A Capital abriga um dos maiores eventos literários a céu aberto da América Latina, a Feira do Livro de Porto Alegre, que encerrou a sua 67ª edição no dia 15 de novembro movimentando o setor e promovendo milhares de títulos. Mas como estão distribuídas as livrarias que ainda sobrevivem na cidade, enfrentando a concorrência do comércio eletrônico? Um estudo realizado pela startup Space Hunters, que presta consultoria para empresas que querem encontrar pontos comerciais, traz dados que permitem um mapeamento dessa realidade.
Hoje, 104 estabelecimentos seguem abertos. Em uma cidade como Porto Alegre, que abriga quase 1,5 milhão de habitantes, é como se houvesse uma livraria para cada grupo de 14 mil pessoas. A maior concentração deste tipo de empreendimento está no Centro Histórico, na Cidade Baixa e no Bom Fim — neste último, as lojas estão na Avenida Osvaldo Aranha ou muito próximas a ela, sem se aprofundar no bairro.
Fora dessas três regiões, existem poucos estabelecimentos espalhados, que estão em shoppings ou são voltados a nichos, como religiosos ou jurídicos – ou, ainda, dividem espaço com papelaria. A análise, realizada pelo arquiteto e urbanista Francisco Maraschim Zancan, CEO da Space Hunters, mapeou as informações de empreendimentos que se autodenominam livrarias no Google e cruzou a localização deles com o software Space Data, que reúne dados socioeconômicos públicos em tempo real para analisar o potencial da abertura de negócios e fazer outras inferências relacionadas à inteligência de cidades.
O objetivo do estudo foi realizar uma análise urbanística da relação entre a cidade e suas livrarias, observando em quais regiões elas se concentram, próximas a quais outros tipos de negócios se encontram, os motivos de elas estarem onde estão e, ainda, apontar regiões inexploradas em que novas livrarias poderiam ser instaladas na cidade.
Um dos pontos de destaque trazidos por este levantamento foi a baixa correlação entre a presença de livrarias e a proximidade de escolas ou estabelecimentos culturais em Porto Alegre. O estudo enfatiza como exemplos a Vila Ipiranga e o Jardim Itu, que contam com sete colégios, mas sem livrarias por perto. Os empreendimentos dedicados aos livros, na verdade, estão mais presentes nas proximidades de lojas de vestuário. E isto pode ser observado até mesmo em regiões afastadas, como a Restinga e a Hípica.
De acordo com Zancan, ao analisar os dados, percebeu-se uma relação entre zonas que possuem muito comércio de rua e a existência de livrarias:
— A relação de livrarias com a cidade está muito mais atrelada à relação da população com a cidade em si do que necessariamente à existência de escolas, até porque temos bairros com níveis de escolaridade muito altos, mas nos quais não existe nenhuma livraria, como é o caso do Petrópolis. O nível de instrução ali é alto, com várias instituições de ensino, a população tem um alto padrão de renda, mas não tem livraria naquele bairro. E as pessoas provavelmente consomem livros.
Isatir Bottin Filho, presidente da Câmara Rio-grandense do Livro (CRL) e dono da livraria Isasul, no Centro, aponta uma hipótese para os comércios livreiros não estarem próximos de escolas: as editoras de livros didáticos fazem vendas corporativas diretamente para as instituições de ensino, eliminando o papel das livrarias como intermediárias.
— O mercado vai indo para o lado que tem mais lucratividade. As livrarias estão mais perto do varejo porque é onde atrai, onde é forte e faz com que as pessoas passem em frente de uma livraria. Assim, elas acabam entrando, procurando e achando alguma coisa — destaca Bottin Filho.
Caminhada
A pesquisa da Space Hunters destaca o fato de as livrarias estarem mais concentradas nos locais com intenso movimento de pedestres, além de estes bairros possuírem uma densidade demográfica maior em relação aos demais. Segundo Zancan, o Plano Diretor não permite mais uma taxa de ocupação como nos bairros mais antigos da Capital, e isso faz com que as regiões mais novas tenham menos pessoas circulando nas ruas e, consequentemente, os negócios tenham dificuldades para sobreviver com o baixo vaivém pelas calçadas.
A experiência da Livraria Taverna na pandemia vai ao encontro dessa ideia. O local se viu com dificuldades de sobreviver, uma vez que dependia dos eventos presenciais para manter o fluxo de visitantes na Rua Fernando Machado, que é majoritariamente residencial. A solução encontrada foi avançar algumas quadras em direção ao coração do Centro Histórico e se instalar no térreo da Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ). Ali, o sócio Ederson Lopes viu que a alta taxa de transeuntes fez com que o seu empreendimento fosse mais procurado, mesmo sem as atividades extras.
— Tivemos uma loja em uma rua que era mais residencial e, realmente, não é muito fácil conseguir um grande fluxo de vendas, porque o número de pessoas que transita pela região é basicamente o mesmo, que são os moradores. É diferente de uma padaria, por exemplo, na qual as pessoas vão lá e consomem todos os dias. Nas livrarias, os bons clientes, aqueles que são leitores vorazes, passam e compram dois, três livros e, depois, só no outro mês — aponta Lopes.
