Publicado em 2006, Roberto Carlos em Detalhes (ed. Planeta) mudou a forma como o Brasil pensa as biografias de seus grandes personagens. O livro do professor, pesquisador e jornalista Paulo César de Araújo chegou a ser recolhido das livrarias, em um longo imbróglio de algum modo encerrado quando, em 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) pronunciou-se contrário à exigência de aprovação do biografado para a publicação de uma biografia – o que era defendido pelos artistas unidos em torno do grupo Procure Saber.
Naquele mesmo ano de 2014, Araújo lançou O Réu e o Rei: Minha História com Roberto Carlos, em Detalhes (Cia. das Letras). Agora, o biógrafo volta com Roberto Carlos Outra Vez (Record), mais um relato sobre o Rei, desta vez estruturado a partir de suas canções. Com quase mil páginas divididas em 50 capítulos, o livro é somente o volume 1 – a segunda parte sairá em 2022, como o autor explica nesta entrevista, na qual também avalia os episódios decorridos nessa década e meia de pesquisas, publicações e discussões públicas sobre a postura do mais popular artista do Brasil.
O formato de Roberto Carlos Outra Vez chama a atenção: começa com um ensaio e depois há 50 capítulos, cada um partindo de uma música representativa da época em questão. Mas é uma narrativa biográfica. Por que a escolha desse formato? Houve algum tipo de negociação com o biografado depois dos episódios envolvendo Roberto Carlos em Detalhes?
Considero toda a questão jurídica após a publicação de Roberto Carlos em Detalhes finalizada. O livro de 2006, para mim, é uma página virada. Não há mais o que considerar a respeito. Quando publiquei O Réu e o Rei, em 2014, o STF ainda não havia se manifestado sobre a questão. Ali ainda havia uma dúvida: o que vai prevalecer, o direito do público à informação ou a ideia de que a história é uma propriedade particular, como Roberto e seus advogados defendiam? Mas, depois que os nove ministros da Corte se manifestaram veementemente a favor do direito à informação – o que ocorreu logo em seguida –, a questão se encerrou. Quando se trata de figura pública, como é o caso do Roberto, o que prevalece é o direito à informação. Então não há negociação, não tem necessidade disso. O formato de Roberto Carlos Outra Vez é simplesmente o que achei que seria o mais adequado para esse livro.
Por quê?
Em primeiro lugar, porque eu queria fazer algo diferente. Gosto de pensar as biografias com formato diferente sempre, prefiro isso do que somente seguir a linearidade da vida do biografado, tanto que, em Roberto Carlos em Detalhes, eu havia trabalhado a construção da narrativa a partir de temas – a fé, o rádio, o amor etc. Pude colocar os acontecimentos em ordem cronológica, mas pensando dentro desses temas. No caso do novo livro, tudo começou com o ensaio inicial. O que digo ali foi o que me guiou.
Você afirma, nesse ensaio, que a formação do Roberto, em um caldeirão que reúne rock, brega e bossa, foi o diferencial para a identidade musical dele e para a consequente popularidade gigantesca que obteve. Você solta as amarras dos textos mais essencialmente descritivos e começa o livro fazendo uma interpretação sobre a obra do biografado.
O que eu queria, em Roberto Carlos Outra Vez, era dar ênfase à canção do Roberto. É a grande contribuição dele para a cultura brasileira. E acho que isso nem sempre é enfatizado. Parece-me que, nas últimas décadas, fala-se muito mais no Roberto Carlos supersticioso, no Roberto Carlos censor de livro, no Roberto Carlos do especial da Globo. E menos na obra em si, na importância dessa obra musical. Minha intenção foi jogar luz sobre isso, sobre a obra musical. A explicação usual, de que ele foi um produto da televisão, faz sentido. Sem dúvida a TV contribuiu para o sucesso dele. Mas o que foi determinante para ele ser quem é na música e na cultura do país foi a construção de um tipo de canção, a “canção do Roberto”, que é quase um subgênero da música brasileira, pelo seu caráter único, inigualável – que se deve muito a essa tripla formação dele entre o rock, o brega e a bossa nova. O fato de as canções remeterem a fatos da vida dele facilitou a estruturação do livro a partir disso, mas não foi fácil organizar a vida conforme as letras.
Tenho compromisso com as minhas fontes, com o que elas dizem, com o relato fiel a elas. Tudo o que ocorreu ali (os processos judiciais após a publicação de Roberto Carlos em Detalhes) foi no âmbito da interpretação. Não fui acusado de calúnia, por exemplo, que seria algo mais objetivo. Só questões subjetivas, de interpretação.
Como foi essa estruturação?
Pensar os 50 capítulos deste livro, mais os 50 do volume 2, a partir das músicas, foi como montar um quebra-cabeça. Tive de jogar canções para lá, para cá, rearranjar. Caminhoneiro, por exemplo, estaria no primeiro volume, mas acabou passando para o segundo. Traumas também: entraria logo depois de O Divã (música do capítulo 1 do volume 1). Só a desloquei para 1972, que foi o ano em que Traumas foi lançada, porque achei que O Divã já resolvia bem os acontecimentos abordados no trecho sobre a infância de Roberto nos anos 1940. Você não imagina como foi complexo elaborar essa divisão.
