Por Gabriel Magadan
Doutor em Direito Civil (UFRGS), mestre em Direito da Romano e da Unificação (Università di Roma Tor Vergata), advogado em Porto Alegre
Em seus últimos momentos, em 1924, padecendo de tuberculose, Franz Kafka, resoluto, escreveu o que seria a derradeira vontade, em um bilhete ao amigo Max Brod: “Caríssimo Max, minha última exigência: tudo o que escrevi deve ser queimado”. Brod viu-se num dilema, queimar ou não os originais de que ficara depositário. Optou por não cumprir aquele último desejo, preservando para a posteridade, dentre tantos, os originais de O Processo e O Castelo. Somente sete livros de Kafka haviam sido publicados em vida, um sexto de sua obra conhecida. Mais tarde, Brod justificou-se dizendo ter agido conforme a “verdadeira vontade de Kafka”. A despeito do desejo do escritor, os manuscritos sobreviventes encontram novo destino, mais de meio século após a sua morte. Em uma disputa judicial, entre herdeiras casuais, duas nações, e uma ferrenha discussão sobre direitos, tradição cultural e pertencimento.
O caso ocorreu na segunda metade da década passada em diante e teve ampla cobertura na imprensa internacional. O escritor e jornalista Benjamim Balint retratou essa história no livro Kafka’s Last Trial, The Case of a Literary Legacy, sem tradução no Brasil. Para contá-la, cabe uma digressão. Franz Kafka e Max Brod se conheceram em 1902, na universidade em Praga, e mantiveram uma longa amizade, registrada em incontáveis trocas de cartas e anotações recíprocas. Em 1939, com o início da perseguição nazista aos judeus, e na iminência do fechamento das fronteiras, Brod parte para a Palestina. Leva consigo os manuscritos de Kafka.
Brod teve uma carreira prolífica marcada pelo seu ativismo entorno do movimento judaico. Ao falecer, em 1968, os textos ficaram a cargo de Esther Hoffe, sua assistente. Esther e sua mãe viveram juntas por quase 40 anos no mesmo apartamento em que ficaram os originais de Kafka. Lá, viviam ainda mais de 20 gatos, que, dizia-se, andavam livremente por sobre os livros.
Em 2007, suas filhas Eva Hoffe e Ruth Wiesler herdam os manuscritos, manifestando a intenção de vendê-los à Biblioteca de Marbach, na Alemanha. Eis o conflito armado. As irmãs são questionadas na Corte de Israel pela Biblioteca Nacional desse Estado, em contenda que se arrastou por anos. O escritor Philip Roth, no auge do processo, chegou a dizer que se tratava de uma sinistra ironia kafkiana, perpetrada pela cultura ocidental, que pretendia relegar Kafka à pátria alemã.
A filósofa britânica Judith Butler, em artigo na London Review of Books, questionou como o legado do autor havia se tornado uma mercadoria e reivindicou para Israel os originais. A nacionalidade de Kafka, nascido em Praga, judeu, e escrevia em alemão, sempre foi motivo de intenso debate sobre a sua identidade literária. A quem, afinal, pertencia Kafka? Foi a dúvida que permeou o debate judicial e o ambiente da literatura. Sempre acompanhado por diferentes posições e argumentos que variaram a respeito de ancestralidade, judaísmo, Holocausto, as condutas de Brod e das herdeiras Hoffe, atacadas por seus interesses pecuniários. O legado, por sua vez, seguiu um caminho inquietante, com certo efeito de estranhamento, como o da literatura de Kafka, e errante como suas origens.
Walter Benjamim, que escreveu artigos e analisou textos de Kafka alguns anos após a sua morte, sobre o ato de Brod, chegou a afirmar que fora uma “fidelidade contra Kafka”. Brod salvou o autor das chamas e do anonimato. Para muitos, ele seria o seu verdadeiro criador, levando toda uma vida a sacralizar o seu legado. Editou e publicou seus livros, muitos inéditos, suas cartas, e até uma biografia (Franz Kafka: a Biography, Schoken Books, 1960). Sempre cuidando para delinear características que exaltavam a figura do amigo. Se sua atitude fora considerada traição, é certo que trouxe também luz a um dos maiores gênios da literatura ocidental do século 20, ao lado de cânones como Proust e Joyce, segundo o crítico Harold Bloom (The Western Canon, Riverhad Books, 1994).
No conto O Veredicto, o poder autocrático de um pai condena o filho à pena capital. O filho julgado, e condenado, como se vê também em Metamorfose e Amérika, repete-se, viciosamente; a vida imita a arte. Kafka pretendia queimar seus escritos em sentença a ser executada por seu fraterno amigo. O executor não atende ao desejo e se arvora magistrado do destino do seu espólio, levando-o consigo às suas raízes. O pecado da traição se revela perverso. Em 2016, a suprema corte de Israel considerou que a Biblioteca Nacional deveria ser a depositária do acervo de Kafka. Aclamada por suposta coerência, a decisão evocou a longa espera do personagem do conto-parábola Na Porta da Lei, tão infindável como a ânsia por uma justiça que não chega; no banco, à espera, ficou Kafka, cujo desejo fora ignorado. À senhora Hoffe, para a quem “a palavra ‘justiça’ fora riscada do léxico”, restou espernear e urdir em conjecturas; morta em 2018, aos 85 anos, deixou a esmo seus gatos e algumas linhas do capítulo de uma história em que o imaginário e o real teimam se encontrar.
No mesmo ano, a biblioteca anunciou que tinha iniciado a catalogar os manuscritos de Kafka.