Zero Hora mapeou nos últimos cinco meses ao menos sete casos de crianças vítimas de violências graves no Rio Grande do Sul. Seis delas foram assassinadas, sendo dois bebês.
Dos sete crimes (leia mais abaixo), quatro têm as mães das crianças como suspeitas — um tipo de caso que costuma causar ainda mais consternação.
— Há uma fantasia que nos constitui de que o amor de mãe é incondicional. De certo modo, nosso narcisismo precisa acreditar que somos amados por nossas mães acima de qualquer coisa — afirma o psicanalista Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr, da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e doutor em Psicologia pela UFRGS.
Depois de gerar por nove meses, amamentar, cuidar, como poderia alguém exercer tamanha barbárie? Infelizmente, apesar de ser relativamente raro, é possível sim. Isso choca mais porque dificilmente encontraremos algo mais inaceitável no laço social, pois fere um princípio básico da ordem civilizatória.
NORTON CEZAR DAL FOLLO DA ROSA JR
psicanalista
A opinião é reforçada pelo médico psiquiatra Andrei Valerio, membro do departamento de psiquiatria forense da Associação de Psiquiatria do RS, que cita o que chama de "imaginário da mãe perfeita".
— Existe uma ideia de que a mulher não mata, que a mãe não mata. Geralmente, quando ocorrem, são transtornos de personalidade e têm toda uma premeditação. As mães se vingam das crianças. Como a gente sabe de mulheres que se vingam de maridos e de outras mulheres. Choca quando a gente tem aquele imaginário da mãe perfeita, da família perfeita — complementa Valerio.
A motivação
O que motiva um pai ou uma mãe a matar um filho é um tema complexo que, segundo especialistas, pode envolver questões inconscientes desencadeadas por um estado de loucura episódica, assim como estar associado a quadros psicopatológicos severos, tais como: psicoses, psicopatias, depressões, entre outros.
Nesse último, há cenários que vão desde os delírios de perseguição, onde o filho pode ser visto como ameaça a ser destruída, até ideais de purificação. Depressão pós-parto, uso abusivo de substâncias psicoativas e histórico de violência do agressor também devem ser considerados.
— Além desses fatores, eu diria que quando os pais foram vítimas de maus-tratos e abusos psicológicos graves, não elaborados, podem projetar nos filhos o desejo de destruição de si mesmo, deparando-se com uma espécie de confusão especular onde se tentaria destruir no outro aquilo que habita em si. Isso de forma alguma seria algo determinante. A discussão é muito ampla. Outro fator a ser considerado é quando o superego dos pais é de extrema rigidez, eles podem supor que o filho não mereça viver fora do seu código de conduta — diz o psicanalista Dal Follo da Rosa Jr.
Dos sete crimes citados, três foram investigados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Segundo o diretor, delegado Mario Souza, nos três casos as investigadas optaram por ficar em silêncio, após serem presas, sem detalhar o que motivou a ação.
Geralmente, são pessoas que não possuem antecedentes por crimes violentos, têm comportamento aparentemente comum, em certos casos até de aparente proteção à criança.
MARIO SOUZA
diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa
— É um perfil diferente, que torna a situação mais complexa. É difícil chegar na motivação de maneira formal. Se o assassino não fala e não fez registro disso, em telefone, computador, fica muito restrito ao emocional. Talvez a proximidade e o dever de proteção facilitem a ação. De quem deveria proteger. A criança não vai demonstrar resistência — afirma o delegado.
Em dezembro de 2022, outro caso brutal foi investigado pelo DHPP em Alvorada. David da Silva Lemos foi preso após matar os quatro filhos, três deles a facadas, no município da Região Metropolitana. Segundo a acusação, o autor não se conformava com o fato de a ex-companheira, mãe das crianças, não reatar o relacionamento amoroso. Ele irá a júri.
Crimes brutais
Num dos casos, em Porto Alegre, Joseane de Oliveira Jardim, 42, foi presa após o corpo de Paula Janaína Ferreira Melo, 25, ser encontrado sob a cama dela. Segundo a polícia, a mulher matou a grávida, cortou seu ventre e arrancou o bebê de dentro da barriga – o menino não sobreviveu. A mulher não falou sobre o crime, mas a polícia concluiu que ela pretendia ficar com a criança, pois chegou até mesmo a simular o parto.
— É importante que essas pessoas sejam o mais brevemente possível retiradas do convívio, e a prisão em flagrante auxilia nisso. Há um risco, por óbvio, de que a pessoa possa voltar a cometer algo parecido. A função da Polícia Civil foi desempenhada. As prisões aconteceram. Mas não tem como não ficar impactado com uma série de crimes contra criança numa sociedade — diz Souza.
Em 2006, o criminalista Daniel Tonetto atuou no júri de um caso semelhante, ocorrido em Santa Maria, na Região Central. Uma técnica em enfermagem matou uma dona de casa para ficar com a bebê dela. A vítima teve o corpo esquartejado e distribuído em malas.
No ano passado, o advogado atuou como assistente de acusação em outro caso de repercussão, o da morte de Rafael Mateus Winques, 11 anos. O menino assassinado pela mãe, em Planalto, no noroeste do Estado. Alexandra Dougokenski foi condenada pelo crime e está presa.
— Existem pessoas de uma maldade tão extrema, e tão diferente do senso comum, que é difícil pensar por ela, saber o que motiva. Isso é uma coisa que choca muito, a maldade de uma mãe ou um pai mate um filho. É um crime que ninguém aceita — analisa o criminalista.
