Entre 2001 e 2014, o crítico e pesquisador carioca Pedro Butcher editou o portal Filme B, referência do mercado cinematográfico nacional. Depois, aprofundou-se na pesquisa do sistema de distribuição e exibição de filmes, dedicando-se ao doutorado que rendeu a tese Hollywood e o Mercado de Cinema no Brasil: Princípio(s) de uma Hegemonia, defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2019. Mais recentemente, tem ministrado cursos e discutido em diversas instâncias as transformações que acometem esse sistema. Como fica claro na entrevista a seguir, essas transformações em curso atualmente, sobretudo com a ascensão do streaming, remetem ao contexto que determinou o estabelecimento de Hollywood como centro hegemônico da produção mundial, cerca de um século atrás. Curador, professor da ESPM-RJ e um dos mentores do programa Talent Press, do Festival de Berlim, ele aceitou o convite de GZH para uma conversa sobre o presente e o futuro do mercado de cinema, tendo como perspectiva os acontecimentos registrados no passado.
No doutorado, você pesquisou a construção da hegemonia de Hollywood, destacando como, nos anos 1910, a indústria dos EUA tomou conta das três etapas do processo do cinema: produção, distribuição e exibição. Há semelhanças com o atual momento, em que as plataformas de streaming ascenderam à condição de dominantes nessas três etapas?
Essa pergunta é minha grande motivação para a pesquisa que resultou na tese: tentei buscar na história respostas, ou pistas, para o que está acontecendo hoje. É claro que vivemos um momento muito diferente de cem anos atrás, mas há semelhanças, sim, principalmente na forma como a indústria estabelece certos parâmetros de trabalho e acaba moldando determinadas convenções. Primeira coisa importante a se dizer é que Hollywood, para se estabelecer de modo hegemônico, contou com apoio estatal do governo dos EUA. Não foi pura e simples competição de mercado, mas sim uma expansão forjada com o apoio do Estado. O momento-chave dessa expansão é a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que faz com que a Europa, até então a principal fornecedora de filmes para a América Latina, se retirasse do mercado. Esse movimento não se deu somente no cinema, mas na economia como um todo. Por meio de suas embaixadas, o Estado americano montou uma ampla rede de coleta de informações sobre os principais produtos importados, hábitos culturais e de consumo, funcionamento da economia e estrutura política na América Latina, com foco em Brasil e Argentina, os maiores mercados. Essas informações muniram os empresários americanos em seu processo de expansão internacional – incluindo os empresários da indústria cinematográfica, ainda em processo de consolidação nos EUA.
Foi uma ação política coordenada.
Sim. A historiadora Emily Rosemberg chama de “Estado promocional americano”. Os princípios são liberais, mas é o Estado que cria a estrutura que promove o cinema de Hollywood rumo ao domínio mundial. É uma estrutura que não é clandestina, mas que se beneficia do anonimato das estruturas consulares, que produzem extensos relatórios confidenciais sobre o mercado brasileiro. Depois esses relatórios se tornaram públicos, no entanto, inicialmente, eram confidenciais. É importante ter em conta também que a própria Hollywood ainda estava em formação. As marcas que se tornariam muito presentes em nossas vidas – Paramount, Fox, Warner etc. – ainda estavam se fortalecendo, só se consolidariam de fato no cinema sonoro, ou seja, a partir de 1927. Eu diria que o processo da indústria verticalizada como a conhecemos se consolidou da Primeira Guerra até 1927. Foi nesse período que Hollywood começou a investir mais sistematicamente na ocupação dos mercados internacionais. Fundamental para isso, além de produzir e distribuir os filmes, foi poder exibi-los. Essas empresas, que se tornariam as majors, eram donas das salas mais rentáveis dos EUA, as salas das maiores cidades cujas bilheterias respondiam por um percentual altíssimo de seus ganhos.
Na Europa e fora dos EUA de um modo geral não era bem assim, certo?
Certo. No mercado internacional, a compra ou a construção de cinemas foi exceção. Paramount e MGM chegaram a ter salas no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas essa não foi a regra. O que Hollywood garantiu ali, em grande parte com a ajuda do governo, foram parcerias com as redes locais de exibição para que os filmes dos EUA tivessem espaço privilegiado. Foi nesse período também que o formato do longa-metragem narrativo de ficção se estabeleceu como eixo econômico e de prestígio da indústria, já que antes filmes de várias durações eram exibidos, além de séries. As majors construíram palácios cinematográficos para exibirem seus longas. Foi o período de verticalização total, ou seja, domínio do processo nas suas três etapas.
