Presença confirmada no Fronteiras do Pensamento Porto Alegre 2020 (que teve o início transferido para o segundo semestre) o britânico Paul Collier usou sua própria trajetória para mostrar as fraturas que a desigualdade provoca. Hoje professor de Economia e Política Pública na Escola de Governo Oxford Blavatnik, relata como entrou no colégio com uma prima da mesma idade, ambos de famílias trabalhadoras, porém, enquanto ele seguiu até as universidades de Oxford e Harvard, a prima engravidou na adolescência.
A história ajudou a transformar seu livro O Futuro do Capitalismo – Enfrentando Novas Ansiedades em best-seller. Collier sustenta que o capitalismo não precisa ser derrotado, mas administrado, abandonando o modelo centrado apenas em maximizar o lucro e substituindo o que chama de “sociedade rottweiller”, que leva a agressão, humilhação e medo, por negócios éticos. Nesta entrevista concedida por telefone em um dia em que os mercados financeiros despencavam como consequência do avanço do coronavírus, disse que o populismo é fruto da ira da população, mas adverte que “as soluções do povo para a ira não vão funcionar”.
Com bolsas despencando sem freio e sem coordenação entre os governos, o senhor vê futuro para o capitalismo global?
Bem, deve haver. É o único sistema, em 10 mil anos de civilização humana, capaz de produzir prosperidade em massa. Isso não quer dizer que funciona no piloto automático. São necessárias políticas públicas ativas para colocá-lo de volta nos trilhos toda vez que descarrilha. Vivemos em ambiente de incerteza radical. A modernidade é tão complexa que não a compreendemos, e então precisamos aprender por meio de experiências, de tentativa e erro. Como não entendemos o mundo que nos cerca, às vezes somos atingidos pelo imprevisível. Devemos desenvolver resiliência, é algo que não fizemos. Tivemos confiança excessiva, e o campo da economia tem culpa nisso: economistas acham que conhecem o modelo, é disso que trata o conceito de “expectativas racionais”. Só que isso é falso, aprendemos na crise financeira de 2008 que os modelos eram muito imprecisos. Estamos sendo complacentes quanto aos perigos de uma doença muito contagiosa se alastrando. Temos sorte de que seja muito contagiosa mas não muito fatal; já tivemos o ebola, que era muito fatal, mas menos contagioso. Foi, de certo modo, um aviso. Nos últimos 1,5 mil anos, vimos algo contagioso e fatal se alastrar duas vezes, com a peste bubônica a praga. Agora que o mundo está conectado, o contágio é mais sério, precisamos fazer mais para nos proteger.
Não parece um filme de futuro distópico? Porque há contaminação, pânico nos mercados, crise econômica.
O governo britânico lidou bem com isso, pois conseguiu tranquilizar as pessoas ao dizer “faremos o que for preciso para estabilizar a economia” (no dia 11, quando a OMS considerou a covid-19 pandemia global, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, usou pela primeira vez a expressão, em inglês, “whatever it takes”; sete dias depois, anunciou ajuda governamental equivalente a R$ 2 trilhões, quase um terço do PIB do Brasil). Essa expressão, “o que for preciso”, é ótima, pois o que comunica é que “não sabemos, de fato, as consequências do que está acontecendo”, mas admite a incerteza radical e responde: “Vamos experimentar até termos a certeza de que atingimos o objetivo”. Bem, ele não sabe o que fazer, mas tentará, experimentará medidas de modo que a economia se estabilize. Não ouvimos isso de outros políticos em outros países. Acho que a reação do primeiro-ministro britânico foi, ao menos dessa vez, absolutamente correta.
Coisas imprevisíveis acontecem. Devemos priorizar a resiliência em vez da maximização. Precisamos sacrificar ganhos do sistema, quando funciona, para proteção quando não funciona, o que deixamos de fazer na crise de 2008 e também agora, com o coronavírus.
O subtítulo de seu livro O Futuro do Capitalismo menciona “novas ansiedades” e foi escrito antes da crise do coronavírus. Vamos chegar ao ápice da ansiedade?
