A música regional gaúcha é habitualmente situada em um nicho meio impermeável — e a verdade é que seus militantes não fazem a mínima questão de às vezes experimentar fora desse nicho. Mas quando surge um disco como Por que os Ponchos São Negros, de Vinícius Brum e Roberto Ferreira, tais definições ficam devendo. Aqui não há jargões gauchescos, não há gaitaços, não há gritedo, não há ritmos que parecem plágios uns dos outros, não há idealizações passadistas. Mas há o Sul.
Vinícius, que já vai para uns 35 anos de carreira e cerca de 30 vitórias em festivais (duas delas da Califórnia), conta que ele e o santa-mariense Roberto se conheceram no início dos anos 1990. Praticamente não se viram mais até 2018, quando Vinícius leu o romance de Roberto que agora dá nome também ao disco — e que ganhara o Prêmio Açorianos de Literatura em 2011. Decidiu retomar o contato. Começaram a troca de e-mails e ideias até se darem por satisfeitos com o que tinham em mãos e mentes.
Por que os Ponchos São Negros é um dos mais impressionantes álbuns já feitos no âmbito da música de raiz gaúcha, mas com sentido universal. As canções de Vinícius, em maioria milongas, junto aos versos de Roberto, projetam-se a um patamar de densidade raramente visto por aqui. Não temo dizer que se trata de uma obra-prima — mesmo que isso não venha a ser reconhecido no referido nicho. Um trabalho sem medo de ser amargo, dolorido, sem festa. Mas repleto de sentimentos profundos.
Difícil separar três ou quatro entre as 12 faixas, pois são um todo. Na primeira audição, várias vezes parei para reouvir algumas. Canções de amor entre noites e ventos, como Fábula (“A vida não vale o medo se o coração é enorme”), ou Inverno (“Foi quando percebi que não estavas/ E que mudara tudo a tua falta”). Os arranjos potencializam os climas, com os ótimos violinos/violas de Dhouglas Umabel, violões de Guilherme Castilhos, baixo de Miguel Tejera, acordeom de Guilherme Goulart.
É muito gratificante ouvir um trabalho assim!
- POR QUE OS PONCHOS SÃO NEGROS, de Vinícius Brum e Roberto Ferreira. Independente, CD R$ 30 no perfil do Instagram e do Facebook. Disponível nas plataformas digitais
Carlos Hahn traz pop político
O cantor e compositor porto-alegrense demorou um tempo até chegar ao primeiro álbum, este Auroras na Barriga, gravado durante o primeiro ano da pandemia e lançado dias atrás. Nesse tempo, dedicou-se a criar os filhos e à carreira de jornalista, enquanto esporadicamente mostrava sua música na cena alternativa da cidade e produzia CDs demo e EPs. Em 2019, achou que agora seria pra valer e chamou dois caras experientes e consagrados para o ajudarem a fazer o álbum: Gustavo Telles (ex-Pata de Elefante) e Luciano Albo (ex-Cascavelletes). O que temos é uma sonoridade pegadora, com guitarras ruidosas e o inequívoco DNA do rock gaúcho.
As letras, de várias épocas, são propositivas, afirmativas, nada de abstrações — os temas sociais e políticos frequentam a maioria. No pop-rock Milagres, Hahn canta que "quem faz milagres é você". Quero de Volta o Meu País vem como valsa-pop! Em Eu Não Solto a Mão, MPB pop, diz que "não solto a mão dos povos indígenas, das mulheres negras, dos jovens das vilas". Reagir é um reggae. Belém (sobre o bairro Belém Novo, onde se criou), uma balada. Pop redondo, Tem Tempo ("de se insurgir", diz a letra) faz homenagem póstuma ao pai, Walter Hahn, que foi militante comunista. As interpretações são convincentes.
Além do violão de Hahn, das guitarras e baixo de Albo e da bateria de Telles, tem Murilo Moura nos teclados, Tinho Alencastro no baixo, Pedro Hahn e Rolando Borges nas baterias.
- AURORAS NA BARRIGA, de Carlos Hahn. Independente, disponível nas plataformas digitais