Este é um livro que estava faltando em duas estantes: a da música brasileira e a da História do Brasil. Já que ninguém o escreveu antes, o porto-alegrense Márcio Pinheiro encarou o desafio e já está nas livrarias físicas e virtuais O que Não Tem Censura nem Nunca Terá – Chico Buarque e a Repressão Artística Durante a Ditadura Militar. Chega com duas datas marcantes em 2024: os 80 anos de Chico (em 19 de junho) e os 50 da L&PM, mais nacional editora gaúcha.
Jornalista cultural puro-sangue desde o DNA dos pais Ibsen e Laila, com acabamento nas redações de Zero Hora, Jornal da Tarde (em São Paulo) e Jornal do Brasil (no Rio), Márcio conta que a ideia deste livro amadureceu enquanto escrevia o anterior, Rato de Redação – Sig e a História do Pasquim (Matrix, 2022):
– De certa maneira é uma "continuação" do Rato, em especial no meu interesse pelo período que vai do final dos anos 1960 à metade dos 1980. Chico era uma obsessão intelectual mais antiga do que o Pasquim. E 80 anos era uma ótima data. Assim, me pareceu natural escrever sobre ele. Faltava achar um foco, já que uma biografia completa me parecia ser impossível fazer neste momento. Daí optei por um recorte, tratando a ideia de como Chico foi o artista brasileiro mais visado pela censura. E de como ele soube enfrentá-la com inteligência e criatividade.
Focado no período 1966-1987, durante mais de um ano Márcio reouviu dezenas de discos de Chico (álbuns de carreira, álbuns divididos com outros, trilhas de peças e filmes), percorreu cerca de 20 livros, vasculhou as coleções de O Pasquim, O Globo e Jornal do Brasil, lendo em torno de 700 páginas. Também conversou com velhos amigos do compositor, como o jornalista Eric Nepomuceno, que assina o prefácio.
– Eles me recordaram histórias, me deram caminhos, indicaram personagens e textos – resume.
Por que aquele período? Porque em 1966 Chico teve sua primeira música censurada (Tamandaré), por "ofensiva à Marinha Brasileira" e, em 1987, lança o primeiro disco depois da ditadura, Francisco. Trecho do livro: "Aos 43 anos, com mais de duas décadas de carreira, Chico teria em 1987 seu primeiro ano de total tranquilidade artística. O ano em que poderia criar com a convicção de que não seria importunado pela censura. 'Quando Tancredo foi eleito, tomei um pileque como não tomava há muito tempo. Foi um pileque justo e merecido', contou, em uma entrevista".
A ação de governantes policiando a arte, a cultura e a liberdade de expressão tem quase a idade do Brasil. Mas a "idade moderna" da censura propriamente dita começa em 1934, no "Estado Novo" do ditador gaúcho Getúlio Vargas. Desde lá, com breves períodos democráticos, e enfaticamente a partir do golpe militar de 1964, livros, filmes, peças de teatro e músicas, foram vigiados de perto, proibidos e perseguidos, caso bem específico de Chico Buarque, entre tantos – como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, personagens de várias passagens do livro, todos forçados ao exílio. A imprensa também padeceu no mesmo tempo, incluindo censores nas redações – o Jornal da Tarde, deixava clara a ação policial publicando receitas culinárias no espaço dos textos cortados.
Tendo como trilhas as canções de Chico que iam sendo censuradas, algumas pelo simples fato de serem dele, Márcio abre então o leque para as canções de outros artistas e investiga as "justificativas" (quando haviam) da censura. Ficamos sabendo os nomes de todos os censores que seguiram os passos dos compositores "subversivos" com suas tesouras sempre à mão. No início eles tiveram algumas distrações, como quando liberaram Apesar de Você sem perceberem que se referia ao mais sanguinário dos ditadores, o general Garrastazu Médici (também gaúcho). Quando se deram conta, o compacto com a música já tinha vendido mais de 100 mil cópias. (Apesar de Você, ao lado de Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, passariam à História como as mais emblemáticas manifestações músico-culturais contra a ditadura, até hoje cantadas e recantadas.)
