Na tarde de 9 de agosto, moradores de um prédio na área central de Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, ouviram gritos desesperados no terceiro andar. Depararam com Anna Pilar Cabrera, sete anos, caída no corredor. Kauana do Nascimento, 31, alegava que a filha despencara da escada.
Meiga e esperta, Anna Pilar havia sido morta com nove golpes de uma faca de cozinha, encontrada sobre a cama do apartamento onde a criança vivera. A mãe foi presa, suspeita do crime.
No mesmo dia, mais cedo, o corpo da menina Kerollyn Souza Ferreira, nove anos, havia sido localizado num contêiner de lixo, na periferia de Guaíba, na Região Metropolitana. A mãe, Carla Carolina Abreu de Souza, 30, chegou a ser presa temporariamente por suspeita de maus-tratos e responde pelo homicídio.
No início de outubro, Manoela Pereira, seis anos, morreu na casa da família, em Igrejinha. Na semana seguinte, o mesmo aconteceu com a irmã gêmea dela, Antônia. A suspeita é de que tenham sido envenenadas. A mãe, Gisele Beatriz Dias, 42, foi presa – a polícia aguarda os laudos da perícia para concluir o caso.
Zero Hora mapeou nos últimos cinco meses ao menos sete casos de crianças vítimas de violências graves no Estado. Seis foram assassinadas, sendo dois bebês, um menino de quatro anos foi ferido a golpes de faca pelo tio, mas sobreviveu, e um garoto de três anos, com Síndrome de Apert (condição rara que causa deformidades), foi abandonado pelo pai num ônibus em Três Coroas — a mãe dele havia sido morta dentro de casa, na Capital.
— Além da profunda tristeza que nos abate ao ver esses homicídios, são crianças que deveriam estar protegidas, mas são vítimas de violência e acabam indo a óbito. Isso gera preocupação. Existe um sistema pensado e organizado que não está sendo efetivo — alerta a Promotora de Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, Cinara Vianna Dutra.
Investimentos na rede de proteção, de forma geral, são apontados como fundamentais para minimizar os riscos de as crianças sofrerem violências, que podem culminar com o homicídio. Em paralelo a isso, a sociedade precisa se engajar e entender que todos têm papel de proteção.
— Há uma deficiência nos cuidados de saúde mental. O Conselho Tutelar, por exemplo, é de extrema importância. São eleitos. E poucas são as pessoas que votam. Há necessidade de a população se engajar e votar, saber quem são as pessoas que estão se candidatando. Que haja qualificação e fiscalização do serviço. Eles estão na linha de frente — diz a promotora.
Secretário de Segurança Pública do Estado, Sandro Caron vê com preocupação esses casos. Na ótica do secretário, é necessário colocar em prática uma política semelhante à adotada para combater os feminicídios, que são os assassinatos de mulheres em contexto de gênero, com ações preventivas e em rede.
— Tem que haver interlocução muito grande das áreas de saúde, de assistência social, dos Conselhos Tutelares, com a segurança pública, Ministério Público e Judiciário, para que a gente consiga detectar as situações prévias de abuso, de agressão, e agir antes que isso termine na morte dessas crianças — afirma Caron.
— A gente teve alguns casos em outubro que chocaram muito exatamente porque saíram daquela normalidade do homicídio, que é de disputa entre traficantes. Aí a gente vê um outro lado da sociedade, que é muito desafiador e difícil de prevenir. Exige não só atuação das polícias, mas várias outras áreas. É preciso melhorar a comunicação e troca de informações entre todas as redes — acrescenta.
Adoecimento da população
Médico psiquiatra, membro do departamento de psiquiatria forense da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Andrei Valerio aponta que esses casos ocorrem em meio a um adoecimento da população e que os autores de crimes desse tipo, em geral, dão sinais anteriores.
— Salvo raríssimas exceções, já têm um histórico: maus-tratos, violência doméstica, evasão escolar, abuso de drogas, negligência de tratamento psiquiátrico, não assistência à busca da saúde mental. Até que ponto o poder público está atuante de forma efetiva? — indaga.
