Um dos principais especialistas na relação bilateral entre Brasil e China, o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Oliver Stuenkel acredita que o gigante oriental deve tirar proveito da tensão criada a partir das críticas recentes feitas pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, para garantir vantagens em negociações comerciais. Para o pesquisador, autor do livro O Mundo Pós-ocidental: Potências Emergentes e a Nova Ordem Global (Editora Zahar), o governo chinês projeta sua relação com parceiros a longo prazo. Nesse sentido, eventuais crises seriam passageiras diante do pragmatismo de Pequim, que prioriza uma estratégia de pelo menos uma década. Na entrevista a seguir, Stuenkel analisa o atual estágio das relações econômicas e políticas entre as duas nações, os riscos, perdas e ganhos da tensão política entre o Brasil e seu principal parceiro econômico e as perspectivas de um cenário pós-pandemia de coronavírus.
A China é a principal parceira econômica do Brasil e nossa maior fornecedora de insumos médicos. Governadores e autoridades de saúde estão preocupados com o nível inédito da rispidez de falas como as de Eduardo Bolsonaro e de membros do governo brasileiro, como o ministro Abraham Weintraub, com relação ao país. Até onde vai o pragmatismo e a paciência chineses?
A China tem uma diplomacia muito objetiva no sentido de não levar essas questões para o lado pessoal. O país pensa sobre todos os temas da atualidade sempre no contexto de longo prazo. Estrategistas chineses com os quais converso sempre analisam como será a relação bilateral daqui a 10, 20, 30 anos. É importante pensar que, diferentemente do Ocidente, onde essas questões podem ter um impacto eleitoral a curto prazo, na China não é bem assim. O Brasil, em função de sua relevância para a alimentação da população chinesa, é visto como parceiro de longo prazo. Logo depois da eleição de Jair Bolsonaro, estive em Pequim, e eles disseram: “Ele é claramente uma pessoa que abraçou um discurso anti-China, a gente enxerga um risco nisso”. Mas também afirmaram: “Pode ser um governo com um discurso anti-China por quatro, oito anos, mas a nossa relação com o Brasil vai muito além disso”. A tendência é de que a China sempre pense sobre essas questões num contexto histórico maior. O Brasil é visto como realmente importante, mais até do que alguns países europeus, porque a China buscará produzir produtos e competir diretamente com algumas nações europeias, uma vez que disputa um mercado de altíssimo valor agregado, algo que nunca poderá fazer com o Brasil. Com relação a essas agressões, há uma preocupação de que pode ser o início de uma sinofobia, algo que já existe em outros países. A China sabe que é inevitável que isso surja em função de sua própria ascensão nos últimos anos. É comum que, uma vez que uma grande potência inicie seu projeto de hegemonia global, isso gere respostas. Agora, a China sempre busca enxergar essa situação como uma oportunidade. O país está em uma posição de pedir descontos nas compras do Brasil, por exemplo. Saberá renegociar alguns aspectos da relação bilateral, pode endurecer os termos, porque o Brasil ficou em uma posição fragilizada. Pode obter garantias em relação à participação da Huawei (gigante de tecnologia do governo chinês) no mercado. Mais do que punir o Brasil, deixar de comprar produtos, a China saberá aproveitar essa situação para melhorar os termos da relação para si própria. Apesar de ser difícil de calcular, essa retórica anti-China tem um custo tangível para o Brasil.
A China vai guardar na manga essas críticas para usá-las a seu favor no futuro?
Sim. Quando Bolsonaro ligou para o presidente Xi Jinping para pedir desculpas (após declarações de Eduardo Bolsonaro), a China certamente aceitou esse pedido, mas aproveitou para reiterar seu interesse, de maneira bem diplomática, em algum ponto específico que estava sendo negociado. Toda relação bilateral é uma negociação constante, da quantidade de produtos que vão ser comprados ao seu preço. A China certamente aproveitou esse momento de fragilidade em que o Brasil se colocou quando veio e disse “pedimos desculpas pelo que aconteceu”. Pode ser o momento em que a China aproveite para trazer algum tema que queria há bastante tempo, inserindo-o na conversa. O Brasil não tem como dizer “a gente está pedindo desculpas, mas você está pedindo demais”.