O Volume 2 já tem a estrutura pronta?
Sim, as músicas todas estão definidas. Será mais tranquilo para mim, porque resolver o quebra-cabeça foi o mais difícil de todo o projeto. Será um volume menor, porque a vida do artista na maturidade se estabilizou de alguma forma. Fora o fato de que ele lançou muitos clássicos nos anos 1960 (período contemplado no volume 1), e a própria época foi muito turbulenta no país. Então, o volume 1 ficou com mais páginas. Agora, é importante deixar claro que não são só cem músicas as abordadas. Nesse primeiro volume, por exemplo, todas as 141 canções que ele gravou nos 10 discos do período (1941-1970) são citadas em meio ao texto. Associar cada capítulo a uma canção é um mote, apenas.
Por favor, fala um pouco mais sobre essa tripla formação e por que ela foi fundamental para construir essa figura do Rei na música brasileira.
Antes quero esclarecer que os episódios mais corriqueiros e mundanos da vida dele também são abordados. O episódio recente em que ele ficou sem gasolina nas ruas do Rio de Janeiro, algo que tomou conta do noticiário nacional (no dia 23 de novembro), por exemplo, estará no segundo volume. O que é notícia e aparece na midiatização da figura dele é abordado. Por isso também devo esclarecer que se trata de uma biografia em construção. É o que ocorre quando a gente biografa alguém ainda vivo, na ativa e bastante presente no imaginário popular. Sobre essa formação, quando falo em “canção do Roberto”, quero deixar claro que não falo só da composição, mas também do intérprete. Da figura do Rei, mesmo. Ele sempre foi elogiado como cantor, considerado pelos críticos e pesquisadores um dos maiores cantores de todos os tempos, uma referência na música brasileira pós-João Gilberto. Isso me parece que está bem mapeado, esse Roberto pós-bossa, o cantor moderno, com clareza de expressão, sem vibrato, com altos recursos expressivos de voz. Essa sua faceta bossa ele conservou e sempre foi valorizada. E ela entra no caldeirão que também colhe as referências do rock, notáveis a partir da Jovem Guarda, e da chamada música brega. Essa música, de caráter mais popular e mesmo regional, sempre foi vista com algum preconceito. Invariavelmente foi abordada a partir de adjetivos na historiografia da música brasileira. E isso acho que prejudicou avaliações inclusive feitas sobre o próprio Roberto. Não dá para abordar o que chamo de “canção do Roberto” sem levar em conta toda essa mistura, todos os componentes desse grande caldeirão.
Não tem como eles (artistas como Caetano Veloso e Chico Buarque) negarem. Quem for fazer as biografias deles terá de abordar isso (o fato de terem integrado o grupo Procure Saber), queiram eles esconder essa postura que tiveram ou não. Não haverá como os artistas desse grupo varrerem para baixo do tapete essa postura que tiveram.
Você também é um pesquisador da música brega, tendo lançado, em 2002, Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar.
Esse livro terá uma edição comemorativa de 20 anos em 2022. Ele se tornou uma referência porque, além de tirar os adjetivos na abordagem dessa música, olhou com atenção para ela, constatando, por exemplo, que seus artistas também foram vítimas da censura da ditadura. Não foi só a música mais elitizada que sofreu com a repressão. Hoje a gente já vê mais abordagens assim da música brega, em livros, reportagens, pesquisas em geral, mas, duas décadas atrás, era raro. Era uma adjetivação só. Esse inclusive foi um dos motivos que me fizeram mergulhar na música brega à época.
O que sua apuração dos fatos envolvendo Roberto Carlos pôde ser aprofundada nos 15 anos desde a publicação do primeiro livro biográfico sobre ele e após todos os episódios decorrentes dessa publicação?
A gente amadurece diante da apuração. Nosso segundo olhar para determinadas coisas pode ser bem diferente do primeiro. Eu havia entrevistado 160 pessoas para esse primeiro livro. Voltei a todas as fitas com as gravações dessas entrevistas. Ouvi tudo de novo. E percebi que eu havia deixado passar detalhes que mereciam atenção. Há vários pormenores de histórias que deixei de lado antes e que agora surgem incrementando a narrativa dos acontecimentos em Roberto Carlos Outra Vez. Também consegui localizar outras pessoas que não havia podido ouvir na versão original. Realizei novas entrevistas para esse novo livro, com alguns testemunhos que enriqueceram os relatos, caso, por exemplo, da Rosa Maria Dias, que estava presente quando Roberto visitou Caetano Veloso no exílio, em Londres, em novembro de 1969 (episódio abordado no capítulo 44, aberto com a música As Curvas da Estrada de Santos). Saber a visão dela, que estava lá e viu tudo acontecer, é diferente de basear o relato apenas no que disse Caetano. Também consegui incrementar, no capítulo A Namoradinha de um Amigo Meu (capítulo 22), a história da então jovem Maria Stella Splendore, para quem colunas de fofoca apontaram que Roberto havia composto essa música. Depois da publicação de Roberto Carlos em Detalhes, e só depois da publicação desse livro, a própria Maria Stella confirmou que teve um caso extraconjugal com Roberto (ela era namorada do costureiro Dener, amigo do cantor). É muito diferente entrar nesse episódio tendo essa palavra dela ou então tendo apenas os registros das colunas de fofoca. Sem contar que, agora, pude absorver novos documentos, como os livros que saíram sobre Erasmo Carlos (a autobiografia Minha Fama de Mau), Wanderléa (a autobiografia Foi Assim), entre outros. Tudo ajudou a enriquecer a construção da biografia do Roberto.