O psiquiatra forense – que analisa o estado mental de envolvidos em crimes – divide os autores em dois grupos. Num deles, estão os que sofrem de psicoses (esquizofrênicos, bipolares, psicóticos e com depressões graves, por exemplo). São pessoas que, normalmente, dão sinais ao longo da vida, com comportamentos que despertam atenção. Intervenções em saúde mental e da comunidade visando melhor qualidade de vida mudam esses desfechos.
— É uma questão de saúde pública e segurança pública. Ter esquizofrenia, bipolaridade, não torna a pessoa incapaz de decidir, dirigir, ter filhos. Agora, com uma pequena parcela, que não busca atendimento, e é negligenciada pela sociedade e Estado, pode acontecer esse tipo de atos — explica.
No outro grupo, estão os transtornos de personalidade, que são casos de pessoas que planejam e cometem crimes motivadas, por exemplo, por vingança, ciúmes ou porque não aceitam os filhos como são. São intolerantes às frustrações. Entre esses, estão os antissociais e psicopatas, incapazes de estabelecer, em graus variados, empatia.
— Transtornos de personalidade a gente vê caráter extremamente impulsivo ou e de premeditação: "Vou esperar meu filho sair para pegá-lo na esquina, vou pegar a arma do fulano, vou dar aquele sorvete que ele gosta com remédio". Ambos decorrem de uma falta de empatia com o outro. "Não interessa que o meu ato pode pesar para o outro, se é dor, sofrimento ou morte. Eu e meus interesses em primeiro lugar" — detalha Valerio.
A psiquiatria forense é capaz de apontar, após série de análises, se o autor tinha condições de entender seus atos no momento do crime. Isso define se o agressor será considerado inimputável, como nos casos em que há presença de psicose (delírios e alucinações), intoxicações por drogas e algum outro transtorno mental orgânico. Em outros, entende-se, que, mesmo que haja uma perturbação da saúde mental, a pessoa era capaz de decidir e determinar-se, podendo ser penalizada.
Independentemente do grupo, alguns comportamentos podem ser percebidos, como mentiras desde jovem, baixa tolerância à frustração, uso de drogas, falta de empatia com familiares, falta de compromisso com trabalho, alterações de humor e desrespeito às regras. Um sinal que desperta bastante preocupação, ainda mais se ocorre na infância, é a violência contra os mais vulneráveis, incluindo animais e outras crianças. Dentro desse cenário, o médico ressalta que é essencial a busca por tratamento.
O que causa adoecimento mental?
Alguns fatores são apontados pelos especialistas como má alimentação, falta de rotina, esgotamento, não conseguir se desconectar de aparelhos eletrônicos ou filtrar informações que consome e falta de diálogo. Acontecimentos que geram estresse, medo e incertezas, como o isolamento social, experimentado durante a pandemia do coronavírus, e mesmo eventos traumáticos, como as enchentes ocorridas no Estado, também podem afetar a saúde mental das pessoas.
— Dependendo de como cada um atravessou esse período longo de distanciamento social, perdas de amigos, de entes queridos, e crises financeiras, os abalos psicológicos foram significativos. Todos nós, em certa medida, adoecemos um pouco. Cabe ressaltar que, o isolamento contribui significativamente para aumentar os índices de violência doméstica e conflitos familiares — afirma o psicanalista Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr, da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e doutor em Psicologia pela UFRGS.
Audiência
A série de crimes violentos ocorrida no Estado – não só envolvendo crianças – levou o deputado estadual Dr. Thiago Duarte, a pedir uma audiência na Comissão de Saúde da Assembleia, com autoridades médicas e da segurança pública. O intuito é falar sobre o que precisa ser melhorado como rede. O evento está previsto para 4 de dezembro, às 10h.
As violências prévias
Um dos aspectos que chama atenção é que em muitos crimes há histórico de violência prévia contra a criança, ainda que possa haver exceções. À frente do 2º Juizado da 6ª Vara Criminal, a juíza Fernanda de Melo Abicht atende casos de crianças e adolescentes vítimas de violências sexuais, maus-tratos, lesões, entre outros. Na maior parte, segundo a magistrada, o autor é alguém próximo da vítima.
