— Vai para casa, Kerollyn.
A frase era repetida todos os dias pelos moradores do bairro Cohab Santa Rita, na periferia de Guaíba, na Região Metropolitana. Apenas 32 passos separavam o portão de ferro da moradia de dois andares de paredes descascadas, onde Kerollyn Souza Ferreira, nove anos, vivia com a mãe e os irmãos, da pracinha de grama no meio da comunidade. A menina dava a volta ao redor da escola e prolongava o caminho de retorno até a residência. Circulava de bicicleta para cima e para baixo. Pedia comida na casa dos outros, e distribuía abraços entre aqueles que lhe davam afeto.
Kerollyn foi vista pela última vez pelos vizinhos na quinta-feira, dia 8, quando bateu de porta em porta. Estava aflita, pedindo uma vela ou uma lanterna. Já era noite e ela havia perdido algum objeto — a criança não chegou a relatar do que se tratava. A câmera da Escola Municipal Noely Klein Varella, em frente à praça, flagrou a garota andando no breu, com o que parecia ser uma vela. Na manhã seguinte, o corpo dela foi encontrado ali, na mesma praça, coberto de sacos de lixo, descalça, dentro de um contêiner. A mãe, Carla Carolina Abreu Souza, 29 anos, foi presa de forma temporária no último fim de semana, e passou a ser investigada por homicídio.
Zero Hora buscou compreender a trajetória da menina, que ansiava por cuidados, mas se preocupava em dar água aos cães de rua e sonhava ser veterinária. Ao longo dos últimos anos, episódios envolvendo Kerollyn e sua mãe passaram por, pelo menos, 10 instituições: o Conselho Tutelar, três escolas públicas da rede municipal e estadual, um centro de atendimento psicossocial, a assistência social, o Ministério Público, um hospital, a Polícia Civil e um centro de proteção às crianças vítimas de violência.
Na comunidade onde vivia, os relatos de que passava fome, perambulava sozinha pela rua à noite, era agredida pela mãe e se abrigava por vezes dentro de um carro abandonado eram frequentes. Ainda assim, a vida da menina se encerrou de forma trágica.
Carla admitiu à Polícia Civil ter administrado meio comprimido de 2mg do sedativo clonazepam na criança na noite de quinta-feira. Depois disso, segundo o relato da mãe, todos foram dormir e, na manhã seguinte, ao despertar ela percebeu que a filha não estava em casa. A mulher disse que tomou mais um medicamento e voltou a dormir, sendo acordada pelos policiais. O corpo de Kerollyn já havia sido encontrado dentro do contêiner.
O laudo toxicológico é que deve ajudar a apontar o que causou a morte da menina, já que não havia sinais aparentes de violência, segundo a polícia. Uma das suspeitas é de que ela possa ter morrido em razão da ingestão de remédios. É preciso esclarecer, caso isso se confirme, como o corpo dela foi parar no contêiner.
Negligências em cascata
O Conselho Tutelar de Guaíba não detalha quantas vezes foi chamado por vizinhos para atender episódios envolvendo a garota, mas garante que nunca deixou de conferir os casos notificados e que foram diversas denúncias. Ainda assim, nenhum dos episódios foi repassado ao Ministério Público. Isso porque, no entendimento das conselheiras, nenhum fato que despertasse a atenção foi constatado.
O único expediente aberto é do início do ano passado, no qual houve recomendação para que a menina fosse matriculada em instituição de ensino e mantivesse a frequência escolar. Depois disso, segundo o MP, nenhum outro caso foi notificado. O Conselho admite que não comunicou a Promotoria e alega que em nenhuma das vezes houve narrativas de maus-tratos por parte da mãe. Os relatos, por vezes, envolviam os outros irmãos mais novos de Kerollyn, que, segundo vizinhos, também eram encontrados perambulando pela rua.
— As denúncias que chegavam para nós eram de que as crianças estariam na rua. No momento que nós chegávamos no bairro, nos dirigimos para ver essas crianças, elas já estavam ou em casa ou na escola — afirma a conselheira Andréa Rodrigues.
Na vizinhança, os relatos são de que o Conselho foi acionado inúmeras vezes, e que Kerollyn costumava andar mal agasalhada, com fome e, por vezes, dormia dentro do carro, além de ter sido agredida por mais de uma vez.
— Mais de uma vez, vi ela ali dentro. Ela saía e dizia “vou para casa, tomar banho e ir para o colégio”. Pra mim, ela se escondia da mãe — relata uma vizinha.
— Essas denúncias da comunidade, que a criança dormia no carro, o Conselho não sabia. Isso é importante dizer — rebate a coordenadora, Andréa Garcia.
No bairro Cohab Santa Rita, moradores relatam que Carla chegava a usar o nome do Conselho para assustar a filha, dizendo que eles iriam levá-la.
— O Conselho foi chamado muitas vezes. Todo mundo chamava — recorda outra vizinha.
Em média, em Guaíba, 20 casos são registrados por dia no Conselho Tutelar. Desde a repercussão do caso, segundo as conselheiras, não têm sido possível sair nas ruas com o uniforme. A morte de Kerollyn causou revolta na comunidade.
