Por Luiz Marques
Professor da UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul
“Como pude perder esse preciso/ arranjo de coisas simples e amorosas...?”
Jorge Luis Borges
O livro A Era do Capitalismo de Vigilância (2021), de Shoshana Zuboff, é leitura obrigatória sobre o futuro da democracia frente à ganância das grandes empresas de tecnologia digital, as chamadas big techs. O documentário O Dilema das Redes (Netflix) já havia destacado os riscos da economia da atenção, na qual vidas digitais convertem-se em estatísticas e são comercializadas para vender produtos e serviços.
As reproduções de vídeos no YouTube, as curtidas no Facebook, no Twitter e no Istagram transformaram-se em dividendos comerciais. “A experiência humana privada virou fonte gratuita de matéria-prima, traduzida em dados comportamentais reivindicados como propriedade para manufatura e comercialização”, descreve a obra. Toda busca na internet é capturada por aparelhos de inteligência artificial para classificar o perfil dos usuários. Mecanismos de direcionamento como o microtargeting psicológico, isto é, os algoritmos que balizam o envio de anúncios específicos para os potenciais consumidores, são acionados sempre que se bate na tecla do computador – e ofertas surgem na tela. Isso é invasão de privacidade.
A apropriação da subjetividade dos internautas corrompe o regime democrático e leva ao totalitarismo de mercado. As estratégias direcionais fazem do saber técnico um poder totalitário. É o modelo de negócios de Facebook/WhatsApp, Google, Amazon e Apple. “O Facebook calcula trilhões de dados todos os dias e produz 6 milhões de predições comportamentais, por segundo”, denuncia a professora de Harvard. Ferramentas online decodificam as inclinações subjetivas e orientam condutas e sentimentos das personas. O capitalismo de vigilância é o Big Brother real.
“O que enfrentamos na atualidade não é consequência da tecnologia em si ou da tecnologia digital, mas de circunstâncias incomuns... São operações econômicas criadas por pessoas que podem ser desfeitas por pessoas.” Zuboff não faz coro com a lenda do operário que, para salvar o emprego dos companheiros, destruiu o maquinário que impulsionava o desenvolvimento tecnológico na incipiente Revolução Industrial. Longe disso.
Prega, sim, que a sociedade seja proativa ao invés de espectadora da modernidade, fixando marcos para proteger a democracia. Urge a legislação em defesa de um regramento que dê transparência e limites aos negócios na esfera digital. “O parlamento europeu não somente aprovará uma legislação, mas vai financiá-la de forma robusta” – o que vai pressionar um padrão regulatório global para pôr uma canga nas big techs.
O cancelamento de autoridades das social media não pode depender de caprichos. Zuboff acusa Mark Zuckerberg pelo banimento tardio de Donald Trump. “Eu não digo Facebook. Eu digo Zuckerberg porque ele (o dono do bagulho) não é limitado por uma legislação pública. Essa é uma situação intolerável”, indigna-se. “As democracias liberais não conseguiram construir uma visão de futuro digital... O vazio foi preenchido pelo capitalismo de vigilância, com seus imperativos”, lamenta a pesquisadora. É hora de conferir racionalidade às idiossincrasias sobre as condições de permanência no debate público, nas redes.
“A democracia está sitiada... Precisamos de um arcabouço legislativo que permita às instituições fiscalizar, intervir e proibir operações antidemocráticas.” O business intelligence apartou-se das comunidades em que atua. As riquezas foram amealhadas pelas classes possuidoras, que agiram de acordo com a máxima conservadora de Margaret Thatcher: “a sociedade não existe, o que existe são os indivíduos e suas famílias”. É um modo de eximir o Estado de políticas sociais e redistributivas e, ainda, coroar as megacorporações como donas do mundo, para além do bem e do mal.
Há dinossauros do capital que continuam a se pautar pelo lema de Milton Friedman: “a responsabilidade social das empresas é o aumento do lucro”. O prêmio Nobel de 1976 e cofundador do berço do neoliberalismo, a Société du Mont-Pèlerin, não escondeu o cinismo ao equiparar “responsabilidade social” com a gana pelo “aumento do lucro”. Tampouco o presidente Jair Bolsonaro, ao tentar, em interesse próprio, institucionalizar por meio de Medida Provisória (MP) as fake news. Salve a cloroquina!
Cabe aos congressistas brasileiros elaborarem dispositivos legais para preservar a privacidade de cada cidadão e a verdade no universo web – a fim de não se repetir o lamento da epígrafe deste texto. Parafraseando a Tese III de Marx sobre Feuerbach, se antes era preciso interrogar quem educa o educador, agora a questão é: quem vigia o capitalismo de vigilância?