Quando Bolsonaro ligou para Xi Jinping para pedir desculpas, a China certamente aceitou o pedido, mas aproveitou para reiterar seu interesse em algum ponto que estava sendo negociado. Três dias depois, o Brasil anunciou que permitirá a participação da Huawei no leilão da rede 5G no país.
Houve algum pedido nesse sentido por parte dos chineses?
Três dias depois da conversa entre Bolsonaro e Xi, o Brasil anunciou que permitirá a participação da Huawei no leilão para a construção da rede 5G no país. Para mim, isso é uma grande vitória para a China e uma derrota para o governo Donald Trump, porque, afinal, o governo Bolsonaro e o Brasil, pelo menos na retórica, são um dos países mais pró-Trump, e o 5G escancara a disputa entre EUA e China pela exportação de suas tecnologias para a rede.
Os chineses costumam ser muito discretos. Surpreenderam as reações enfáticas da embaixada chinesa diante das provocações de Eduardo Bolsonaro e do ministro Weintraub?
A reação forte dos diplomatas chineses mostra que o mundo mudou. A China, hoje, é um ator muito mais confiante no cenário da política internacional. Com a chegada de Xi Jinping ao poder, aquele ditado antigo de “aguardar seu tempo chegar” acabou. Podemos ver, ao redor do mundo, diplomatas chineses adotando posturas mais assertivas, e em alguns casos até arrogantes. A reação dos diplomatas chineses mostra essa confiança e, como tática de negociação, escalar esse conflito pode até trazer algumas vantagens para a China, porque fragiliza ainda mais o outro lado na negociação bilateral. Por exemplo, todos os governadores precisam chegar ao embaixador e dizer: “Mil desculpas, realmente foi péssimo etc.”. E aí o chinês responde: “Claro, vamos só ajustar aquele detalhe aqui na nossa relação comercial, vamos baixar um pouquinho o preço da soja brasileira, tudo bem?”. Tudo bem, sim. Não tem outro jeito. A China também percebeu a angústia que esses comentários causaram entre agricultores, governadores e saberá utilizar isso. O Brasil ficou fragilizado na sua relação bilateral com a China.
Como a China projeta a relação com o Brasil daqui a 10 ou 20 anos?
A China pensa sua relação com o mundo a partir de suas necessidades e vulnerabilidades. E as duas vulnerabilidades fundamentais são a falta de autossuficiência em energia e alimentação – algo que os EUA nunca encararam. A maneira como a China olha para o mundo é diferente, porque está numa situação muito mais frágil em função disso. As alianças de longo prazo são fundamentais, a diversificação de parcerias também. As pessoas perguntam: “Por que a China não condena o que acontece na Venezuela?”. A China precisa sempre ter um grande portfólio de fornecedores de petróleo. Ela não é autossuficiente. Tem medo de ter uma má relação com a Venezuela porque isso, lá na frente, pode gerar uma situação difícil. Então, ela trata bem os países exportadores de petróleo: Angola, Sudão. Com medo de ficar desabastecida, opta por não criticar assuntos internos desses países. É o mesmo no caso dos alimentos. A soja é fundamental para alimentar animais chineses que, depois, são importantes para a alimentação da população. Soja é muito mais importante hoje do que minério de ferro, porque esse boom de infraestrutura acabou. A população chinesa está entrando na classe média, o que fez aumentar seu consumo de proteína. O Brasil, nesse esquema, é fundamental.
É possível identificar o grau de influência e controle do governo chinês nas empresas privadas do país? Qual a interferência?
É algo muito difícil de nós, na nossa cultura, compreendermos. Nas vezes em que converso com analistas ocidentais que estão há décadas morando na China, eles dizem que é uma frustração, porque não há algo escrito sobre essa relação. É mais informal. As empresas, obviamente, têm independência. Na prática, uma empresa chinesa pode competir contra outra e faz isso todo tempo no Exterior. Há um forte elemento capitalista, e muitas atuam e tomam decisões de maneira independente. Porém, grandes empresas têm um representante do Partido Comunista em seu conselho. Por exemplo, quando Bolsonaro foi eleito, nos primeiros meses, certamente aconteceu alguma comunicação do governo central às empresas em geral. Em todas as minhas conversas, os investidores chineses, os analistas, diziam que, por enquanto, talvez não fosse um bom momento para investir no Brasil, porque o investimento de uma empresa chinesa em um país pode ser uma maneira desse país se aproximar de Xi Jinping. Evidentemente, houve uma redução dos investimentos chineses. Uma percepção clara é a de que empresas brasileiras que tentavam obter permissões para produzir na China tenham tido esse processo travado. As empresas ficam acompanhando a qualidade da relação bilateral, que pode assim acabar tendo impacto real no dia a dia da relação bilateral.