Mais ou menos o que vemos agora, com a ascensão das plataformas de streaming.
O sistema de streaming não era inicialmente produtor, porém agora já financia ele próprio o produto que considera mais importante para o seu negócio, produzindo ou garantindo a propriedade intelectual desse produto, seja filme ou série. E isso acaba gerando uma concentração, sim, mais ou menos como ocorreu lá atrás. Essa comparação é válida: é o mesmo grupo que domina todas as etapas do processo. Uma diferença é que a rede mundial se estabeleceu antes via salas de cinema e, hoje, está estabelecida via internet.
A experiência humana de uma forma geral está cada vez mais mediada pelo digital. O capitalismo como um todo vive um momento de digitalização. Tem um motivo para isso, que é o fato de a experiência digital ser muito melhor monitorada e, com isso, mapeada. Tudo o que passa pelo computador vira dado. Esta é a grande descoberta do capitalismo recente: a acumulação mais significativa é a de dados.
Pelo menos desde meados do século passado Hollywood investiu muito na experiência das salas de cinema, no seu diferencial. apostou no espetáculo e na imersão do espectador para sustentar seu negócio, com o cinemascope, o 3D, os blockbusters etc. Como fica isso nesse novo cenário, sobretudo após a pandemia?
Essa é uma questão difícil de responder. O que se sabe com mais concretude é que a pandemia acelerou um processo que já vinha ocorrendo. A experiência humana de uma forma geral está cada vez mais mediada pelo digital. O capitalismo como um todo vive um momento de digitalização. Tem um motivo para isso, que é o fato de a experiência digital ser muito melhor monitorada e, com isso, mapeada. Tudo o que passa pelo computador vira dado. Esta é a grande descoberta do capitalismo recente: a acumulação mais significativa é a de dados. Para o consumo isso tem muito significado. Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância, defende que essa nova era é pautada pela descoberta do superávit comportamental. Ele permite o capitalismo preditivo, que prevê o que o comportamento do consumidor, antecipando-se a tendências e criando-as. Ou seja, o sistema de algoritmos cria um molde comportamental, elabora um molde no qual os comportamentos vão se desenvolver. O hábito de maratonar séries, por exemplo, seria um desejo do espectador ou fruto de uma estrutura que se desenvolveu de modo a criar esse molde? O streaming foi se desenvolvendo assim: antes de um episódio de uma série terminar, o seguinte já surge na tela para o espectador seguir vendo.
Para parar de ver você precisa pegar o controle remoto, tomar uma atitude. Do contrário, a exibição vai seguindo e os episódios, se sucedendo.
Isso. Quer dizer, a experiência da sala de cinema vem sendo desestimulada há bastante tempo, já, em práticas comportamentais como essa. A sala de cinema, por não fornecer tantos dados às grandes corporações capitalistas, não interessa mais tanto no novo cenário em que nos encontramos. O que eu acredito, diante disso, é que essa experiência tende a ser um apêndice, algo minoritário diante dos comportamentos mais usuais, quase uma espécie de showcase (mostruário). O que é a tendência de todo o consumo. Veja as livrarias, por exemplo. Tendem a ser um apêndice, já que o grande fluxo de venda de livros se dá, ou se dará, online. A sala de cinema, assim como a livraria, vira uma espécie de loja de demonstração, uma vitrine, como as das lojas de luxo – uma versão superproduzida, porque de mostruário, daquilo que realmente será consumido pelas pessoas.
Nesse contexto, a experiência de fruição do espectador muda. Há mudanças estéticas como consequência disso, você concorda?