Como denunciar
- 190 – Brigada Militar
- 181 – Disque Denúncia
- 0800 642 6400 – Deca da Polícia Civil
- 0800 642 0121 – Departamento de Homicídios
- Disque 100 – Disque Direitos Humanos
Em Porto Alegre
- Ministério Público – (51)99599-8869 (WhatsApp)
- Juizado da Infância e Juventude – (51) 3210-7373
Os casos
Novo Hamburgo
Em 26 de outubro, um homem de 36 anos atacou a mãe e o sobrinho de quatro anos a facadas, no bairro Santo Afonso. De acordo com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), um policial penal do Grupo de Ações Especiais que mora na vizinhança ouviu gritos pedindo socorro e interferiu para salvar a mulher e o menino.
Ao entrar na casa, o agente encontrou a criança com um ferimento no pescoço e o agressor atacando a mãe com a faca. Ele atirou contra o homem, que foi hospitalizado, mas morreu. A mulher e a criança foram socorridas e sobreviveram. O agressor, segundo a polícia, tinha diagnóstico de esquizofrenia.
Porto Alegre
A Polícia Civil aguarda os laudos periciais para concluir a investigação sobre a morte da mãe do menino de três anos que foi abandonado pelo pai em um ônibus que faz a linha Porto Alegre-Gramado. A mulher de 29 anos foi encontrada morta dentro de casa. Em 22 de outubro, o menino havia sido abandonado pelo pai, que desembarcou em Três Coroas.
O homem foi preso pela Polícia Civil pelo abandono da criança, chegou a receber liberdade, mas foi preso novamente após o corpo da mulher ser localizado. A apuração preliminar aponta que a vítima foi morta por asfixia.
Igrejinha
Em 7 de outubro, Manoela Pereira, seis anos, passou mal e morreu em casa. Na semana seguinte, no dia 15, a irmã gêmea, Antônia, morreu da mesma forma. A mãe foi presa por suspeita de envenenamento. Encaminhada à Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, a Justiça decidiu transferi-la à internação psiquiátrica.
A mulher tinha problemas psiquiátricos, ideações suicidas e chegou a ficar 40 dias internada. Em 2022, perdeu um filho morto a tiros. Uma das suspeitas é que a mãe tenha envenenado os gatos das filhas antes de aplicar o veneno nas crianças. À polícia, Gisele negou que "tenha feito algo contra as filhas". O caso segue sob investigação e aguarda laudos.
Porto Alegre
Em 14 de outubro, Joseane de Oliveira Jardim, 42, foi presa após o corpo de Paula Janaína Ferreira Melo, 25, ser encontrado sob a cama dela. Segundo a polícia, a grávida foi atraída até a casa, com a promessa de receber uma doação, atingida por um golpe na cabeça, e depois teve o bebê retirado do ventre. O menino não sobreviveu.
O crime aconteceu na casa da suspeita, no bairro Mario Quintana, na Zona Norte. A mulher segue presa, na Penitenciária Feminina de Guaíba. A suspeita é de que ela tenha cometido o crime porque queria engravidar e não conseguia. Ela teria simulado uma gravidez. A mulher fazia uso de antidepressivos. Na delegacia, a suspeita decidiu permanecer em silêncio.
Guaíba
Em 9 de agosto, Kerollyn Souza Ferreira, nove anos, foi encontrada morta num contêiner de lixo perto de casa, no bairro Cohab Santa Rita. A investigação não conseguiu precisar a causa da morte, mas apontou fatores como ingestão de sedativo, frio e asfixia. Ela teria entrado sozinha no contêiner.
A mãe da menina, Carla Carolina Abreu de Souza, 30, foi indiciada pela polícia por maus-tratos com resultado morte e violência psicológica. Vizinhos relataram que a criança era agredida e passava fome.
O pai da menina, Matheus Lacerda Ferreira, foi indiciado por abandono material e violência psicológica. O MP denunciou a mãe por homicídio, em contexto de omissão. O pai foi denunciado por abandono material, por deixar de prover auxílio à subsistência da filha. A mãe chegou a ser presa temporariamente, mas recebeu direito de permanecer usando tornozeleira. Carla nega que tenha matado a filha. Em depoimento à polícia confirmou que deu sedativo para a criança, e que Kerollyn desapareceu durante a noite.
Novo Hamburgo
Em 9 de agosto, Anna Pilar Cabrera, sete anos, foi morta a facadas no apartamento onde vivia com a mãe. Kauana do Nascimento, 31, foi presa – ela chegou a ser hospitalizada porque também estava ferida. Atualmente, Kauana está presa na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, aguardando a conclusão da análise do incidente de insanidade mental instaurado no processo.
Kauana foi denunciada pelo Ministério Público. Ela foi acusada de ter praticado homicídio com intuito de atingir o ex-marido, por acreditar que ele tinha um novo relacionamento. Quando o crime aconteceu, em agosto, vizinhos relataram que Kauana estaria em surto e que aparentava ser uma boa mãe. À polícia, Kauana preferiu ficar em silêncio.
Canoas
Em 24 de junho, uma bebê recém-nascida foi morta em casa e teve o corpo deixado no banheiro de um prédio comercial. A mãe dela, que trabalhava no mesmo prédio, foi presa. A morte foi causada por asfixia. Quando a bebê foi encontrada, havia uma fita adesiva ao redor da boca e nariz da criança.
A mulher já era mãe de outros filhos, mas, segundo a polícia, vinha tentando esconder a gravidez e não queria ficar com a criança. O Ministério Público denunciou por homicídio doloso. A mulher segue presa na Penitenciária Feminina de Guaíba. Ela não quis falar formalmente à polícia sobre o caso.
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