Guerras, catástrofes e pandemias como a que estamos vivendo costumam ser consideradas, nas relações internacionais, momentos importantes da história da humanidade porque representam pontos de mudança sistêmica. Rupturas. Em outras palavras, é como se nossa sociedade sofresse um terremoto, movimentos tectônicos avassaladores, que transformam nosso dia a dia, nosso modo de trabalhar, de se relacionar, de se entreter. Com as relações entre os países ocorre algo semelhante. O coronavírus está alterando o equilíbrio de poder entre as nações, e, conforme pesquisadores, redefinirá os rumos da geopolítica e da economia, pondo fim a um ciclo e inaugurando uma nova ordem mundial.
Neste breve século 21, vivemos pelo menos dois momentos como esse. O primeiro foi em 11 de setembro de 2001, quando, pela primeira vez, os Estados Unidos foram atacados em seu território continental. Desde que aviões comerciais foram arremessados como mísseis contra o World Trade Center e o Pentágono, nossas vidas nunca mais foram as mesmas: a forma de viajar foi alterada. Mas o mundo também mudou muito de lá para cá. O governo americano deflagrou uma guerra ao terror, seu foco de interesse mirou a Ásia, houve as invasões do Afeganistão e do Iraque, Osama bin Laden foi morto, o grupo Estado Islâmico foi criado e o coração da Europa sofreu atentados de lobos solitários, munidos de facas e caminhões, em Nice, Barcelona, Berlim, Londres e outras cidades. A crise de 2008 foi o segundo momento de transformação. Trouxe de volta o fantasma da Grande Depressão, dos anos 1920. O coronavírus, apontam especialistas, seria a terceira.
Que mundo irá nascer quando a crise atual acabar e pudermos de novo sair às ruas sem medo, abraçar amigos e familiares e respirarmos aliviados? Que países estarão mais fortes e como ficará o jogo de poder do tabuleiro de xadrez internacional?
O vírus chegou no momento em que dois titãs planetários ensaiavam um duelo que, por si só, já exigiria do Brasil um posicionamento. Com maior Produto Interno Bruto (PIB) e mais poderosa força militar do mundo, os Estados Unidos buscavam frear o apetite político e econômico da China. A competição de redes 5G, rusgas sobre propriedade intelectual e investimentos internacionais, entre eles a chamada Nova Rota da Seda, eram apenas algumas flexões iniciais de músculos do dragão asiático. Passado, ao menos até agora, o pico da covid-19 em território chinês, Pequim se lançou em uma ousada diplomacia para conquistar ainda mais influência na Europa, continente sugado para o epicentro da crise neste momento, com milhares de mortos na Itália e na Espanha, e que, mesmo antes do coronavírus, já vivia uma crise de identidade em razão do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia (UE).
Nos últimos dias, enquanto os Estados Unidos da era Donald Trump negavam a gravidade da situação, suspendiam voos provenientes da Europa e se fechavam em si mesmos, a China despejou dinheiro, médicos e equipamentos no Velho Continente. Conforme o governo chinês, foram doados US$ 20 milhões à Organização Mundial da Saúde (OMS), enviados 2 milhões de máscaras cirúrgicas e 50 mil kit de testes à UE, médicos desembarcaram na Itália com toneladas de medicamentos, cargueiros aterrissaram em Bruxelas com equipamentos para Bélgica, França e Eslovênia. Essa seria só uma amostra da chamada “diplomacia do vírus”. Segundo o Partido Comunista Chinês (PCC), mais de cem países receberam apoio de Pequim, entre eles nações africanas e do Oriente Médio, como Líbano, Síria e Irã.
A extensão e a repercussão da crise derivam do peso da China. Para efeito de comparação, no início da década, quando houve a crise da sars, a nação representava 4% da economia global, e hoje significa 17%. Trata-se da segunda economia mundial, o maior importador e exportador e centro de suprimento de produtos industriais para as cadeias globais de valor. Conforme estudiosos consultados por GaúchaZH, é impossível imaginar o mundo pós-coronavírus sem a liderança dos chineses, direta ou indiretamente. Mas como seria o futuro, com uma recessão no horizonte que os mais pessimistas comparam ao pós-1945?
– A crise do coronavírus exige uma resposta com a ambição do Plano Marshall e a visão do New Deal (programa de combate aos efeitos da recessão dos anos 1930 nos EUA) – afirmou, no dia 21, o secretário-geral da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o mexicano Ángel Gurría.
Segundo ele, é cada vez mais provável uma sequência de quedas de PIB regionais e globais neste e nos próximos trimestres de 2020. Para o economista, a única forma de combater uma recessão duradoura seria um esforço amplo, que fortaleça a saúde pública, alivie o choque econômico e desenhe o caminho para a recuperação.
O Plano Marshall foi uma iniciativa do governo americano para a reconstrução da Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial. Entre 1947 e 1951, foram aplicados US$ 13 bilhões em 17 países, investimento maciço que contribuiu para as elevadas taxas de crescimento registradas no continente na década de 1950. Mas a iniciativa não veio imediatamente após a guerra, alerta o economista Leonardo Trevisan, pós-doutor na área de Economia do Trabalho pela University of London e professor de Relações Internacionais da ESPM-SP, e sim somente dois anos depois da rendição da Alemanha nazista.
