Se você não está pagando pelo produto, então você é o produto.” A frase perturbadora do documentário O Dilema das Redes é ouvida com frequência no Vale do Silício, berço das cinco maiores empresas de tecnologia – Apple, Microsoft, Amazon, Alphabet (Google) e Facebook. Juntas, as cinco valem cerca de US$ 7,35 trilhões, mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) de cada um dos países do mundo, com apenas duas exceções: Estados Unidos e China. Se as chamadas “big tech” formassem uma economia soberana, seriam a terceira maior do planeta, à frente de França, Reino Unido e Rússia, nações que emergiram da Segunda Guerra Mundial como potências dominantes do sistema internacional. Também teriam mais recursos do que Japão e Alemanha.
Como essas empresas adquiriram tanto poder a ponto de rivalizarem em riqueza com Estados-nação? Parte da explicação está na frase famosa do Vale do Silício. Essas cinco corporações não ganham dinheiro vendendo petróleo, aviões ou armas. Seus produtos são, na maior parte, intangíveis, e seus modelos de negócio, híbridos: comercializam serviços, softwares e, principalmente, publicidade online – e é aí que entramos nós, como “produtos”, com nossos cliques, curtidas e compartilhamentos, que rendem bilhões aos barões do século 21.
GZH comparou o PIB das 20 maiores economias do mundo e os valores de mercados das cinco companhias, com base em suas cotações da última terça-feira, na Nasdaq, a bolsa de tecnologia de Nova York. O resultado é impressionante – e um tanto assustador. Só a Apple, com seus US$ 2,17 trilhões de valor de mercado, é mais rica do que o Brasil, cujo PIB registrado em 2019 foi de US$ 1,8 trilhão. Microsoft e Amazon são maiores do que Espanha e Austrália. Alphabet, detentora do Google e do YouTube, entre outras empresas, é mais rica do que a Arábia Saudita, maior exportadora de petróleo do mundo, e o Facebook supera Turquia e Suíça.
Tamanho poder provoca tensões entre governos, que tentam limitar o alcance dessas empresas e regular o mercado – um desafio para o Estado, dada a novidade da natureza de seus negócios.
– Desde o macarthismo, nos anos 1950, e dos grandes processos contra a máfia, na década de 1980, nunca ocorreu um desafio às comissões de investigação do Congresso americano. As atitudes dessas empresas se aproximaram de deboche, com tom de arrogância. Mark Zuckerberg (CEO do Facebook) afirmou com todas as letras para o deputado que o estava questionando: “O senhor não sabe o que está falando. Não conhece os detalhes técnicos”. Esse é um sinal do poder acumulado, tanto financeiro quanto político e, de certa forma, ideológico. Essas empresas se colocam acima do Estado – afirma o economista Leonardo Trevisan, pós-doutor pela Universidade de Londres e professor de Relações Internacionais da ESPM-SP.
O pesquisador se refere ao depoimento, em julho, de CEOs de quatro corporações (Zuckerberg, do Facebook; Sundar Pichai, da Alphabet; Jeff Bezos, da Amazon; e Tim Cook, da Apple), que passaram mais de cinco horas em sabatina na Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados dos EUA sobre suposto abuso de posição dominante no mercado e prática de monopólio.
– Embora essas empresas ainda possam criar produtos inovadores, seu domínio está matando os pequenos negócios, a manufatura e o dinamismo que são os motores da economia americana – disse o democrata David Cicilline, presidente do subcomitê antitruste na ocasião.
Após 16 meses de trabalho, o comitê concluiu, em relatório de 400 páginas, que as big tech cometem abuso de “poder de monopólio”. Mal se passaram dois meses e, em gesto inédito, procuradores-gerais de 48 dos 50 Estados dos EUA ingressaram na Justiça contra o Facebook, acusado de atuar de forma ilegal e anticompetitiva ao comprar companhias concorrentes, como o Instagram, em 2012, e o WhatsApp, em 2014, para aniquilar competidores. Os procuradores avaliam que a estratégia permitiu a Zuckerberg concentrar excessivo poder econômico.
– Por mais de uma década, o Facebook usou sua dominância e poder para esmagar rivais e eliminar a competição, às custas de seus usuários – disse na ocasião Letitia James, procuradora-geral de Nova York, que lidera o grupo.
A ofensiva tem apoio do governo federal e une representantes dos partidos Republicano e Democrata, mesmo depois da polarização de uma das eleições mais disputadas em décadas, vencida por Joe Biden. Os Estados contaram com o apoio da Federal Trade Comission (FTC), órgão regulador da concorrência nos EUA, que investiga também o Google por concentração de mercado. Há pedido de reparações, como forçar o Facebook a vender alguns de seus negócios.