O vice-presidente Hamilton Mourão continua sendo o elo entre os dois governos?
Na viagem do ano passado à China, ele deixou uma ótima impressão. Soube muito bem lidar com a situação. Foi recebido por Xi Jinping, algo raríssimo, que também prova a importância do Brasil. Xi não recebe qualquer vice-presidente. Não foi uma conversa curta, durou uns 40 minutos. Mourão é visto como espécie de garantia de que as coisas não vão degringolar completamente. Tereza Cristina (ministra da Agricultura) também. Mas os chineses que têm uma compreensão sofisticada da política brasileira percebem que Mourão, cada vez que faz essas intervenções, é atacado por um grupo mais radical do governo. Qualquer garantia também depende do contexto político. Os chineses acompanham a maneira como Mourão consegue controlar essas facções radicais. Manifestações tanto de Eduardo Bolsonaro quanto do ministro da Educação mostram que Mourão tem poder reativo, mas que ele não consegue evitar esse tipo de declaração. Não chegou e acho que não chegará o momento em que a China vai dizer “não vamos mais comprar soja de vocês”, mas Mourão, pelo menos nesse momento, não foi capaz de evitar a escalada da crise. Ele é um ator importante, porém, só será visto como garantia da estabilidade da relação bilateral em função de sua capacidade de reduzir ao máximo a incidência de casos como esses que a gente viu nas últimas semanas.
Apesar da importância econômica e diplomática, a relação Brasil-China ainda é marcada pela falta de conhecimento mútuo, o que oferece um campo fértil, infelizmente, para teorias da conspiração.
As falas de Eduardo Bolsonar e de Weintraub seguem a lógica do que a gente vê nos EUA, insufladas pela direita radical de personagens como Steve Bannon, ex-estrategista de Trump. Também nos EUA, há facções anti-China dentro do governo? Essas manifestações de brasileiros estão articuladas com elas?
Nos EUA, também há essas facções. Há uma mais pró-livre comércio ligada ao setor agrícola que sabe da importância da parceria com a China, que foi contra a guerra comercial, e um grupo que tem uma postura mais dura em relação à China. Mas, nos EUA, há outro contexto, porque, realmente, a ascensão chinesa tem um grande impacto para os americanos e pode levar à erosão de sua liderança global. Em muitos aspectos, a China hoje tem uma influência em algumas regiões até maior do que os EUA. Com Barack Obama já havia muitas queixas de empresas de tecnologia americana com relação à espionagem industrial da China, questões de copyright e de quebra de patentes. Houve tensão. Obama foi o último presidente com uma visão mais otimista com relação à China. Isso já mudou no seu segundo mandato. Com Trump, há uma percepção clara de que a relação vai piorar, porque estamos entrando em uma fase mais conflituosa entre a liderança estabelecida e uma grande potência em ascensão, como ocorreu tantas vezes na História. Trump articulou, de maneira bastante tosca, esse novo consenso. Não acho que a relação com a China melhorará muito se Joe Biden (pré-candidato democrata) ganhar as eleições de novembro. Trump de certa maneira articulou uma ideia geral de que a China precisa ser contida de modo mais agressivo. No Brasil, essa lógica não se aplica. A posição global do Brasil não é ameaçada pela China. No caso brasileiro, o discurso anti-China é uma tentativa de provar aos americanos que a relação bilateral Brasil-EUA é importante.
Uma demonstração de fidelidade brasileira ao governo dos EUA?