O livro foi estranhamente profético. Uma das grandes mensagens é adotar um senso de pragmatismo e mudar do modo “conhecemos o modelo, vamos apenas adaptá-lo” para um mundo no qual dizemos “não sei como as coisas funcionam”. E construirmos um processo de aprendizado experimentando e agregando tantas informações quanto forem possíveis, tanto no topo como na bases da sociedade, aprendendo de improviso e construindo sistemas que repliquem esse aprendizado de forma rápida. O coronavírus tende a exigir estratégias diferentes em locais diferentes, vendo qual funciona melhor. Não é bom fazer a mesma coisa em todo lugar. Isso torna o aprendizado vagaroso. Então nós tentamos isso, eles tentam aquilo, vemos qual funciona melhor e espalhamos isso rapidamente. Só que Donald Trump disse: “Não se preocupem, sou eu quem manda aqui, sou em quem toma as decisões, sei o que estou fazendo”. O perigo é que ele não tem um sistema que fornece as informações de que precisa, e é por isso que o coronavírus fugiu do controle, porque as pessoas ficaram amedrontadas demais para observar o que estava acontecendo.
O senhor fala em aprendizado baseado em experiências prévias. A mais próxima é a crise de 2008. O senhor vê conexão com o momento atual?
O que têm em comum é que ambas as crises não foram preditas. As pessoas não sabiam como reagir. E não havíamos construído sistemas que fossem resilientes a esses choques, porque estávamos confiantes de que sabíamos como as coisas funcionavam. Essa é a consistência que precisamos entender: vivemos em um mundo que não compreendemos de modo eficiente. Portanto, coisas imprevisíveis acontecem. Devemos priorizar a resiliência em vez da maximização. Precisamos sacrificar alguns ganhos do sistema, quando funciona, para proteção quando não funciona, o que aparentemente deixamos de fazer na crise de 2008 e também agora, com o coronavírus. Sabemos como é a distância resiliente, e deve haver mais módulos do que há no momento. Com módulos menos conectados, cada parte do sistema consegue sobreviver ilesa. Construímos um sistema globalizado muito interdependente. Outra lição é que não construímos um sistema de aprendizado por meio de experiências descentralizadas. Se quer aprender rápido, deve tentar coisas diferentes ao mesmo tempo. E líderes “chefões”, como Trump, acham que sabem o que fazer: repetir a mesma coisa em todo lugar, o que reduz o ritmo de aprendizado. Mas precisamos nos habituar a admitir que não sabemos o que fazer e a experimentar. E essas doenças, como o coronavírus, são propícias para experiências descentralizadas.
Uma de suas críticas é sobre as distâncias crescentes entre ricos e pobres, conectados e analfabetos, metrópoles e províncias isoladas. Quais as consequências disso?
Há duas brechas. Uma é de local, entre a metrópole bem-sucedida e a economia provincial. O Reino Unido está no extremo dessa diferença, pelos dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A produtividade do trabalho em Londres é cerca de 70% maior do que no resto do país, o que é absurdo. Na América Latina – não sei o bastante sobre o Brasil –, penso que o Chile está no extremo: tudo acontece em Santiago; daí, não surpreende que o país explodiu em protestos. E a outra grande divisão é educativa: pessoas com boa educação têm especializações que as valorizam, e as sem uma boa educação adquirem capacidades manuais, que são cada vez menos valiosas. Novamente vê-se uma forma extrema no Reino Unido: se você tem habilidade cognitiva, é o melhor lugar para estar, pois temos universidades excelentes, três das 10 mais bem cotadas no mundo – o resto da União Europeia, 27 países, não têm nem uma das 10 melhores. Porém, é extremamente ruim para a outra metade da sociedade. Embora eu não saiba tanto sobre o Brasil, me parece uma sociedade muito desigual, com aos menos duas desigualdades distintas mas ligadas: os mais educados nas províncias mudam-se para as metrópoles.
Sim, esse movimento é intenso no Brasil.
