Meio-dia era o horário no qual Kerollyn Souza Ferreira, nove anos, costumava cruzar pela porta da moradia de uma das amiguinhas no bairro Cohab Santa Rita, em Guaíba. As meninas estudavam na mesma escola e brincavam juntas pelas ruas da comunidade. Dentro de casa, dividiam a mesa. A mãe da garota servia a filha e também Kerollyn, que fazia elogios à comida da vizinha.
A criança foi encontrada morta na última sexta-feira, dentro de um contêiner de lixo, a poucos metros de casa. A mãe dela, Carla Carolina Abreu Souza, 29 anos, foi presa e é investigada por suspeita de homicídio. Uma série de relatos de negligência e maus-tratos foi recebida pela polícia após a morte da menina.
Kerollyn não hesitava em distribuir abraços e beijos. O comportamento da criança, que demonstrava carência, despertava a atenção da mãe da coleguinha.
Ela vinha ao meio-dia porque queria comida. Olhava para a comida e dizia: “Coisa boa, eu gosto disso”. Ela só ganhava salgadinhos, bolachinhas da mãe. Deixava de lado e comia a comida. Como a gente vai negar um prato de comida para uma criança?
VIZINHA DE KEROLLYN
Não era só comida que Kerollyn buscava junto aos vizinhos. A menina era vaidosa e gostava de se enfeitar. Enquanto penteava os cabelos da criança, outra moradora percebeu que ela sofria com uma infestação de piolhos. As vizinhas avisaram a mãe por telefone e se uniram para tratar. Numa dessas vezes, uma das moradoras percebeu que havia um corte na cabeça dela.
— Ela apanhou com uma fritadeira. Ela disse no hospital que caiu de bicicleta. Mas não foi, porque ela sempre apanhava — diz a vizinha.
Na escola onde estudava, Kerollyn chegou a relatar a uma professora que havia sido golpeada na cabeça pela mãe com um ferro.
Os vizinhos acionaram o Conselho Tutelar repetidas vezes — a informação foi confirmada por duas conselheiras. No entanto, segundo o conselho, as informações que chegavam era de que a menina perambulava sozinha pela rua e estaria pedindo comida, mas ela nunca teria sido encontrada fora de casa ou da escola, e haveria alimentos na residência.
— Comida nas panelas não tinha. Podia ter comida nos armários. Todo mundo aqui tem porque ganhamos ranchos por conta da enchente. Comida nas panelas não tinha — diz a vizinha, que alimentava Kerollyn.
Um dos pontos que chamava a atenção dos vizinhos era que a mãe costumava berrar com a criança e dizia que não sabia mais o que fazer com a menina. Era comum os moradores terem de mandar Kerollyn ir para casa. A garota dava a volta na escola para prolongar o trajeto.
— Ela não tinha medo de ninguém, só de ir pra casa — diz a dona de casa.
A última vez em que os vizinhos a viram, Kerollyn perambulou de porta em porta, pedindo uma vela ou uma lanterna porque havia perdido algo. Ela não chegou a dizer o que era. Depois disso, foi flagrada por uma câmera vagando no escuro. Ao amanhecer do dia seguinte, teve o corpo encontrado dentro do contêiner de lixo.
Neste dia, a mãe da coleguinha foi uma das que seguiu até a Delegacia de Polícia. Ao retornar para casa, encontrou a filha adormecida. Do lado dela, havia duas cartinhas com desenhos. Na ilustração, Kerollyn e a amiguinha estão de mãos dadas, com um patinete e uma bicicleta ao lado. Era assim que as duas costumavam brincar juntas.
Afetuosa, cuidava de cães na rua
Kerollyn adorava animais e costumava servir água para os cachorros que vivem pelas ruas da comunidade. Dizia aos vizinhos que quando crescesse queria ser veterinária “cuidadora de cães”.
— Não podia ver um (cachorro) na rua que fazia carinho. Não tinha medo. Era muito afetuosa. Não tem um dia que a gente não fale dela — recorda a vizinha.
No bairro, na periferia de Guaíba, os moradores estavam acostumados a ver Kerollyn circulando pelas ruas em sua bicicleta. A praça de grama era um dos locais onde ela costumava brincar. Há algum tempo, um cavalo pastava ali e a menina decidiu que iria montá-lo. O porteiro da Escola Noely Klein Varella, Marcelo Souza da Silva, 50 anos, alertou para que ela não se arriscasse, em razão do perigo.
— Ela tanto insistiu que conseguiu montar — recorda.
As visitas da menina no portão da escola, onde estudava um dos irmãos, eram frequentes — a garota era aluna de outra instituição. Kerollyn passava pelo portão e disparava correndo para dentro. Era ela quem levava o menino até o colégio. Carinhosa, gostava de encontrar as professoras, conversar e trocar abraços.
Na quinta-feira (8) pela manhã, esteve mais uma vez ali e recebeu de presente um par de brincos de uma professora. Era na escola também que a menina buscava doações, após a enchente. Dias antes, Silva tinha presentado Kerollyn com duas sacolas de roupas, enviadas pela esposa dele.
— Ela ficou muito feliz porque as roupas serviram nela. No dia dos brincos, ficou toda contente. A gente sentiu muito ao saber que era ela. A vida é difícil — diz o porteiro.
Na escola do irmão, a direção diz que ela nunca reclamou de maus-tratos da mãe.
A investigação
A Polícia Civil apura como se deu a morte de Kerollyn. Não havia sinais de violência aparentes no corpo da criança. Uma das suspeitas é de que ela possa ter morrido em razão da ingestão de um sedativo, sem prescrição médica. A mãe admitiu ter administrado na criança meio comprimido de clonazepam. A polícia ainda aguarda o laudo toxicológico e outras perícias.
Como denunciar
Casos de violação dos direitos de criança e adolescente devem ser reportados ao Conselho Tutelar, ao Disque 100, à Polícia Civil, a Brigada Militar ou outros órgãos que integram a rede de proteção. A Lei Henry Borel, de julho do 2022, atribui o dever de denunciar esse tipo de violência a qualquer pessoa que tenha conhecimento dela ou a presencie.
Contraponto
A Defensoria Pública do Estado informou que representou a mãe durante a audiência de custódia. Cabe à investigada definir se seguirá sendo representada pela instituição. Caso siga na defesa, a Defensoria Pública só se manifestará nos autos do processo.
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