— É muito difícil, ser chamada de assassina, dizer que temos sangue nas mãos. A gente está aqui por amor a causa. Nosso trabalho está prejudicado, e temos outras crianças para atender — desabafa Rodrigues.
— No geral, a rede falhou. É um grande erro da rede. Não adianta a gente dizer que não teve erro. Tanto é que teve a morte dessa menina — complementa a coordenadora Andréa Garcia.
Ministério Público
A promotora de Justiça Karinna Orlandi, de Guaíba, solicitou ao Conselho Tutelar do município um relatório completo sobre o caso. Segundo o Ministério Público, no ano de 2023 documentos foram encaminhados à instituição pelo Centro Integrado Amanhecer, dando conta, na época de situações relacionadas à menina Kerollyn e quais os encaminhamentos realizados para a rede de proteção. Foi quando houve a orientação para que ela fosse matriculada na escola. O centro é um espaço disponibilizado para atendimento e acompanhamento às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência em Guaíba, inaugurado em janeiro do ano passado.
— A partir daí, não localizamos nenhum outro relatório ou qualquer outra informação que tivesse sido reportada ao Ministério Público acerca de violações de direitos da Kerollyn — afirma a promotora.
Após a descoberta da morte da menina, foi solicitado pelo MP ao Conselho Tutelar de Guaíba que seja entregue um relatório completo da atuação do órgão no caso, além de uma cópia integral do expediente do processo administrativo que acompanhou o núcleo familiar de Kerollyn junto à rede de proteção. Segundo o Juizado da Infância e Juventude de Guaíba, não havia expediente em tramitação relacionado à Kerollyn, a menina nunca foi encaminhada para abrigamento no município como medida protetiva e nem havia conhecimento sobre supostos maus-tratos realizados pela mãe da criança.
Evasão de hospital
Outras esferas da rede também foram acionadas durante esse período. Desde julho, Kerollyn deu entrada quatro vezes no Hospital Regional Nelson Cornetet. As duas primeiras consultas foram por relato de queda de bicicleta. Vizinhos alegam que em uma delas, a criança havia sido agredida pela mãe com uma escumadeira (utensílio de cozinha) na cabeça.
— Ela disse lá que caiu de bicicleta. Mas não foi. Ela sempre apanhava — relata a moradora.
O terceiro atendimento se deu porque a menina apresentava dores e o último dele aconteceu uma semana antes de Kerollyn morrer. Às 13h12min do dia 2 de agosto, ela deu entrada no hospital, com o relato de que teria agredido os irmãos e ameaçado se jogar da escada. Antes de chegar lá, a mãe tinha telefonado ao Conselho Tutelar, alegando que a filha estava “em surto”. A conselheira que atendeu a ligação disse que não podia ir até a casa nessas condições, e indicou buscar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Carla relatou que não conseguiu ser atendida, e então seguiu por conta até o hospital.
Na casa de saúde, a mãe contou que a menina chegou a fugir de casa e foi encontrada por vizinhos. A menina foi atendida pelo pediatra e cadastrada para aguardar leito psiquiátrico. Segundo a equipe médica, ela chegou ao local agitada, mas após ser medicada ficou tranquila. No dia seguinte, 3 de agosto, a mãe alegou que a criança estava sonolenta e teria se negado a permanecer no hospital com a filha. Carla teria dito que levaria a menina para atendimento em Porto Alegre. Depois disso, deixou a casa de saúde com a criança, antes de ela receber alta.
O caso de evasão só teria sido comunicado à enfermeira responsável na segunda-feira, dia 5. A profissional relatou que entrou em contato pessoalmente com o Conselho Tutelar para comunicar a evasão da menina e a possibilidade de uma busca ativa, para que a transferência pudesse ser realizada. A informação, segundo o Conselho, foi repassada de maneira informal, durante uma reunião para abordar outro tema.
Às 12h25min, a conselheira informou ao hospital que a mãe se recusou a transferir Kerollyn, alegando que “a filha não é louca para internar no São Pedro” e a vaga do hospital acabou cancelada. O hospital relatou que fez contato com o Centro de Apoio Psicossocial Infância (CAPS) e Juventude, pelo qual foi informado que a menina não comparecia ao acompanhamento desde o ano passado. O CAPS alegou ter agendado data para o retorno do tratamento, mas a mãe não teria comparecido. Nenhuma dessas informações foi comunicada ao Ministério Público.
— Em situações em que uma criança e adolescente precisa ser acompanhado na rede, é fundamental que, diante de uma intercorrência dessa assistência, verificamos que essa ajuda não está acontecendo como deveria ou haja nova violação dos direitos da criança e do adolescente, esses integrantes reportem ao Ministério Público, para que possamos adotar as medidas cabíveis — diz a promotora de Justiça Karinna Orlandi.
Como denunciar
Casos de violação dos direitos de criança e adolescente devem ser reportados ao Conselho Tutelar, ao Disque 100, à Polícia Civil, a Brigada Militar ou outros órgãos que integram a rede de proteção. A Lei Henry Borel, de julho do 2022, atribui o dever de denunciar esse tipo de violência a qualquer pessoa que tenha conhecimento dela ou a presencie.
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