Roberto Carlos o acusou de injúria e difamação no processo que levou à retirada de circulação de Roberto Carlos em Detalhes. Você se arrepende de algum trecho ou de alguma decisão que tomou à época e que acabou dando margem a essas acusações?
Não. Minha interpretação do que diz a Constituição era e continua sendo a mesma – e agora está chancelada pelo que os ministros do STF disseram: a trajetória de uma figura pública é uma história pública, e não privada. E essa questão legal acho que deve preocupar mais a editora. Eu tenho compromisso com as minhas fontes, com o que elas dizem, com o relato fiel a elas. Para a elaboração de O Réu e o Rei, fui nos processos judiciais e os destrinchei. Falo no plural porque, além do Roberto, fui processado também pelo fotógrafo dele. Tudo o que ocorreu ali, tudo o que eles alegaram foi no âmbito da interpretação. Não fui acusado de calúnia, por exemplo, que seria algo mais objetivo. Injúria e difamação dizem respeito à ideia de invasão de privacidade, que é o que foi sustentado pelos advogados do Roberto. Também teve uso não autorizado da imagem dele, algo sustentado pelo fotógrafo. Mas em geral eram questões subjetivas, de interpretação. Não o caluniei, isso é que é importante. Então não me arrependo de nada.
O debate à época ganhou enorme repercussão e mudou a forma como vemos a publicação de biografias no Brasil, abrindo caminho para muitas outras publicações do gênero. Foi um divisor de águas. Não tira um peso das costas escrever e lançar uma biografia depois daquilo?
Sinceramente? Não. É claro que haver uma interpretação da suprema corte muda o cenário, tanto que, como você disse, tudo mudou ali. Mas minha consciência e meus compromissos seguem os mesmos. Acho importante para o país que agora a gente tenha mais publicações desse tipo, e isso de fato a gente parece ter tido. Uma coisa é alguém reproduzir uma criação artística, uma música, um livro, um filme etc. com objetivos comerciais. Outra é contar uma história, após apuração, em um livro, em uma revista, em um jornal, enfim, um veículo de comunicação. Há diferença, e isso já era óbvio antes. Menos mal que agora há uma interpretação do STF confirmando essa ideia. É claro que um juiz de primeira instância pode achar diferente, tudo é possível. Mas agora essa eventual decisão diferente não mais prosperará.
Olhando em retrospectiva a partir de hoje, vários anos depois: o que te pareceu a atuação de artistas como Caetano Veloso e Chico Buarque, que estiveram por trás do grupo Procure Saber, aliando-se ao entendimento de Roberto Carlos e apoiando a exigência de autorização do biografado ou dos detentores dos direitos sobre sua obra para a publicação de uma biografia?
Isso ficou marcado, não tem como eles negarem depois. Quem for fazer as biografias deles terá de abordar isso, queiram eles esconder essa postura que tiveram ou não. A ideia de esconder combina bem com essa postura, inclusive. Biografias não devem esconder os fatos; devem abordar tudo, mesmo que a figura pública biografada queira varrer para baixo do tapete algo de sua trajetória. Não haverá como os artistas do grupo Procure Saber varrerem para baixo do tapete essa postura que tiveram.
Roberto Carlos já se manifestou sobre o novo livro?
Não. Não acredito que vá se manifestar. Acho inclusive que está sendo aconselhado a ficar na dele. Já saíram outros livros sobre ele recentemente, o do Tito Guedes (Querem Acabar Comigo: da Jovem Guarda ao Trono, a Trajetória de Roberto Carlos na Visão da Crítica Musical) e o do Jotabê Medeiros (Roberto Carlos – Por Isso Essa Voz Tamanha, ambos publicados em 2021). Não creio que ele tenha se manifestado sobre nenhuma das duas, ao menos não de uma forma mais forte. Quando lancei O Réu e o Rei, ele chegou a soltar uma nota. Dizia que ali não iria me processar porque eu estava contando a minha história, e não a dele. É até engraçado pensar dessa forma, pois a história que contei era nossa, de nós dois. De todo modo, relembrando, O Réu e o Rei saiu no contexto das discussões judiciais, mas antes da manifestação do STF. O contexto atual é posterior ao entendimento dos ministros. Por isso acho que, desta vez, ele não falará nada.