A música de Gilberto Gil sempre teve um forte componente autobiográfico. Mas em OK OK OK, primeiro álbum de inéditas desde Fé na Festa (2010), ele vai mais fundo do que nunca: todas as 15 canções se referem a Gil e suas circunstâncias, muitas delas habitadas pelo tom filosófico que é outra de suas marcas.
Apresentado na plataforma Apple Music semana passada e com lançamento nesta sexta (17) em todos os serviços digitais e também em CD e LP, o disco é resultado direto do período mais delicado da vida do compositor, que em 26 de junho completou 76 anos. Em 2016, ele viveu entre médicos e hospitais por conta de problemas renais, cardíacos e hipertensão. Ficou recolhido em casa até o horizonte se abrir e trazer a vontade de compor, motivada pela concentração de energias positivas recebidas da família (a mulher Flora, oito filhos, 10 netos, uma bisneta) e dos amigos.
Gil sempre foi um homem afetivo, maternal, como todo bom canceriano. As novas canções transbordam afetividade, exceto a que dá título e abre o disco, OK OK OK, perfeito exemplar dos momentos em que ele enche o saco e reage. O motivo aqui, óbvio, é o maniqueísmo do Brasil de hoje. "Já sei que querem a minha opinião/ Um papo reto sobre o que eu pensei/ Como interpreto a tal, a vil situação", começa. E segue: "Penúria, fúria, clamor, desencanto/ Substantivos duros de roer/ Enquanto os ratos roem o poder/ Os corações da multidão aos prantos". E pra terminar: "Palavras dizem sim, os fatos dizem não". Uma música com a potência de Procissão, Aquele Abraço, Cálice, Punk da Periferia, Haiti e tal. Por que ele e seu filho Bem (o produtor) escolheram essa música para dar nome e abrir o disco, não faço ideia. Talvez para contrastar.
Porque o que vem depois é pura afetividade. A funkeada Na Real é dedicada a Flora. Sereno, que começa com um riso de bebê e tem um coro de crianças, exala ternura de vovô. Também feliz e bem-humorado, o samba-funk Uma Coisa Bonitinha tem a parceria e o piano elétrico de João Donato. Outro samba, Quatro Pedacinhos, vai para a médica que cuidou dele: "Eu sei que estou, como qualquer sujeito/ Sujeito a dar defeito ou coisa assim/ Doença, mal, moléstia, enfermidade/ Até saudade, até saudade pode ser meu fim". Homenagem a duas amigas, Lia e Deia tem melodia parecida com Drão. Outra homenagem, mais samba, Jacintho fala sobre a saúde e a velhice com leve humor: "Já sinto aqui na barriga/ Mais preguiçosa a bexiga/ Mais ociosos os rins". Filosofar sobre o envelhecimento é uma das linhas centrais do álbum.
Longa introdução de violões e pandeiro traz o samba Yamandu, com presença do próprio – a homenagem é talvez a maior na carreira do violonista gaúcho.
E as referências afetivas seguem em Sol de Maria, para a bisneta. Na valsa-jazz Afogamento, a voz é de Roberta Sá. Cantado por Nara Gil, o baião Kalil é dedicado a um dos médicos.
E fechando o álbum com reggae explícito, Pela Internet 2 é um convite à dança que atualiza a gravação original de 1996 – Gil sempre esteve ligado na tecnologia da informação, foi dele a primeira homepage brasileira, por exemplo. "É tanto aplicativo que eu não sei mais não", diz a letra.
Gilberto Gil tem cerca de 70 álbuns entre autorais e compilações. Produzido por Bem Gil, com concepção MPB pop, OK OK OK tem a participação de mais de 30 músicos, entre eles vários da família Gil.
OK OK OK
De Gilberto Gil
Biscoito Fino, em CD (R$ 34,50), LP (R$129,90) e plataformas digitais.
* Juarez Fonseca é jornalista, crítico musical e colunista do Segundo Caderno