Quem comete o crime é a pessoa que deveria proteger a criança. Existe um histórico. A criança vem sofrendo violência desde a mais tenra idade, e, infelizmente, acabam acontecendo esses fatos. São crimes terríveis.
FERNANDA DE MELO ABICHT
juíza do 2º Juizado da 6ª Vara Criminal
Em muitos casos, a criança vítima tem dificuldade de processar os sentimentos gerados pela violência, quando cometida por pessoas como os próprios pais. Não raro, ela demora anos a se perceber vítima.
Nesse cenário, o papel da rede, que envolve a escola, o sistema de saúde, vizinhos e a sociedade como um todo, é essencial para proteger essa criança. No âmbito da proteção, avanços como a Lei Henry Borel também são apontados como importantes.
— Essa lei tem medidas protetivas, com similitude à Lei Maria da Penha. Quando há notícia de violência, a gente pode afastar do agressor do lar, impedir aproximação, impedir contato, impedir frequentação de determinados lugares. São medidas efetivas, que por vezes impedem crimes mais graves, como os homicídios — explica a magistrada.
Quem matou Duda?
Eduarda Herrera de Mello, a Duda, uma garota de nove anos, desapareceu de casa, no bairro Rubem Berta, na zona norte de Porto Alegre, em outubro de 2018. Há seis anos, a mãe, Kendra Camboim Herrera aguarda por alguma explicação sobre quem tirou a vida da filha. O corpo da criança foi encontrado no dia seguinte no Rio Gravataí, em Alvorada.
Duda brincava de patins com o irmão e uma vizinha, ambos então com seis anos, em frente de casa, na Rua Inácio Kohler. A mãe entrou na casa por alguns minutos para orientar um eletricista, que havia sido acionado em razão de falhas na energia da residência. Minutos depois, Kendra retornou para a rua e não avistou mais a filha.
A perícia realizada no corpo da criança apontou que Duda morreu por afogamento. A dinâmica do assassinato nunca foi esclarecida, assim como o autor. A investigação sobre a morte de Duda foi remetida ao Judiciário em maio de 2022, sem indiciamento pela Polícia Civil. Ninguém foi apontado como autor do crime. Em fevereiro do ano passado, o inquérito foi arquivado na 2ª Vara do Júri de Porto Alegre.
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Como denunciar
- 190 – Brigada Militar
- 181 – Disque Denúncia
- 0800 642 6400 – Deca da Polícia Civil
- 0800 642 0121 – Departamento de Homicídios
- Disque 100 – Disque Direitos Humanos
Em Porto Alegre
- Ministério Público – (51)99599-8869 (WhatsApp)
- Juizado da Infância e Juventude – (51) 3210-7373
Os casos
Novo Hamburgo
Em 26 de outubro, um homem de 36 anos atacou a mãe e o sobrinho de quatro anos a facadas, no bairro Santo Afonso. De acordo com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), um policial penal do Grupo de Ações Especiais que mora na vizinhança ouviu gritos pedindo socorro e interferiu para salvar a mulher e o menino.
Ao entrar na casa, o agente encontrou a criança com um ferimento no pescoço e o agressor atacando a mãe com a faca. Ele atirou contra o homem, que foi hospitalizado, mas morreu. A mulher e a criança foram socorridas e sobreviveram. O agressor, segundo a polícia, tinha diagnóstico de esquizofrenia.
Porto Alegre
A Polícia Civil aguarda os laudos periciais para concluir a investigação sobre a morte da mãe do menino de três anos que foi abandonado pelo pai em um ônibus que faz a linha Porto Alegre-Gramado. A mulher de 29 anos foi encontrada morta dentro de casa. Em 22 de outubro, o menino havia sido abandonado pelo pai, que desembarcou em Três Coroas.
O homem foi preso pela Polícia Civil pelo abandono da criança, chegou a receber liberdade, mas foi preso novamente após o corpo da mulher ser localizado. A apuração preliminar aponta que a vítima foi morta por asfixia.