Claro que a partir do episódio a vigilância sobre Chico seria redobrada. Ele se tornou o pesadelo dos funcionários da censura, que, se deixassem passar alguma "coisa", seriam afastados. "Sua assinatura em qualquer obra se transformava na tradução de todos os temores", escreve Márcio, que segue enumerando todos os embates dele com a censura, às vezes apoiado por sua gravadora, quase sempre sozinho. Para fazer um LP de 10 ou 12 músicas, tinha que compor 16 ou 18, pois várias "não passavam", muitas vezes por pura implicância do censor com determinada frase ou palavra.
Mas contra a força bruta/burra, a inteligência, o jogo-de-corpo. Em 1974, Chico decide fazer um disco só com músicas de outros – como Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, que dá título ao trabalho. Entre os outros, uma dupla de sambistas que Chico descobrira no Morro, Julinho da Adelaide e Leonel Paiva, autores de Acorda Amor ("Acorda amor, eu tive um pesadelo agora"). Só que Julinho e Leonel eram... o próprio Chico. Márcio se diverte contando a história e seus desdobramentos, tipo uma entrevista fictícia com Julinho publicada por Nelson Motta em O Globo.
Sobre a ignorância dos policiais censores, saio um pouquinho do livro de Márcio e lembro trecho do texto que fiz para a abertura de um livro do produtor cultural Carlos Branco, pioneiro na abordagem do tema, embora breve (62 páginas), A Censura na MPB – Do Princípio do Século ao Fim do Governo Militar (Editora Alcance, 1994). Escrevi: "Agentes do DOPS foram enviados em certo dia de 1964 ao Teatro Municipal de São Paulo, onde se encenava a peça Electra, com a missão de prender o autor, um tal de Sófocles. Esqueceram de avisar a eles que o 'subversivo' morrera há 2 mil anos".
Voltando a Márcio:
– Ao longo da década de 1970 Chico não apenas afrontou a censura como também legitimou a luta política como quase nenhum outro intelectual no Brasil.
Vêm a atuação no processo de abertura, a anistia, o retorno dos exilados, a campanha pelas Diretas Já... Então, além de praticamente esgotar o assunto Chico/censura/política, o livro avança no trajeto da biografia artística – sem deixar de lado algumas informações pessoais, familiares. São comentados todos os discos entre 1966-78, destacando os absolutamente clássicos Construção (1971), Calabar – O Elogio da Traição (1973, teve capa original proibida, saiu como Chico Canta) e Meus Caros Amigos (1976). Shows, que ele não gosta muito de fazer, mas foram muitos. Filmes, como Quando o Carnaval Chegar (1972). Peças de teatro, como Gota d'Água (1975), Ópera do Malandro (1979) e, principalmente, Roda Viva (1968), que antes de ser proibida foi tirada de cena pela violência do grupo terrorista CCC (Comando de Caça aos Comunistas) – Márcio dá detalhes sobre os dramáticos momentos da equipe da peça em Porto Alegre.
O livro vem até o Chico de hoje, recolhido, evitando entrevistas e manifestações, fazendo caminhadas na beira da praia, processando bolsonaristas por usar criminosamente uma de suas músicas e sempre ligadíssimo. "O mais completo repórter de seu tempo", resume o autor do livro, completando: "Tijolo por tijolo num desenho sólido, o arquiteto Chico Buarque construiu em quatro décadas a mais abrangente obra da música brasileira".
E Márcio Pinheiro? Nasceu em 1967, um ano depois do primeiro embate de Chico com a censura. Jornalista desde 1989. Além do livro citado, sobre o Pasquim, publicou Esse Tal de Borghettinho (Belas Letras, 2015), Ayrton Patineti dos Anjos – Lembranças, Sons e Delírios de um Produtor Musical (com Roger Lerina, Plus Editora, 2018) e O Lobista – Fernando Ernesto Corrêa: Negócios, Política e Jornalismo (2021).
O lançamento em Porto Alegre
Haverá uma noite de autógrafos no próximo dia 19, data em que Chico Buarque completa 80 anos, às 17h30min, na livraria Pocketstore (Rua Félix da Cunha, 116), em Porto Alegre.