Meus heróis não morreram de overdose, como os de Cazuza em Ideologia. A santíssima trindade da música popular brasileira chegou aos 80 anos com uma coisa em comum: seduzindo plateias. Depois de Caetano Veloso e Paulinho da Viola, hoje é o dia de Chico Buarque cruzar essa barreira imaginária na linha do tempo. Imaginária porque o tempo dos poetas é uma abstração. Chico, o poeta que melhor interpretou a alma feminina, faz 80 anos neste 19 de junho, mais atual do que nunca, sedutor, lúcido e de bem com a vida.
Mestre das palavras, Chico escreveu centenas de canções que poderiam ser transformadas em crônicas porque contam histórias. E não são apenas histórias de amor. Na vasta obra do maior poeta que o Brasil já conheceu há de tudo, e não apenas a divisão arbitrária adotada na coletânea que o dividiu em cinco personas: o político, o trovador, o cronista, o amante e o malandro. Quem, além de Chico, ousaria usar palavras como estribilho, escafandrista ou lazarentos em um poema para ser cantado?
Desde que tive dinheiro para pagar o ingresso, fui a todos os shows de Chico em Porto Alegre. Li todos os seus livros e espero pelo próximo. Pode existir alguém que goste tanto dele quanto eu. Mais? Duvido. Hoje eu poderia selecionar 80 versos de Chico para falar de minhas músicas preferidas, mas para não cansar os que não têm a mesma paixão escolhi 10 que devem ser imaginadas tocando aleatoriamente, pela impossibilidade de alinhar por ordem de preferência.
Construção
“Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima”
Chico trocou o curso de Arquitetura pelo violão e pelas letras e se transformou no Oscar Niemeyer da poesia. Construção é sua obra máxima na arquitetura das palavras. A forma como as mistura em cada estrofe para contar a vida do operário que se despede da mulher e dos filhos, vai para construção, levanta paredes, come feijão e arroz e acaba sofrendo um acidente fatal é de uma genialidade comparável às obras de Niemeyer. Só um gênio seria capaz de embaralhar os versos para dar maior dramaticidade à tragédia.
Futuros amantes
“Não se afobe não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar”
A imaginação não tem limite em Futuros Amantes. Pense no Rio como uma cidade submersa, com os escafandristas explorando “sua casa, seu quarto, sua alma, desvãos”. Os sábios tentando decifrar “o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas”, poemas, mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização”.
Angélica
“Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho
Só queria encontrar o filho
Que vive na escuridão do mar”
Feita sob medida para estilista Zuzu Angel, mãe de Stuart Jones Angel, jovem preso pela ditadura militar, em 1971, e desaparecido nos porões da repressão, a música é um canto de dor do primeiro ao último verso. São quatro estrofes pungentes, que não falam de ditadura nem de ditadores. Apenas da busca daquela mulher pelo corpo do filho. Angélica foi escrito depois da morte de Zuzu (interpretada anos depois no cinema por Patrícia Pillar). A estilista morreu em um suspeito acidente em 1976, provavelmente assassinada pelos mesmos assassinos do filho.
As vitrines
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão”
Chico faz das palavras imagens poderosas, como a da moça refletida nas vitrines, colorida pelos letreiros que embaraçam a visão do seu “vigia”. Poderia ser um dos tantos temas do amor não correspondido, mas vai além: “Na galeria, cada clarão é como um dia depois de outro dia, abrindo um salão”.
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João e Maria
“Pra lá desse quintal, era uma noite que não tem mais fim”
Na inocência de um amor adolescente, as entrelinhas que não se liam nos anos 1970: aquele menino que na imaginação era “o herói” e seu cavalo só falava inglês, era “bedel e era também juiz” diz que pra lá do seu quintal havia a noite escura, a “a noite que não tem mais fim”. Cantada em dueto com a doce Nara Leão, João e Maria evoca fantasias infantis, mas não tem final feliz.
Anos Dourados
“É desconcertante
Rever o grande amor”
Se é possível resumir a força de uma paixão em um verso, poderia ser este de Anos Dourados: “É desconcertante rever o grande o amor”. Entre as tantas versões para o amor que acabou para um, mas não para o outro, esta é uma obra-prima. “Te ligo afobada, e deixo confissões no gravador, vai ser engraçado, se tens um novo amor”. Já no começo a certeza de que um dia a história foi bonita para os dois: “Parece que dizes, te amo, Maria. Na fotografia, estamos felizes”. E a tentativa de parecer que superou: “Me vejo a teu lado. Te amo? Não lembro”.
A moça do sonho
“Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados vão parar”
Deve ter baixado um Jorge Luis Borges em Chico quando escreveu a história desse sonho em que se encanta com a moça em contraluz, ele arrisca a perguntar “quem és?”, mas fraqueja a voz. “Um lugar deve existir, uma espécie de bazar, onde os sonhos extraviados
vão parar”. E é nesse sonho em que a moça se desfaz que Chico incorpora Borges “entre escadas que fogem dos pés, e relógios que rodam pra trás” e termina com um simples “se eu pudesse encontrar meu amor não voltava jamais”.
Eu te amo
“Se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o teu sapato ainda pisa no meu”
Você não precisa descrever os pormenores de uma noite de amor se tiver talento para compor versos em que a sutileza vale mais do que o explícito. O vestido enroscado ao paletó, o sapato de um pisando no sapato do outro, ou “se nós, nas travessuras das noites eternas, já confundimos tanto as nossas pernas, diz com que pernas eu devo seguir”. E como se todos os tercetos não fossem puro lirismo, jogados no meio do quarto essa preciosidade: “Se entornaste a nossa sorte pelo chão, se na bagunça do teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu”.
O meu guri
“Quando, seu moço
Nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar”
Das composições que tratam da desigualdade, O meu guri é um canto triste, uma crônica em versos sobre a inocência da mulher do morro que não estava preparada para ser mãe e não tinha nem nome para dar ao rebento que chegou com cara de fome. O guri sempre disse que chegaria “lá”. Esse lá, pra ela, é a capa do jornal, mesmo que pelo mais trágico dos motivos. Chico dá voz à mulher simples que acredita nos presentes que o filho traz do asfalto e se preocupa com a “onda de assaltos” quando ele chega cansado de um trabalho que nem desconfia qual seja.
Trocando em miúdos
“Devolva o Neruda
Que você me tomou
E nunca leu”
Mais uma crônica de uma separação amorosa, Trocando em miúdos é um inventário de ressentimentos de quem sai, quase de mãos vazias, porque não há mais esperança de tudo se ajeitar. Ele diz que vai deixar “a medida do Bonfim” mas fica com o disco do Pixinguinha. Que pode guardar “as sobras de tudo o que chamam lar, as sombras de tudo o que fomos nós, as marcas do amor nos nossos lençóis, as nossas melhores lembranças”. Que pode empenhar ou derreter a aliança, mas devolva o Neruda que lhe tomou e nunca leu.