Igrejinha
Em 7 de outubro, Manoela Pereira, seis anos, passou mal e morreu em casa. Na semana seguinte, no dia 15, a irmã gêmea, Antônia, morreu da mesma forma. A mãe foi presa por suspeita de envenenamento. Encaminhada à Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, a Justiça decidiu transferi-la à internação psiquiátrica.
A mulher tinha problemas psiquiátricos, ideações suicidas e chegou a ficar 40 dias internada. Em 2022, perdeu um filho morto a tiros. Uma das suspeitas é que a mãe tenha envenenado os gatos das filhas antes de aplicar o veneno nas crianças. À polícia, Gisele negou que "tenha feito algo contra as filhas". O caso segue sob investigação e aguarda laudos.
Porto Alegre
Em 14 de outubro, Joseane de Oliveira Jardim, 42, foi presa após o corpo de Paula Janaína Ferreira Melo, 25, ser encontrado sob a cama dela. Segundo a polícia, a grávida foi atraída até a casa, com a promessa de receber uma doação, atingida por um golpe na cabeça, e depois teve o bebê retirado do ventre. O menino não sobreviveu.
O crime aconteceu na casa da suspeita, no bairro Mario Quintana, na Zona Norte. A mulher segue presa, na Penitenciária Feminina de Guaíba. A suspeita é de que ela tenha cometido o crime porque queria engravidar e não conseguia. Ela teria simulado uma gravidez. A mulher fazia uso de antidepressivos. Na delegacia, a suspeita decidiu permanecer em silêncio.
Guaíba
Em 9 de agosto, Kerollyn Souza Ferreira, nove anos, foi encontrada morta num contêiner de lixo perto de casa, no bairro Cohab Santa Rita. A investigação não conseguiu precisar a causa da morte, mas apontou fatores como ingestão de sedativo, frio e asfixia. Ela teria entrado sozinha no contêiner.
A mãe da menina, Carla Carolina Abreu de Souza, 30, foi indiciada pela polícia por maus-tratos com resultado morte e violência psicológica. Vizinhos relataram que a criança era agredida e passava fome.
O pai da menina, Matheus Lacerda Ferreira, foi indiciado por abandono material e violência psicológica. O MP denunciou a mãe por homicídio, em contexto de omissão. O pai foi denunciado por abandono material, por deixar de prover auxílio à subsistência da filha. A mãe chegou a ser presa temporariamente, mas recebeu direito de permanecer usando tornozeleira. Carla nega que tenha matado a filha. Em depoimento à polícia confirmou que deu sedativo para a criança, e que Kerollyn desapareceu durante a noite.
Novo Hamburgo
Em 9 de agosto, Anna Pilar Cabrera, sete anos, foi morta a facadas no apartamento onde vivia com a mãe. Kauana do Nascimento, 31, foi presa – ela chegou a ser hospitalizada porque também estava ferida. Atualmente, Kauana está presa na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, aguardando a conclusão da análise do incidente de insanidade mental instaurado no processo.
Kauana foi denunciada pelo Ministério Público. Ela foi acusada de ter praticado homicídio com intuito de atingir o ex-marido, por acreditar que ele tinha um novo relacionamento. Quando o crime aconteceu, em agosto, vizinhos relataram que Kauana estaria em surto e que aparentava ser uma boa mãe. À polícia, Kauana preferiu ficar em silêncio.
Canoas
Em 24 de junho, uma bebê recém-nascida foi morta em casa e teve o corpo deixado no banheiro de um prédio comercial. A mãe dela, que trabalhava no mesmo prédio, foi presa. A morte foi causada por asfixia. Quando a bebê foi encontrada, havia uma fita adesiva ao redor da boca e nariz da criança.
A mulher já era mãe de outros filhos, mas, segundo a polícia, vinha tentando esconder a gravidez e não queria ficar com a criança. O Ministério Público denunciou por homicídio doloso. A mulher segue presa na Penitenciária Feminina de Guaíba. Ela não quis falar formalmente à polícia sobre o caso.
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