Quando Bolsonaro foi eleito, os diplomatas americanos deixaram muito claro que, se o Brasil quiser ter uma parceria forte com os EUA, há duas coisas que eles querem. A primeira é resolver a crise na Venezuela, envolvendo a saída de Nicolás Maduro. Segundo: ajudar a reduzir a influência chinesa na América Latina. E ambas o Brasil não consegue fazer. Não tem capacidade de derrubar Maduro, não é do interesse do Brasil fazer isso, pioraria muito a relação com outros países do continente, e não há apoio entre os militares também. E o Brasil tem dificuldade em limitar a influência chinesa porque é seu principal parceiro comercial. Essas falas anti-China são uma espécie de compensação aos americanos: “Olha, tudo bem que a gente não pode limitar nossa relação comercial, nem limitar influência chinesa na América Latina, mas olha só, pelo menos estamos falando mal dos chineses”. Obviamente, por razões internas políticas, é bom ter um inimigo externo, isso sobretudo para presidentes populistas. Historicamente, tem sido uma estratégia. Bolsonaro tentou isso na eleição, tentou demonizar os venezuelanos, a Argentina. É uma tática de buscar mobilizar seguidores. É preciso ter inimigos. E aí surge o comunismo. A ascensão chinesa pode trazer aspectos negativos, mas ela hoje não está propagando o comunismo. Essa retórica de facções do governo brasileiro lembra o sentimento da Guerra Fria, como se a China tivesse um projeto de apoiar partidos comunistas ao redor do mundo. O objetivo da China hoje não é a propagação do comunismo.
Até a guerra comercial entre EUA e China foi em parte interrompida quando Trump e Xi Jinping se dispuseram a colaborar na luta contra o coronavírus. Qual o risco de o Brasil sobrar se insistir na retórica anti-China?
A relação com a China sempre será muito mais importante para os americanos do que para o Brasil, mesmo se Bolsonaro falar mal da China todos os dias, mesmo se derrubar Maduro. É uma realidade econômica. A relação bilateral entre China e EUA é a mais importante do mundo. A relação com o Brasil sempre será vista em função dessas duas grandes potências.
A relação entre o Brasil e a China está no seu pior momento?
Há uma relação histórica e diplomática, mas de baixa relevância econômica. O Brasil e a China voltaram a ter relações diplomáticas em 1974, quando o então presidente militar Ernesto Geisel decidiu reestabelecer esse laço. Foi o chanceler Azeredo da Silveira que convenceu Geisel a reconhecer a República Popular da China. Foi um passo muito pragmático. Mas as relações comerciais só ganharam importância nos anos 1990. Por um bom tempo, ser removido como diplomata para Pequim era uma espécie de punição. Hoje, é bem diferente. Os jovens diplomatas brasileiros que vão a Pequim têm futuro, são os melhores. Houve essa mudança de percepção entre o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e o primeiro de Lula. Foi quando o mundo percebeu a importância chinesa em função da alta dos preços de commodities. É algo muito recente. O número de especialistas em China no Brasil é muito baixo, assim como o de pessoas que falam mandarim. Esse é o grande obstáculo hoje. Há uma escassez enorme no mercado de jovens brasileiros que topam ir para a China, que possam cuidar dessa parceria. Apesar da importância econômica e diplomática, a relação Brasil-China ainda é marcada pela falta de conhecimento mútuo, o que oferece um campo fértil, infelizmente, para teorias da conspiração. Porque, quando uma pessoa viaja à China e conhece os chineses, fica muito menos vulnerável a histórias como a de que “os chineses exportaram o vírus para derrubar o capitalismo”. A China é um país muito mais parecido com o Brasil do que com os EUA por estar ainda em desenvolvimento.
Em seu livro, o senhor defende que o mundo hoje é cada vez mais “chinocêntrico”. Quando pensamos na ordem global pós-pandemia, qual deve ser a posição do Brasil em relação a esse gigante?
Não há dúvida de que a China terá papel chave na recuperação econômica de muitos países em desenvolvimento. O Brasil deve sempre ter uma boa relação com os EUA e com a China. Deve deixar claro que não são coisas excludentes, que ser parceiro importante político e econômico dos EUA não tem implicações para a relação com a China. Não fazer disso uma coisa A ou B. O Brasil tem longuíssima experiência diplomática em mostrar jogo de cintura. Se há um país do mundo que tem a flexibilidade e capacidade diplomática em articular e manter boa relação com os dois é o Brasil Esse será um desafio para todos os países: como manter amizade com os dois gigantes. Tudo indica que o estrago causado pela pandemia na economia chinesa será menor do que nos EUA, o que limitará a capacidade americana de liderar a recuperação, acelerando assim a chegada de um mundo cada vez mais sinocêntrico.