Se sou a Itália hoje e os EUA dizem 'não aceite 5G, cuidado com chineses', eu olho quem está me dando as máscaras agora, no momento em que mais preciso. São os chineses. Eu direi: 'Como assim? Por que vou excluir a empresa chinesa? Não faz sentido'.
OLIVER STUENKEL
Autor de "O Mundo Pós-Ocidental – Potências Emergentes e a Nova Ordem Global"
– A vida da Europa ficou muito pior depois do que durante a guerra. O pior inverno que a Europa enfrentou foi o de dezembro de 1945, quando a guerra já tinha terminado. Durante o conflito, você tinha a economia de guerra, a estrutura montada. Quando ela terminou, a estrutura desapareceu. Não havia energia para aquecer as pessoas no inverno, foi dramático. Os Estados Unidos perceberam que precisavam fazer alguma coisa – explica.
Pesquisadores como Trevisan evitam comparações com o período atual, uma vez que os contextos são diferentes. A Europa após o conflito global estava fragilizada e havia um total vácuo de poder. Hoje, apesar do Brexit, nações como Alemanha e França exercem liderança.
– Na época, você tinha duas opções para reconstruir o continente: uma comunista e outra capitalista. Havia um duelo sobre o jeito de reconstruir – pontua.
Em uma visão apressada, poderia se imaginar que a China representaria nos dias de hoje esse papel em oposição aos Estados Unidos. Mas, além dos contextos diferentes, estudiosos como o professor Oliver Stuenkel, autor de O Mundo pós-Ocidental – Potências Emergentes e a Nova Ordem Global, alertam que Pequim não quer, ao contrário dos soviéticos, incorporar o papel de opositor do Ocidente:
– Os chineses rejeitam essa comparação porque o Plano Marshall era contra um ator, a União Soviética. Os chineses sempre dizem: “O nosso plano é contra ninguém”.
O nível de liderança exercido pelo China dependerá do desempenho dos EUA em administrar a pandemia em seu território. Se houver uma catástrofe nos EUA pela ineptidão das autoridades federais, a China se fortalece.
FABIANO MIELNICZUK
Professor da UFRGS
Outra diferença, explica Trevisan, é que hoje o mundo é multipolar – e não bipolar, como EUA versus URSS da Guerra Fria disputando influência. Mesmo que ávidos por maior espaço na arena global, os chineses têm se posicionado em defesa da globalização.
Em seu livro, Stuenkel pontuava, já em 2016, uma migração do centro do poder político, econômico e militar do Ocidente para a Ásia e com papel importante das potências emergentes:
– Situações como a atual, com crises econômicas profundas, aceleram tendências que em circunstâncias normais demoram. Muitas vezes, essas crises também revelam coisas que já estavam acontecendo mas que, em função da estabilidade, as pessoas não se davam conta. Algo que fica evidente com essa pandemia é um país (China) que enxerga na crise uma oportunidade, vê naquilo uma maneira de consolidar sua influência, se coloca como provedor de bens públicos globais e o outro (EUA) nem chegou a pensar sobre.
Em outras palavras, há uma percepção de que a realidade já avançou, e o sistema dentro do qual nós operamos está se tornando menos capaz de captar essa realidade. Para o pesquisador, as principais instituições internacionais, como Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (Bird) e ONU, ainda têm como endereços os Estados Unidos, enquanto o planeta mira o Oriente.
– Sem o apoio financeiro dos EUA, a Alemanha jamais seria o que é hoje. Vai ser assim com a China? Não, vai ser um pouco diferente. Os jovens gregos vão querer ser iguais aos chineses? Não. A decisão chinesa de ser o principal fornecedor de máscaras para a Itália, enquanto a Alemanha decide proibir a exportação desse item no meio da pandemia, é obviamente “soft power” – explica, referindo-se ao termo do cientista político americano Joseph Nye segundo o qual os países exercem influência não apenas pela força militar, mas pela capacidade de persuasão.
– Se sou a Itália hoje e os EUA dizem “não aceite 5G, cuidado com chineses”, eu olho quem está me dando as máscaras agora, no momento em que mais preciso. São os chineses. Eu direi: “Como assim? Por que vou excluir a empresa chinesa? Não faz sentido” – afirma.
Para o professor Fabiano Mielniczuk, do Departamento de Ciência Política da UFRGS, a criação de um plano de recuperação econômica em escala mundial após a pandemia conferiria maior importância aos mecanismos já existentes, por meio do FMI e do Bird, além de agrupamentos como o G-20 e os Brics (grupo com Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul).
– O nível de liderança exercido pelo China dependerá necessariamente do desempenho dos EUA em administrar a pandemia em seu território. Se houver uma catástrofe nos EUA pela ineptidão das autoridades federais, a China se fortalece. Mesmo assim, o país deve manter sua tradição de fortalecer os organismos multilaterais para mitigar os efeitos econômicos da pandemia – argumenta.