Já existem mudanças estéticas, inclusive. É paradoxal, na verdade. Porque o que estamos vivendo é uma economia da atenção: o que as plataformas, os canais, enfim, disputam é a nossa atenção. Ao mesmo tempo em que tudo está acelerado, em que as novas gerações querem músicas mais curtas, ouvem áudios e mesmo veem vídeos em velocidade mais rápida, a indústria tenta capturar a atenção do espectador por um tempo estendido. Porque quando já estão familiarizadas com um universo ficcional, as pessoas gostam de seguir nele. Tem isso de “ah, estou curtindo muito essa série, mas ela fica boa mesmo na terceira temporada”, ou “a obra-prima desse especial aqui é o oitavo episódio”. O tempo estendido é usado para fisgar um consumidor que quer tudo mais rapidamente. É um contrassenso, mas é o que estamos vivendo. De um lado, surge o Tik Tok, compartilham-se vídeos curtíssimos nas redes sociais. De outro, os universos estendidos persistem em séries longas, sagas com cada vez mais filmes ou episódios. Essas tendências se entrecruzam. Algumas surgem mais espontaneamente, mas a maior parte é moldada pelo capitalismo, pelo consumo dirigido, como de algum modo ocorreu cem anos atrás.
A tendência, para o produto não hegemônico, é ficar restrito a um nicho. Isso é algo que vai além do cinema. O capitalismo, no seu estágio atual, tende a acabar com o que é intermediário no âmbito do consumo.
O que você acha da expressão “Netflix system”, em referência a “studio system”, usada no estabelecimento de Hollywood como força hegemônica do cinema?
Acho que a expressão faz jus à empresa que foi a precursora desse movimento, depois consolidado com outras marcas. É claro que a HBO já fazia séries antes, outras emissoras também, mas a Netflix é a precursora dessa plataformização do consumo. Algo que é interessante é que, com a plataformização, ao mesmo tempo em que fica estabelecido um tipo de produção padrão, um tipo de narrativa pretensamente universal, capaz de agradar às plateias do mundo inteiro, também ascende um movimento que está sendo chamado de glocalization, ou seja, o “global local”, que seria aquele “ponto universal” – muitas aspas aí – dos filmes sul-coreanos, das séries espanholas etc. O que a escola narrativa dos filmes sul-coreanos e das séries espanholas tem que pode cativar plateias de outros países. As plataformas oferecem os canais para que essas plateias sejam cativadas e, uma vez que esse “ponto universal” seja alcançado por uma produção internacional – os algoritmos ajudam muito, é evidente –, abre-se mais uma perspectiva de consumo e de ganhos para as empresas.
Não deixa de ser um contrassenso, também, e uma diferença em relação aos primórdios da hegemonia dos EUA: agora a indústria hegemônica abre espaço para produções de outros países.
É inegável que, nesse novo cenário, estamos tendo mais acesso a outras indústrias, sim, basta ver o sucesso de La Casa de Papel, da cultura pop da Coreia do Sul, de séries israelenses, italianas, dinamarquesas etc. Mas há isso que chamei – com muitas aspas – de “ponto universal”. Do ponto de vista da linguagem, em muitos aspectos todas essas produções são bastante semelhantes. O que entra no esquema hegemônico segue um padrão. Tem algo interessante a ser lembrado sobre Parasita (2019) e seu diretor, Bong Hoon-jo: o filme anterior dele, Okja (2017), esteve na primeira edição do Festival de Cannes que aceitou produções de plataformas de streaming, o que acabou provocando uma reação muito forte dos exibidores e de toda a comunidade cinematográfica porque esse tipo de filme não tinha exibições programadas para as salas de cinema, sairia do festival direto para a Netflix. A partir da pressão da comunidade cinematográfica, Cannes criou ali uma regra indicando que, para participar da competição, o filme teria necessariamente de ser exibido depois no circuito de salas. O que enfureceu Ted Sarandos, então CEO da Netflix, que passou a levar suas produções para outros festivais, notadamente Berlim e Veneza. No meio dessa confusão, o distribuidor dos filmes do Bong Hoon-jo nos EUA tentou de todas as formas convencer Sarandos e a Netflix a permitirem a exibição de Okja nas salas de cinema. Não conseguiu. Então, com medo de não poder exibir um eventual novo projeto do Bong Hoon-jo nos EUA, esse distribuidor se antecipou e não só garantiu a distribuição do eventual novo projeto, mas decidiu financiá-lo. Calhou de ser Parasita, que assim pôde ser o primeiro filme de língua não inglesa a vencer o Oscar.
Foi uma espécie de guerra do velho sistema contra o novo, isso?