Para Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), os recentes embates entre governo e corporações lembram processos antitruste históricos, que contribuíram para construir regras sobre a livre-concorrência nos EUA. Depois de 18 anos de uma batalha que durou de 1974 a 1982, a AT&T aceitou um acordo que levou à cisão da empresa de telecomunicações. O governo alegava que a companhia detinha monopólio no mercado de telefonia local e de longa distância, além de equipamento telefônico. A Suprema Corte americana decidiu a favor do governo em 1911, finalizando um longo processo antitruste e abrindo caminho para a cisão da Standard Oil, de John D. Rockefeller. Ao analisar 1,3 milhão de documentos das big tech, o Congresso dos EUA comparou o caso “aos monopólios da era dos barões do petróleo e dos magnatas das ferrovias”.
– Seria interessante comparar a presença de lobistas de uma empresa de tecnologia em Washington com a de representantes de países menores. Uma companhia como o Facebook tem um exército de pessoas influenciando tomadores de decisão, não só em Washington, mas em Bruxelas e em Brasília. São espécies de diplomatas mobilizados para evitar decisões negativas – afirma o professor, autor do livro O Mundo pós-Ocidental.
A atuação das gigantes não só é maior do que todas as democracias do mundo (com exceção dos EUA) como também têm poder de colocá-las em xeque. Sobre a gigante de Zuckerberg pesam a acusação de ter vazado dados de milhões de usuários, as suspeitas de fraude nas métricas de publicidade, a propagação de notícias falsas e a divulgação de conteúdos tóxicos, como pedofilia e racismo, elementos que contribuem para corroer o tecido social, na avaliação de críticos.
No escândalo da Cambridge Analytica, ficou explícito o poder dos dados do Facebook, que podem ser usados para influenciar decisões políticas. Informações pessoais de 87 milhões de usuários da plataforma foram utilizadas pela empresa de consultoria política para dirigir anúncios para as timelines de pessoas com personalidades específicas. Os serviços da empresa foram usados pela campanha presidencial de Donald Trump em 2016. Pouco mais de um ano após o escândalo, o Facebook fechou acordo na Justiça com multa de US$ 5 bilhões – valor equivalente a apenas seis meses de lucro da empresa. Para Trevisan, episódios como esses, aliados aos testemunhos de dezenas de ex-funcionários das big tech que expuseram as entranhas das companhias em artigos, entrevistas e documentários, contribuem para retirar o véu que cobria o comportamento das redes sociais na sociedade.
– Elas formam opinião pública. Qualquer pessoa que tenha visto (os documentários) Privacidade Hackeada ou O Dilema das Redes não passa mais a acreditar que opinião pública é só opinião pública. Ninguém mais é tão inocente – diz Trevisan.
Bruno Bioni, diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, pondera que é esse acúmulo que pode redundar em freio efetivo ao monopólio e ao abuso do poder econômico:
– A regulação não é uma atividade só do Estado. Quando o consumidor começa a fazer escolhas baseado no histórico reputacional dessas empresas, quando a mídia passa a fazer esse debate, passam a modular o comportamento da sociedade.
Bioni observa que a teoria da regulação aplicada a novas tecnologias tem três níveis. O primeiro é compreender como esse mercado opera. O segundo envolve redução da assimetria de informação – como a que gerou o irônico comentário de Zuckerberg no Congresso americano –, cobrança de transparência, fixação de regras e responsabilização. Só na terceira vem “a lógica do porrete”, diz, que é a imposição de multas e outras penalidades, como a obrigação de vender partes do negócio.
Para Bioni, o enfrentamento às big tech ainda está na fase final de obtenção de informações para definir medidas mais fortes.
As relações com o Estado
Se internamente governos e grupos empresariais vivem às turras, no Exterior agem movidos por interesses mútuos, com as companhias atuando como extensões dos países na projeção de poder e influência.
– Há dualismo – pontua Stuenkel. – Por um lado, as empresas precisam ser vistas como atores independentes, mas, ao mesmo tempo, são elementos-chave que os próprios Estados se utilizam para projetar seu poder.
No século 15, empresas recebiam do Estado o monopólio do comércio em uma zona geográfica, tinham poder de cobrar impostos, assinar acordos comerciais, prender criminosos e declarar guerras. Era o caso da Companhia Holandesa das Índias Orientais, criada por empresários com apoio do governo dos Países Baixos para negociar com a Ásia. Foi a primeira corporação transnacional que emitiu bônus e ações para financiar seu crescimento, antecessora do que, séculos depois, são as multinacionais. Entre 1899 e 1970, empresas como United Fruit Company representavam os interesses de países, no caso os EUA, na América Central e no Caribe. Ajudava a derrubar governos locais e a implantar regimes que facilitassem suas atividades, cunhando o termo “república de bananas”.
– Uma empresa escolhia uma determinada produção, geralmente a mais fácil, banana, e, a partir disso, assumia liderança política, matava, exercia o poder absoluto. Mas não ocupava as mentes. Não é o que temos hoje. Quando você via o poder imperialista de uma empresa europeia, no Congo Belga ou na Colômbia, ela estava ali de forma concreta, representava o governo. Hoje, esse poder é mais difuso – afirma Trevisan.
