A crise coronavírus que começou na China, disseminou-se pelo resto da Ásia, chegando à Europa e ao continente americano revela que, problemas como pandemias não obedecem às fronteiras nacionais - e devem ser tratados como questões globais.
Essa é uma das questões defendidas pelo professor Fabiano MielniczuK, do Departamento de Ciência Política da UFRGS. Em entrevista à coluna, o pesquisador, especialista em Rússia e um dedicado aos temas globais pós-Guerra Fria, comenta os impactos da pandemia nas relações internacionais.
Qual será o impacto da pandemia nas relações internacionais?
O impacto será o fortalecimento de qualquer instituição de regulação nas relações entre os indivíduos. Em nível interno, a tendência é de que haja uma crítica à visão estritamente liberal individualizante das relações sociais e que o Estado se fortaleça como agente de coordenação das ações individuais e/ou entre seus entes (municípios, Estados, regiões). Internacionalmente, o protagonismo da Organização Mundial da Saúde (OMS) na administração da crise reforça a relevância dos organismos multilaterais, e pode ganhar ímpeto um processo de rediscussão das suas normas de governança. Nesse contexto, a criação de um plano de recuperação econômica em escala mundial conferiria mais importância aos usuais mecanismos de concertação multilateral existentes, como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial (Bird), bem agrupamentos como o G-20 e os Brics (integrado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
É provável em nova ordem, com a China assumindo o papel de potência ainda maior, comparável aos Estados Unidos pós-Segunda Guerra Mundial?
O nível de liderança exercido pela China dependerá necessariamente do desempenho dos EUA em administrar a pandemia em seu território. Se houver uma catástrofe nos Estados Unidos pela ineptidão das autoridades federais, a China se fortalece. Mesmo assim, o país deve manter sua tradição de fortalecer os organismos multilaterais para mitigar os efeitos econômicos da pandemia.
O vírus é invisível, já se espalhou pelo mundo, e transfere a responsabilidade sobre sua erradicação para a relação entre as autoridades constituídas nos Estados e sua própria população, sem bode expiatório.
Fala-se que o mundo valorizará mais o coletivo, porém, sabemos que, nas relações internacionais, boa parte das nações se pauta por uma visão egoísta (realista). Isso vai continuar? Ou haverá mais espaço para a valorização da colaboração?
Essa pandemia deixa claro algo que, embora os Estados tenham soberania limitada aos seus territórios, os problemas que eles enfrentam muitas vezes têm origens globais, e precisam ser tratados globalmente. Problemas dessa natureza exigem mecanismos de coordenação interestatais e, por isso, fortalecem organizações de regulação que estão acima dos Estados. Todavia, isso não significa que os Estados buscarão, a partir de agora, superar sua natureza territorialmente delimitada e suas ações egoístas (em busca do interesse próprio) e iniciar negociações para uma espécie de "Estado Mundial". Essa solução não é realista a curto e médio prazos. A situação é mais complexa. Dada a natureza da pandemia, é difícil que o discurso nacionalista se fortaleça da mesma maneira como na Europa assolada pela crise dos refugiados. Governos populistas de direita combateram os refugiados fechando fronteiras e reiterando seu poder territorialmente delimitado frente à "ameaça" externa que eles representavam. Imagens de multidões aglomeradas nas fronteiras da Europa serviam como anteparo ao aumento de poder desse discurso nacionalista-egoísta, que justificava a morte de milhares de pessoas como necessária para preservar a segurança e a vida de seus nacionais. O coronavírus não serve a esse propósito. O vírus é invisível, já se espalhou pelo mundo, e transfere a responsabilidade sobre sua erradicação para a relação entre as autoridades constituídas nos Estados e sua própria população, sem bode expiatório. Se as autoridades falharem, quem morre são seus próprios nacionais. Embora líderes populistas dos EUA e do Brasil tentem associar o vírus a uma ameaça externa vinda da China, esse discurso não é eficiente. Bater nessa tecla e descuidar da proteção aos seus nacionais em seu próprio território trará consequências catastróficas para a população e, após a pandemia, a ruína para esse tipo de liderança.
Após a Primeira Guerra Mundial, houve crescimento de nacionalismos e xenofobia, que contribuíram para a ascensão do nazismo e a Segunda Guerra. Grupos de radicais se comprazem com o fechamento de fronteiras, dizendo que estavam certos, para conter o vírus. Como você avalia essa questão?
O nacionalismo precisa de um inimigo externo para se legitimar. Um vírus circula internamente, e coloca em questão a relação entre as autoridades constituídas e sua própria população. Paradoxalmente, governos nacionalistas precisam de crescimento econômico para se manter no poder e, no contexto atual, a necessidade de distanciamento social impõe perdas econômicas para salvar a vida da população. Por isso, o tom errático e negacionista de lideranças como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que desconsideram as recomendações de especialistas em saúde tentam acelerar o retorno à normalidade econômica. Mas não se deve esquecer que, no final das contas, a omissão dessas autoridades ou a inépcia em lidar com esse desafio será a medida para a avaliação dessas lideranças após o término da pandemia.