O que tem sido chamado de “guerra dos streamings” eu prefiro chamar de “guerra de janelas”, porque não está restrita apenas a uma competição entre serviços de streaming, mas envolve também as salas de cinema, a TV aberta e a TV paga (o termo “janela” refere-se a cada um desses canais de exibição). É uma guerra para exibir os filmes. Essa guerra está inserida no processo de mudança do consumo, que é mais amplo e diz respeito ao comportamento como um todo.
A pandemia pode ter um significado parecido ao da Primeira Guerra Mundial à medida que é um evento-chave para o estabelecimento de um novo paradigma no consumo de filmes?
Olha, é uma comparação curiosa, a da pandemia com a Primeira Guerra, mas faz sentido. O que acho importante ressaltar é que esse tipo de mudança nunca se dá de uma hora para a outra. Os comportamentos não são estanques. A consolidação da hegemonia de Hollywood se completa só com o cinema sonoro, vários anos depois, sendo que a chegada do som tem por si só um impacto próprio, cheio de nuances e impulsionador de outras mudanças. Vale observar também o quanto as mudanças se dão em momentos de chegada de novas tecnologias, caso hoje da internet. E, é claro, há as questões políticas. Logo depois veio a Segunda Guerra, com a Europa ainda mais fragilizada, seguida da Guerra Fria, que pautou várias políticas expansionistas. Acontecimentos de grande magnitude costumam acelerar os processos, e acho que foi o caso agora. Talvez ainda estivéssemos tendo outros desdobramentos da “guerra das janelas”. Tanto é que a participação das plataformas ainda não está tão consolidada assim. A Netflix ainda é uma empresa que aposta no futuro. As velhas majors ainda são as empresas gigantes.
Nos últimos anos, o cinema brasileiro cresceu em termos de quantidade de produção. Ao mesmo tempo, grande parte dessa produção não é vista. Com essas mudanças, os filmes nacionais tendem a ficar em nichos ainda restritos ou o streaming pode ajudar a torná-los mais visíveis?
A incógnita envolvendo o cinema nacional é política. Nossa produção depende de qual será o futuro das políticas públicas – se vamos seguir no retrocesso promovido pelo governo atual ou se vamos retomá-las. No cinema, o Brasil é um país de tradição importadora. Mais do que isso, é um país colonizado, e com vários aspectos do Brasil colonial persistentes na configuração da sociedade. É por isso que é muito difícil criar um mercado menos assimétrico entre os produtos locais e internacionais sem regulação do Estado. Sendo que regulação é algo básico, vários países adotam e nós mesmos conseguimos avanços enormes no campo da TV por assinatura – houve um incremento do mercado, com mais produção e mão de obra locais após o marco legal do início da década passada. Então estamos nesse impasse. Acho importante considerar que a tradição audiovisual brasileira nunca foi restrita ao cinema, e a reconfiguração atual me parece em alguns aspectos aproximar certos setores. A Globoplay, por exemplo, produz filmes, séries, novelas. O mercado se transforma como um todo. Há muitas interrogações. As respostas dependem mais de questões políticas, me parece.
As produções da Globoplay têm seus próprios canais de exibição, diferentemente de produções realizadas à margem das principais produtoras do país.
As produções independentes cresceram muito com a regulação da TV por assinatura. E voltaram a ficar muito fragilizadas com a obstrução dos processos da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e do Fundo Setorial do Audiovisual promovida pelo governo Bolsonaro. O governo cortou tudo, interrompeu um sistema que vinha sustentando toda uma indústria. Agora, pensando de maneira mais ampla, acho que a tendência, para o produto não hegemônico, é mesmo ficar restrito a um nicho. Isso é algo que vai além do cinema. O capitalismo, no seu estágio atual, tende a acabar com o que é intermediário no âmbito do consumo. Há aquilo em que se investe muito dinheiro para ter um retorno muito grande e, na outra ponta, há o que recebe pouco investimento e fica restrito a lugares bastante limitados. Isso aconteceu inclusive no cinema dos EUA: cineastas consagrados, mas que trabalhavam com orçamentos médios, como Woody Allen, David Lynch e Wes Anderson, passaram a ser financiados por empresas europeias. E hoje trabalham com orçamentos bem menores do que aqueles aos quais estavam acostumados. A tendência, de um modo geral, acho que é essa: uma separação mais radical entre o que é hegemônico e o que não é – que aí se torna cada vez mais restrito.