Essas mudanças são desestabilizadoras, pois quem fica nas províncias se sente desestimulado, como se estivesse perdendo as pessoas das quais mais precisa para que a localidade se recupere. E as pessoas têm pertencimento, é prejudicial quando as localidades ficam presas a um ciclo de aflição quando os jovens inteligentes saem. Não precisa ser assim. E é possível que não seja, a Suíça prova mostrando que os menos dotados cognitivamente são produtivos com bom treinamento vocacional. A Alemanha também. Lá, todas as regiões têm cidades muito produtivas. Na Alemanha, nem tudo acontece em Berlim: há Hamburgo, Frankfurt, Stuttgart, Munique. É possível evitar essas duas brechas, mas, quando existem, é difícil revertê-las, pois é preciso mudar as expectativas das pessoas quanto a onde estará a produtividade em 10 ou 20 anos. Se todos acham que a cidade mais bem-sucedida do futuro será Singapura, as empresas irão para lá, e isso acabará se confirmando. Se todos acharem que Recife estará fadada ao fracasso, as empresas não se instalarão lá e a cidade vai fracassar. Portanto, o que se busca fazer é redefinir essas expectativas, e isso exige uma política pública ativa e descentralização. Se não, Recife não pode ser salva de Brasília e o norte da Inglaterra não pode ser salvo da Torre Branca de Londres. O poder precisa ser mudado, de forma que os locais consigam moldar seu futuro usando recursos nacionais.
O senhor recomenda dois tipos de reformas, ética e técnica. A crise atual pode levar a essas mudanças? a de 2008 parece não ter sido suficiente.
Me sinto encorajado. No Reino Unido, por exemplo, o atual governo é bem diferente dos anteriores, pois foi conquistado com votos de pessoas nas províncias, menos educadas, portanto, sabe que precisa fazer algo por elas. Aconselho vários governos ao redor do mundo, e o que percebo é que estão em pânico. Reconhecem que estão frente a crises existenciais. Essa consciência é saudável. Há o risco de ficar com idiotas populistas que fazem coisas imbecis ou com governos que dizem “bem, não sei o que fazer, mas farei o que for preciso para solucionar esse problema”. E eles mesmos criarão sistemas nos quais aprenderão o que fazer. Não vai acontecer em todo lugar, mas não precisa, bastam dois ou três países que visivelmente gerem melhorias. A grande vantagem humana é que somos muito bons em emular, é esse o segredo de nosso sucesso em relação a outros animais. Uma girafa bem-sucedida não imita outra bem-sucedida, mas seres humanos, sim. É assim no sudeste asiático: quatro países avançaram, e o resto os imitou. Precisamos disso agora: deixar de maximizar o lucro para curar as fraturas da sociedade e elevar sua resiliência.
Sem confiança, o sistema não funciona bem. A confiança, o grande valor de empresas e profissionais, é minada pela concepção antiética de que só o lucro importa. Por sorte, estamos vencendo. Essa é uma luta vencível.
Por que o senhor propõe reforma ética? Para brasileiros, é fácil entender, mas isso quer dizer que o problema não ocorre só aqui?
Só no Reino Unido, vimos comportamentos revoltantes no mundo corporativo e entre profissionais de contabilidade e Direito, sustentáculos da economia de mercado, que agiram de modo vergonhoso. Temos essa afirmação ridícula de que o único propósito da empresa é criar lucro, que foi sustentado por Milton Friedman em 1970 e ensinado em escolas de negócios. Por 30 anos, a obrigação dos gestores era maximizar o lucro para os acionistas. E, em agosto de 2019, um grupo que reúne 200 das maiores empresas do mundo (The Business Roundtable, formado por gigantes como Amazon, General Motors e o banco JP Morgan) passou a considerar que sua missão não era apenas com o acionista, mas com todos os seus públicos, como consumidores, funcionários, fornecedores e comunidade. E agora há um grande desafio ético envolvendo empresas, contadores e advogados, que perderam a confiança. Basta ver os escândalos envolvendo contadores, que deram declarações falsas quanto à situação financeira das empresas, e advogados, que criaram truques vergonhosos de evasão fiscal. Tanto os profissionais como a comunidade de negócios têm a tarefa de restabelecer sua confiabilidade. É aí que a ética importa. Sem confiança, o sistema não funciona bem. A confiança, o grande valor de empresas e profissionais, é minada pela concepção antiética de que só o lucro importa. Por sorte, estamos vencendo. Essa é uma luta vencível.