Estamos voltando um pouco a esse mundo em que as empresas são vistas como elementos estratégicos não só do ponto de vista econômico, mas do interesse nacional.
OLIVER STUENKEL
Professor de Relações Internacionais da FGV
Um dos casos mais suspeitos – e polêmicos – de suposta inferência estatal no setor privado envolve companhias chinesas, acusadas pelos EUA de serem extensões dos interesses do Partido Comunista Chinês. Recentemente, o governo Trump ameaçou proibir os aplicativos TikTok e WeChat de operarem no seu país se não tivessem controle americano. O governo acusa as companhias de disseminarem conteúdos alinhados à agenda do regime chinês. Em sua defesa, o TikTok diz que nunca compartilhou dados dos usuários com o governo chinês nem censurou conteúdo a seu pedido.
No caso da Huawei, a briga é maior – e mais tentacular –, com os EUA pressionando aliados, como o Brasil, a não aceitarem a tecnologia chinesa em suas redes 5G. Mateus Cardoso Martini, nascido em Porto Alegre, que é diretor regional da Região Sul da Huawei, sustenta que a empresa é 100% privada, não parte do governo chinês ou de qualquer outro país:
– Temos tranquilidade em relação a isso porque é uma das empresas mais transparentes do mundo.
Uma das ameaças dos EUA à Huawei é interromper o abastecimento de chips da empresa chinesa, ou seja, usar companhias privadas como arma de sua guerra contra a expansão chinesa. Martini repete Xi Jinping, que já posou de defensor do livre-mercado, ao dizer que a cadeia de suprimento da empresa chinesa é global e não depende de fornecedores de uma só nacionalidade.
– Estamos voltando um pouco a esse mundo em que as empresas são vistas como elementos estratégicos não só do ponto de vista econômico, mas do interesse nacional. A Alemanha, por exemplo, bloqueia a aquisição de uma empresa de inteligência artificial por um interessado chinês porque não quer que esse conhecimento e essa tecnologia possam ser usados também para o desenvolvimento de armas – ilustra Stuenkel.
É preciso esperar a maturação das regulações. Fazendo um paralelo com o Código de Defesa do Consumidor, que levou anos para ser adotado, mas foi decisivo para causar uma mudança social. Ainda é cedo para dizer que as big tech vão controlar o mundo.
BRUNO BIONI
Diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa
Uma das dificuldades em comparar a força dessas corporações tecnológicas se deve ao fato de que o poder de um Estado se baseia em seu território, em sua população e no controle desse território, avaliam especialistas. As empresas não têm essas prerrogativas. A China pode vetar a entrada do Facebook, e o EUA tentam barrar o TikTok. No entanto, é cada vez maior o poder das empresas de fornecer bens públicos. Há pouco tempo, o Facebook ofereceu conectar à internet populações rurais na Índia por meio de satélites. O governo indiano negou ao vislumbrar uma ameaça de que a empresa se tornasse fornecedora de serviço público básico.
– Há a ascensão de uma classe de empresas, como Facebook e Google, que são, em várias dimensões, mais poderosas do que os países. Ao mesmo tempo, estamos vivendo, com o fim da hiperglobalização, a volta da geopolítica clássica. Vemos uma tentativa dos Estados de retomar um pouco o seu poder, inclusive sobre o setor privado. A pandemia acelerou esse processo: aumenta a definição de áreas que o Estado considera estratégicas, como saúde, telecomunicação e transporte. Isso vai fazer com que o setor privado fique mais sujeito a regulações – prevê Stuenkel.
No dia 15/12, União Europeia (UE), Reino Unido e Irlanda deram mais um passo para controlar o poder acumulado pelas gigantes da tecnologia. Na UE, o objetivo é exigir que as empresas façam mais com o objetivo de evitar os discursos de ódio e a venda de produtos falsificados e abram informações sobre seus sistemas de publicidade dirigida. No Reino Unido, a disposição é banir das redes os conteúdos relacionados a terrorismo, suicídio e abuso infantil, sob pena de multas de bilhões de dólares. Na Irlanda, o Twitter foi multado em 450 mil euros (cerca de R$ 2,8 bilhões) por violar a lei geral europeia de proteção de dados. É a primeira penalidade financeira com base na legislação adotada em 2018.
Mas as big techs acumularam tanto poder que uma dúvida se impõe: as nações soberanas terão condições de frear as corporações que parecem dominar o mundo, como em filmes de futuro distópico? Bioni tem uma resposta otimista:
– A regulação se presta a isso. Se há diagnóstico de que as ferramentas disponíveis são ineficientes, terão de ser criadas novas. Mas também é preciso esperar a maturação dessas regulações. Fazendo um paralelo com o Código de Defesa do Consumidor, que levou anos para ser adotado, mas foi decisivo para causar uma mudança social. Ainda é cedo para dizer que as big tech vão controlar o mundo.