipo de problema.
Já a estudante Anna Theresa Scussel, 24 anos, vê prós e contras no envio de áudios. Para ela, há situações em que a gravação favorece: contar uma longa história, por exemplo. Finda a narração, se mais alguém quiser ouvir, é só encaminhar o arquivo que, mesmo expressando riqueza de detalhes, não se espalha por polegadas e mais polegadas da tela. Contudo, nem sempre é falando que as pessoas se entendem melhor.
— Sou meio agressiva falando, e também debochada. Tem quem não entenda, então muitas vezes prefiro me expressar escrevendo.
Do lado oposto está a engraxate Vera, que lamenta apenas quando alguns de seus contatos reclamam porque, por problemas no próprio aparelho, não conseguem ouvir as mensagens.
— Aí sou obrigada a escrever. Mas demora muito mais! — diverte-se.
A tecnologia a serviço da tradição: a oralidade brasileira
O celular passou a ser usado por muitos de um jeito, talvez, estranho: não mais encostado na orelha, para que se possa ouvir e falar ao mesmo tempo, mas em uma posição quase horizontal, posto diretamente à frente da boca. Como se estivessem gravando notas para si mesmas, diversas pessoas passaram a empunhar o telefone móvel como uma espécie de microfone.
O hábito de falar ao telefone, mais do que o envio de imagens ou a realização de videochamadas, chamou atenção até do cofundador do WhatsApp como uma prática tipicamente brasileira. Em entrevista à revista Exame, Brian Acton disse que "o brasileiro usa muito a voz". "Vocês gostam de falar, creio eu. É uma característica cultural", definiu ele.
Mas por que esse "gostar de falar" tem sobressaído em forma de mensagens de áudio, e não mais tanto nas tradicionais ligações? Para pesquisadores de psicologia e comunicação ouvidos por GaúchaZH, a vantagem de poder enviar recados a qualquer hora, independente de o interlocutor estar ou não presente, é uma das facilidades trazidas pelo áudio – que também pode satisfazer uma questão cultural do país.
— Me parece que tem a ver com a cultura oral brasileira, sim, mas isso também está diretamente ligado à deficiência da cultura escrita. Naturalmente, é mais difícil escrever do que falar: gasta-se menos tempo, posso falar enquanto caminho, até enquanto dirijo — explica Flávio Roberto Meurer, coordenador dos cursos de Comunicação Social na Univates.
Praticidade, pressa, distâncias mais longas entre pessoas, pouco tempo para dar conta de tudo. O que resta é recorrer às tecnologias que possam auxiliar a lidar com as demandas.
CAROLINA LISBOA
Psicóloga
O WhatsApp não divulga dados específicos sobre o volume de dados enviados via aplicativo, nem segmenta esses números por categoria (texto, áudio, foto, vídeo). Mas uma pesquisa realizada no Brasil em julho deste ano ouviu 1.868 pessoas com smartphones e acesso à internet para descobrir seus hábitos em relação aos apps de mensagens.
O estudo, divulgado em agosto, mostrou que 98% dos usuários do WhatsApp mandam mensagens de texto e 76% afirmam trocam também recados em áudio. O que poderia explicar um percentual tão expressivo daqueles que gostam de usar a voz?
— Praticidade, pressa, distâncias mais longas entre pessoas e espaços, pouco tempo para dar conta de tudo: trabalho, lazer, família, reflexões, cuidados pessoais, entre outros aspectos. O que resta é recorrer às tecnologias que possam auxiliar a lidar com as demandas — pondera a psicóloga cognitivo-comportamental Carolina Lisboa.
— A possibilidade de envio de áudio ajuda a reduzir erros de interpretação de mensagem. Além disso, esse recurso pode ser utilizado sem a necessidade de olhar diretamente para tela, o que facilita o uso dependendo do ambiente no qual a pessoa se encontra — complementa Karen Sica, professora da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS.
"Déficit de habilidades sociais" versus a segurança da entonação
Esse hábito, contudo, traz reflexões sobre um possível prejuízo ao diálogo. Gravar mensagens de áudio em um aplicativo, afinal, não passa de uma forma de mandar recados: alguém fala, alguém talvez responda, mas não há efetivamente conversa, diálogo, uma troca de experiências que tradicionalmente representa a comunicação eficiente.
— As tecnologias da informação e comunicação têm o risco de gerar um déficit em habilidades sociais (saber dizer não, olhar olho no olho ou ler as emoções faciais), porque, de uma maneira geral, não permitem o diálogo ou ao menos a interação face a face — reflete Carolina, também professora da pós-graduação em psicologia da PUCRS.
No entendimento de alguns pesquisadores, porém, isso não significa que a comunicação por meio de áudio seja menos eficiente: seria só uma nova forma de trocar ideias.
— Isso altera um pouco a dinâmica da conversa, posso pensar no que vou responder, editar etc., só que, ao conversarmos no telefone, também estamos falando com uma máquina, em última instância. Mas, vejamos: algumas pessoas se desentendiam nas mensagens de texto justamente porque no texto faltava a entonação, por exemplo, que pode fazer diferença no sentido de uma conversa. O áudio supre essa lacuna. Talvez esse seja também um fator importante — afirma Flávio Meurer, em resposta dada por e-mail.
— Embora o retorno não seja imediato, pois depende da disponibilidade do outro indivíduo, a comunicação existe — define Karen Sica.
Para Meurer, mais e mais pessoas devem vencer alguma barreira tecnológica que ainda exista para, em breve, fazer uso das novas ferramentas de comunicação:
— Na verdade, o que me parece expressivo é o número dos que usam texto ainda. Creio que a tendência é que esse número diminua ainda mais, ainda que algumas pessoas, eu, por exemplo, se sintam estranhas mandando áudios e continuem preferindo o texto.