Vale a pena ouvir (ou reouvir) os três primeiros álbuns: Chico Buarque de Hollanda (1966), Chico Buarque de Hollanda Volume 2 (1967) e Chico Buarque de Hollanda Volume 3 (1968). Ele ainda usaria o nome completo no volume 4 (1970), gravado durante o exílio na Itália. A partir do quinto, Construção (1971), adotaria Chico Buarque. Numa entrevista que fiz com ele em 2006, quando o disco de estreia completava 40 anos, me disse que, com o tempo, passou a buscar soluções harmônicas mais ousadas, a dar à música o mesmo peso que antes dava à palavra. Mas ouvindo de novo aqueles discos como se fosse a primeira vez, fiquei me perguntando em que exata medida o Chico de agora — que completa 80 anos nesta quarta-feira (19) — será melhor, ou mais completo, do que aquele.
Porque aquele já era 100%. Só ainda não era considerado talvez o mais importante compositor da história da música brasileira. Sempre foi 100% bom, não entrando em comparação a juvenilidade do início e a maturidade futura. Você ouve os primeiros discos e não acredita que um garoto de 20, 22 anos, possa ter feito tudo aquilo. Mais: ouve o Chico de hoje e ainda identifica claramente aquele garoto observador da realidade brasileira e da vida cotidiana de homens e mulheres. É espantoso que tenha conseguido atravessar estes quase 60 anos, das mais variadas formas turbulentos, sem perder a coerência, o espírito, que armazena tanto densidade quanto leveza. Não se pode dizer que tenha passado por essa ou aquela "fase" distinta, nítida, diferenciadora.
Lembro quando ouvi no rádio a música Pedro Pedreiro. Era 1965, eu tinha 19 anos e fiquei encantado com as rimas, o jogo de palavras, o personagem, Pedro pedreiro esperando o trem, e a mulher de Pedro esperando um filho pra esperar também. Na mesma época ouvi Tamandaré, logo proibida por brincar com o almirante cuja efígie estava na desvalorizada nota de um cruzeiro. Aí veio A Banda no festival e Chico se materializou para mim. Nestas músicas aparecem a preocupação social, a sátira política, o lirismo de tonalidade nostálgica. Quando o primeiro disco começou a circular, em 1967, eu já estava na universidade, e em cada música dele víamos um toque escondido contra a ditadura. Cantávamos o samba-choro Juca acentuando o verso "o delegado é bamba, na delegacia, mas nunca fez samba, nunca viu Maria"...
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Já naquele primeiro LP o gênio aparecia inteiro, com essas citadas menos a proibida, mais A Rita (letra absolutamente perfeita), Tem Mais Samba, Você Não Ouviu, Madalena Foi pro Mar, Olé Olá. Só clássicos. Mais Sonho de um Carnaval, Meu Refrão, Amanhã Ninguém Sabe... Em Chico Buarque de Hollanda Volume 2, outro leque extraordinário: Noite dos Mascarados, Um Chorinho ("Quem me dera ter um choro de alto porte/ Pra cantar com a voz bem forte/ E anunciar a luz do dia/ Mas quem sou eu pra cantar alto assim na praça/ Se vem dia, dia passa/ E a praça fica mais vazia"), Morena dos Olhos d'Água, Quem te Viu, Quem te Vê, a profética A Televisão ("O homem da rua/ Com seu tamborim calado/ Já pode esperar sentado/ Um batuque diferente/ Que vem lá da televisão").
Este segundo volume tem dois símbolos: a tristíssima Realejo, espécie de anti-A Banda, e a primeira canção de ótica feminina, Com Açúcar, com Afeto, na voz dulcíssima de Jane Morais. Na capa de Chico Buarque de Hollanda Volume 3, ele está sério e não olha para a câmera. O Brasil crispava-se cada vez mais pela ditadura e isso é traduzido na áspera Roda-Viva, com o vocal veemente do MPB-4, e em Funeral de um Lavrador, sobre poema de João Cabral, "Esta cova em que estás/ Com palmos medida/ É a terra que querias/ Ver dividida". O desalento está ainda em Ela Desatinou e na melancólica modinha Até Pensei. Mas ele preserva o lirismo em Carolina e na espetacular Retrato em Branco e Preto, que inaugura a parceria com Tom Jobim.
É emocionante ouvir o gênio de Chico nascendo e pensar no que ele significa para a cultura brasileira, um mito vivo e simples, sem afetações, um artista e um homem de integridade à toda prova. Um músico excepcional e um símbolo da luta pela democracia.