Esta proximidade com o comércio de rua também faz com que a PocketStore, uma jovem livraria aberta em março de 2019, venha ganhando espaço, conforme o proprietário Ivan Pinheiro Machado. Mesmo que tenha escolhido o local onde instalaria o seu comércio apenas por gostar da região, no número 1.167 da Rua Félix da Cunha, no Moinhos de Vento, sem ter feito um estudo, o empresário acredita que acertou o ponto, justamente por se inserir no meio do comércio de rua.
— O movimento da livraria está crescendo, as pessoas estão conhecendo e gostando. Esse é um bom lugar, com um fluxo interessante de visitantes. Não se encontra uma livraria em um lugar em que não haja uma certa qualidade de vida. Infelizmente, nós não estamos em um país onde podemos dizer que se pode montar uma livraria em qualquer lugar da cidade — destaca o proprietário da PocketStore.
Experiência
Para quem está pensando em se jogar na aventura de abrir uma livraria em Porto Alegre, indo em direção aos locais com comércios de rua para catapultar a empreitada, o bairro Auxiliadora pode ser uma boa aposta, segundo a Space Hunters: tem uma densidade populacional alta, de aproximadamente 97 habitantes por hectare — um bom índice é acima de 70 —, diversificação de negócios e renda média de R$ 10,8 mil.
Porém, com as facilidades que o comércio digital oferece, antes de embarcar no mundo empreendedor, Zancan acredita que é preciso pensar em oferecer algo a mais, uma experiência que faça valer a pena o deslocamento até o local. Pinheiro Machado, por exemplo, destaca que a PocketStore aposta em uma cuidadosa curadoria.
— A livraria tem uma personalidade. Não é só jogar os livros. Cada livro que está exposto aqui está exposto porque é importante. Nós temos um mix, uma polifonia. São várias vozes. Quando começamos com a livraria, tinha uma Saraiva enorme aqui na frente. A gente tinha convicção, a gente sabia exatamente qual era o nosso projeto. E sabia que o nosso projeto era totalmente diferente daquele da Saraiva. Tanto é que, depois, a Saraiva acabou fechando e nós ainda estamos aí, né? — ressalta.
Já o presidente da CRL enfatiza que as livrarias estão ficando cada vez mais raras e, por isso, a experiência é importante, para que o consumidor tenha algo além do que simplesmente entrar em um comércio para comprar.
— O passeio tem que ter um valor agregado. Pesquisas indicam que, quanto mais tempo uma pessoa fica em um comércio, mais chances ela tem de comprar, de gastar mais, porque ela está se sentindo bem lá, confortável. Um café e até um bate-papo com o livreiro caem bem — pontua.
Já o proprietário da Livraria Taverna acredita que, apesar da localização ser importante, um bom atendimento é o diferencial que faz com que as pessoas sejam fidelizadas.
— Sempre tivemos um bom fluxo de pessoas em função de curadoria, de atendimento, da expertise dos livreiros, das nossas embalagens personalizadas, com os pacotes feitos à mão que a gente faz há anos e as pessoas amam, sempre pedem. Então, com certeza, isso é um dos diferenciais. Recebemos todos com muita atenção, muito carinho, afinal, a pessoa está procurando uma leitura, e isso é uma coisa que a gente valoriza muito, porque a gente acredita no livro — reforça.
Futuro
Zancan ressalta que, ao analisar os dados, percebeu que a questão da escassez de livrarias pela cidade é um sintoma. Ele aponta que as pessoas estão mudando o padrão de consumo relacionado ao mercado do livro.
— Acho que é sintomático para a gente começar a observar como a cidade vai funcionar. A gente vê que as livrarias estão definhando, com exceção de alguns bairros em que ainda se tem uma vivência. As que se manterão talvez seja por causa do cara que é curador, ela cria um convívio com a sociedade, trazendo a experiência — destaca.
Além disso, existe uma expectativa com o projeto de lei da prefeitura de Porto Alegre sobre o Programa de Reabilitação do Centro Histórico, que visa à criação de instrumentos legais para recuperação e transformação urbanística da região, além de atrair novos empreendimentos, especialmente os residenciais. Com isso, deve aumentar a densidade da região central da cidade. Para Bottin Filho, este é o caminho para construir uma cidade mais "urbanisticamente amigável":
— Hoje em dia, é muito difícil ser empreendedor no Brasil. Nossos tributos são altíssimos, embora existam algumas isenções para os livros. Por isso, acho que essa valorização vai ser muito importante. Eu tenho uma livraria na Riachuelo que, antigamente, era considerada a rua das livrarias na cidade, com umas 15. Hoje, tem quatro ou cinco. Tenho esperança que esse sentimento empreendedor de livrarias retorne. Eu ainda sou bem otimista.