Domingo, 6 de março de 1988. Bebeto Alves subiu ao palco do saudoso Bar Escaler, no Bom Fim, em Porto Alegre, em uma apresentação que ninguém imaginava que poderia, mas que entrou para a história. Naquele dia, enquanto o artista cantava, milhares de pessoas se amontoavam ao redor do bar e também pelo bairro para ouvir o show e se divertir. A aglomeração foi tamanha que o público lotou a avenida José Bonifácio, bloqueando a porta da igreja Santa Teresinha. Os fiéis que chegavam para a missa das 18h tinham que dar meia-volta — ou participar da festa.
— Para ter noção do tamanho do negócio, acho que, desde que a igreja foi inaugurada, aquela foi a primeira vez que não teve a missa de domingo — relata Toninho, com um orgulho juvenil ao relembrar a história.
A aglomeração que impediu a reza dominical, no entanto, não passou impune. Na manhã seguinte, uma ação judicial assinada por 17 entidades civis e religiosas exigia o fechamento do bar. A Justiça, porém, deu ganho de causa ao Escaler, sob a alegação de que a área do parque era destinada ao lazer e à recreação. Na época, Toninho deu uma entrevista a Zero Hora vibrando:
— Nem o Papa fecha o Escaler!
Apesar da euforia momentânea, o proprietário, aplicando a política da boa vizinhança, fez um acordo com o padre para que, na hora da missa, o microfone do Escaler silenciasse em sinal de respeito.
Esta é apenas uma das histórias contadas em Escaler: Quando o Bom Fim Era Nosso, Senhor! (Editora Ballejo Cultura & Comunicação, 196 páginas, R$ 71), livro que remonta a história do icônico bar a partir do depoimento de Toninho — apelido de Antônio Carlos Ramos Calheiros — para o jornalista Paulo César Teixeira. Na obra, os dois descrevem alguns dos momentos mais marcantes do espaço que ficava no Mercado do Bom Fim, na Redenção, esquina com o parquinho da roda gigante.
O bote salva-vidas
Oficial da marinha mercante, Toninho decidiu que iria montar um bar onde, até então, ficava a banca ocupada pela peixaria Guaíba, no Mercado do Bom Fim. Quando foi comunicar ao seu superior que iria deixar o seu posto, ouviu como resposta:
— Tu não sai do meu barco nem no escaler (pequena embarcação para realizar serviços de um navio).
Pronto. Tinha ali o nome de seu empreendimento e que fazia a ligação com o mar, sua outra paixão. Em 24 de outubro de 1982, nascia o Escaler, com letra maiúscula. Em um primeiro momento, o local era uma lancheria diurna, que servia refeições mais naturais e apostava em sucos. Porém, na virada de 1983 para 1984, o proprietário notou que o Bom Fim estava "bombando", e o empreendimento passou a funcionar até mais tarde. O sucesso foi quase imediato.
— A efervescência cultural da época acontecia ali. Era um bar ao ar livre, embaixo dos jacarandás e sob a luz do luar, em contato com a natureza — destaca Teixeira.
E, para o escritor, o livro sobre o bar busca justamente transportar a nova geração que não frequentou o Escaler para este ambiente que marcou a história do Bom Fim. Ao mesmo tempo, ele acredita que a obra tem o poder de mexer com a memória afetiva daqueles que estiveram lá, vivendo as aventuras narradas na obra — entre eles, diversos nomes da cultura de Porto Alegre, de músicos a cineastas.
Grito de liberdade
Toninho, hoje prestes a completar 69 anos, recorda que era um jovem de 30 e poucos quando, vindo de Pelotas, decidiu montar o seu próprio bar na Capital. Com o Escaler, depois que abraçou a noite, a sua ideia era vender cerveja gelada e proporcionar um ambiente de democracia e liberdade. Em sua visão, por muitos anos, isso deu certo.
Porém, por diversos fatores — entre os quais ele cita, principalmente, disputa de poder e pressão política –, o Escaler acabou, nos seus últimos tempos, virando um fardo.
— Estava difícil demais enfrentar o poder e cuidar da família — conta.
Assim, em 2006, Toninho decidiu baixar as portas do bar. Muito abatido, conta, foi passar uma temporada no Uruguai. Após três anos naquele país, voltou ao Brasil e começou a trabalhar na Petrobras até ter idade para se aposentar. Conseguiu e hoje mora em São Lourenço do Sul, perto da água. Com tempo, começou a escrever as memórias que tinha do Escaler e, com a pandemia, decidiu que era hora daquele material virar um livro. Assim, se juntou com Teixeira, a quem rasga elogios, principalmente, pela sensibilidade.
— E pela paciência dele comigo — brinca.
Hoje, olhando para trás, ainda mais após mergulhar na história do Escaler, que anda junto com a ascensão e o declínio do Bom Fim como reduto boêmio da Capital, Toninho lamenta o fato de não haver mais espaços como aquele, que servia de vitrine para novos artistas surgirem e para a troca sadia de ideias. Segundo ele, apenas com liberdade e cultura, ambos adjetivos que podiam ser encontrados no seu saudoso bar, o Brasil vai voltar a caminhar para a paz.
— Passei 20 anos da minha vida na porta do Escaler e foi uma época maravilhosa, com todo mundo junto, convivendo em harmonia. Reunia várias figuras estranhas? Sim, mas sempre com muito amor — completa Toninho.
O livro Escaler: Quando o Bom Fim Era Nosso, Senhor! pode ser adquirido no site da editora: www.ballejocc.com/escaler.