A pandemia de coronavírus coloca o mundo em um estado de emergência, do qual surgirá, depois de passado o período crítico da doença, uma nova ordem internacional. O tabuleiro do jogo de poder, que tem visto uma ascensão chinesa, certamente sairá impactado. A adoção de programas internacionais de cooperação, como o caso do Plano Marshall no pós-Segunda Guerra Mundial, pode estar no horizonte. Mas e o Brasil – como se posicionará diante do mundo pós-coronavírus?
Por aqui, a ideia de um Plano Marshall ganhou voz pelas palavras do fundador da XP Investimentos, Guilherme Benchimol, que defendeu a iniciativa para evitar que o país enfrente uma situação de caos gerado por desemprego. Em videoconferência com a participação do presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, ele considerou não ser improvável que o Brasil chegue a 40 milhões de desempregados até o fim do segundo trimestre.
E citou a previsão apresentada por James Bullard, do Federal Reserve (FED) de St. Louis, de que a taxa de desemprego nos EUA poderá chegar a 30% em meio à paralisação da atividade econômica. André Street, da Stone, disse que, “apesar de defensor absoluto do livre mercado”, também entende que o momento pede atuação do governo para garantir o funcionamento da economia. Para o economista-chefe da corretora Necton Investimentos, André Perfeito, a crise de 2008 ocorreu dentro do sistema financeiro.
– Naquela época, tivemos um ativismo monetário, muita política de taxa de juro que foi feita, corte de juro, expansão de balanço do banco central, porque era um problema que tinha de ser resolvido dentro do mercado financeiro. Hoje, embora se tenha uma característica como essa, é um pouco diferente. Ao invés de o mercado financeiro ter contaminado a economia real, foi a economia real que contaminou o mercado financeiro – diz.
Para o economista, os governos irão gastar muito com a crise:
– Todo mundo mandou às favas os bons modos fiscalistas. Ninguém está ligando para isso agora. Os Estados nacionais vão sair endividados.
O economista destaca uma diferença em relação ao plano de reconstrução da Europa após a Segunda Guerra e uma estratégia chinesa de empoderamento e financiamento capaz de reerguer a economia hoje. Embora a China projete influência econômica, a moeda dominante continua sendo o dólar – e não o yuan:
– Moeda é uma relação de confiança. Em quem o mundo vai confiar? Se de um lado a China está ganhando espaço, o yuan não é uma moeda internacional.
Do ponto de vista da política externa, segundo especialistas, nunca foi tão fundamental o Brasil exercer uma das tradições de sua diplomacia: o pragmatismo. Mesmo que o governo prefira o alinhamento estratégico com os EUA, especialistas sustentam que o Palácio do Planalto não deve comprar briga com a China, principal parceiro econômico do país. Isso significa resistir a preferências ideológicas do setor do governo que tem no ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, um de seus defensores. Também é necessário conter arroubos como o do deputado Eduardo Bolsonaro, que, ao culpar a China pelo surgimento do vírus, motivou uma reação dura da embaixada de Pequim no Brasil.
– É importante deixar simpatias pessoais de lado – diz Stuenkel.
Pesquisadores citam estrategistas como Henry Kissinger, ex-todo-poderoso secretário de Estado americano, que, nos anos 1970, protagonizou a aproximação entre os EUA e a China maoísta. Ele representava o governo de Richard Nixon, republicano e conservador, mas conseguiu ver na ocasião uma chance de isolar a URSS.
– Não precisa ser amigo da China hoje. Kissinger não tinha simpatia pelo Mao Tsé-tung, mas viu que tinha uma oportunidade. O Brasil precisa ter uma boa relação com os dois, EUA e China, em um cenário em que ambos estão competindo pelo Brasil, oferecendo vantagens ao nosso país. Do ponto de vista econômico, a importância da China só vai aumentar – afirma Stuenkel.
O tamanho do Estado
Outra questão que irá gerar reflexão após a pandemia será o papel do Estado. Um dos primeiros a mudar seu discurso foi o presidente francês Emmanuel Macron, que vinha implementando uma política neoliberal, com reforma trabalhista, mudanças no seguro-desemprego e o encaminhamento de alterações na previdência, que levou parte da população às ruas e originou o movimento dos Coletes Amarelos. Agora, ele diz que não há pressa em mexer na aposentadoria, que é preciso confiar no Estado e que o mercado não pode regular tudo. Analistas apostam em uma profunda reflexão sobre a organização econômica e o que se espera dos sistemas de saúde e educação.
– Brinco com o que dizia minha vó: quando a água sobe muito, todos aprendem a nadar. É o que está acontecendo. A água subiu, e as pessoas recuperaram a perspectiva de que tinham de olhar para única instituição com função organizadora, que é o Estado – diz o economista Leonardo Trevisan, pós-doutor na área de Economia do Trabalho pela University of London e professor de Relações Internacionais da ESPM-SP .
Para o professor Fabiano Mielniczuk, do Departamento de Ciência Política da UFRGS, o impacto da pandemia nas relações internacionais será o fortalecimento das instituições de regulação entre os indivíduos. Em nível interno, a tendência é de que haja crítica à visão estritamente liberal individualizante das relações sociais e que o Estado se fortaleça como agente de coordenação das ações individuais e entre seus entes: municípios, Estados, regiões. Internacionalmente, o protagonismo da Organização Mundial da Saúde (OMS) na administração da crise reforça, segundo ele, a relevância dos organismos multilaterais e pode ganhar ímpeto um processo de rediscussão das suas normas de governança.
Há quem fale em revalorização do espírito coletivo, mas, se olharmos para a história das relações internacionais, há visões de mundo divergentes. Os realistas, inspirados em Thomas Hobbes (“O homem é o lobo do próprio homem”), defendem que os Estados são egoístas e agem para maximizar ganhos.
Os segundos, na tradição idealista-liberal, acreditam que a cooperação é o melhor caminho. O surgimento de organismos multilaterais, como a ONU, e supranacionais, como a UE, são frutos de um pensamento que acreditava na cooperação para superar – e evitar – novas guerras. Em tempos de coronavírus, no entanto, não faltaram demonstrações de egoísmo, com o fechamento de fronteiras, atropelando, inclusive, pela primeira vez, o princípio de livre-circulação da UE. A interrupção dos acessos reforça o argumento da extrema-direita europeia.
Outro debate será entre democracia e autoritarismo, à medida que a experiência chinesa, com o brutal confinamento de 60 milhões de pessoas na província de Hubei – com resultados satisfatórios de contenção do vírus – poderia levar a uma preferência pelo autoritarismo, em relação às democracias ocidentais. Itália, por exemplo, computa mais mortes do que a China.
– Essa pandemia deixa claro que, embora os Estados tenham soberania limitada aos seus territórios, os problemas que enfrentam muitas vezes têm origens globais. Problemas dessa natureza exigem mecanismos de coordenação interestaduais e, por isso, fortalecem organizações de regulação que estão acima dos Estados. Todavia, isso não significa que os Estados iniciarão negociações para uma espécie de “Estado mundial”. Essa solução não é realista a curto e médio prazos – avalia o professor Fabiano Mielniczuk, do Departamento de Ciência Política da UFRGS.