É por isso que o senhor propôs a criação do crime de bankslaughter (baseado na palavra manslaughter, que significa “homicídio culposo, sem dolo”)?
Sim. Temos o oposto agora no Reino Unido. O processo público de um dos grandes bancos, Barclays, acaba de fracassar. Nenhum banqueiro britânico foi processado com êxito. Uma série de processos fracassou, pois os bancos pagaram milhões por advogados persuasivos, que venceram os casos. O resultado é que o Barclays não pôde ser responsabilizado pelas ações do diretor-executivo, e que ninguém mais no banco pôde ser responsabilizado pelas ações dele. Porém, em um caso anterior, o executivo não pôde ser responsabilizado pelas ações do Barclays. Isso parece Catch-22, um romance sobre o Exército norte-americano na II Guerra Mundial… Você só sairia do Exército se fosse louco, mas, se quer sair do Exército, não é louco. Portanto, é impossível sair. É a mesma coisa: o banco não pode ser responsabilizado pelas ações do diretor-executivo, mas o diretor-executivo não pode ser responsabilizado pelas ações do banco. É isso o que o bankslaughter retificaria. Se um banco faliu, as pessoas que o dirigem cometeram esse crime, independentemente de ser ou não intencional.
O senhor mencionou um livro, permita-me citar dois filmes recentes. O britânico Você Não Estava Aqui e o sul-coreano Parasita abordam desigualdades sobre as quais o senhor escreve. Acredita que filmes e livros ajudam a entender a situação?
Sim, vi Você Não Estava Aqui e Parasita está no topo da minha lista de coisas para ver. Basicamente, pensamos em termos de narrativas e histórias. É assim que entendemos – ou não – nosso mundo. Então, histórias poderosas conseguem exercer bastante influência. É muito bem ter histórias poderosas que ilustram os problemas sobre os quais tecnicamente escrevi. Pelos critérios de um economista, meu próprio livro é bastante impetuoso, porque é bastante pessoal. Tive um pé em cada um desses mundos muito divididos, isso me deixou furioso com essa situação (o aprofundamento da desigualdade), pois sei que poderia ter sido evitada. Estou satisfeito, é um best-seller, ganhou um prêmio nacional de literatura na Alemanha, Bill Gates o recomenda como um dos livros que devemos ler. Está realmente influenciando, acho que porque capturou a virada da maré intelectual, que é a rejeição desse capitalismo de mercado fundamentalista, e a virada da maré ética, a obsessão com o individualismo. Agora a maré vai começar a fluir em direção a uma filosofia mais comunitária, uma ética comunitária. Portanto, tanto a maré intelectual como a ética estão, acho, fluindo em uma direção melhor. Estamos sofrendo de uma maré alta de economia e ética ruins.
O que o senhor sabe a respeito do Brasil, especialmente do governo atual, que é bastante polêmico?
Vocês passaram por uma crise do capitalismo, com um colapso levando a comportamentos extremamente corruptos, e isso criou uma repulsa popular um tanto análoga ao Brexit no Reino Unido, aos Coletes Amarelos na França e à eleição de Trump nos EUA. Hillary Clinton não percebeu que os provincianos menos educados estavam furiosos, e chamá-los de “deploráveis” foi um erro assombroso para uma política de esquerda. Então, acho que o Brasil teve esse mesmo movimento em direção ao que se pode chamar de reação populista. O perigo de tais reações é que são motins contra um passado ruim, e não vêm, por si só, com uma solução para avançar. A ira é sempre justificada, mas não é uma boa base para soluções práticas. É necessária uma estratégia que responda à ira. De certo modo, é o que busquei fornecer. A ira é justificada; as soluções do povo para a ira não vão funcionar. Seria impertinente da minha parte dizer se o Brasil está nessa fase ou não, mas vocês têm pessoas muito inteligentes aí para isso. Não precisam que forasteiros lhes digam o que fazer. A mensagem pragmática é que nenhum de nós sabe quais são as soluções corretas, mas podemos experimentar para tentar descobri-las.