Na tarde da quinta-feira (8), na turma do 3º ano, na scola Municipal Santa Rita de Cassia (Anexo), os alunos realizavam uma atividade referente ao Dia dos Pais, que seria comemorado no domingo, dia 11. Kerollyn Souza Ferreira, nove anos, começou a chorar e disse que estava assim porque não tinha pai, pois havia sido abandonada. A situação fez a menina ser levada à sala da orientação para se acalmar.
Lá, a criança relatou que a família estava passando por dificuldades, sem dinheiro para alimentação, narrou que sua mãe dizia que ela estava “surtada” e que lhe batia quando estava assim. No lado direito do rosto da menina, havia dois arranhões, um próximo ao ouvido e outro na bochecha. Na manhã seguinte, Kerollyn foi achada morta dentro de um contêiner de lixo a poucos passos da casa onde vivia. A mãe, Carla Carolina Abreu Souza, 29 anos, foi presa no último fim de semana por suspeita de homicídio.
Esta não foi a primeira vez que Kerollyn relatou na escola onde estudava as violências que sofria e nem que episódios envolvendo a criança despertavam a atenção. A professora da menina também foi ouvida e relatou que Kerollyn passou a frequentar a escola com “um bom atraso”, com “aparente atraso cognitivo”, mas que era “afetuosa e carente”, além de “bem ansiosa”.
Ainda de acordo com a educadora, Kerollyn ia para aula sempre muito mal agasalhada e reclamava de fome. Duas ou três semanas antes de ser encontrada morta, a menina chegou à escola com um ferimento na cabeça. Ao ser questionada sobre o motivo, deu diferentes versões. Uma delas era de que a mãe havia acertado sua cabeça com um ferro.
Na quinta-feira, um dia antes da morte de Kerollyn, a professora também viu os arranhões no rosto da menina e indagou do que se tratava. A criança respondeu que tinha sido a mãe, e reclamou que estava com a cabeça cheia de piolhos, alegando que as vizinhas é que estavam lhe ajudando a tirar. A educadora confirmou que a menina costumava andar sozinha para lá e para cá de bicicleta e que moradores tinham informado que ela andava à noite na rua, com a irmã menor.
A professora confirmou ainda que percebia que a menina tinha uma relação conflituosa com a mãe, em razão de algumas coisas que ela dizia. A criança contava, por exemplo, que a mãe havia brigado com ela porque ela comeu uma coisa que era do irmão e que a mãe havia lhe mandado sumir da sua frente. No relato, a educadora confirmou que a menina se desestabilizou durante a atividade do Dia dos Pais, e que disse que “o pai tinha lhe abandonado quando ela tinha sete meses”. Em razão disso, ela foi levada à orientação da escola.
O pai de Kerollyn, Matheus Ferreira, que reside em Santa Catarina, disse em entrevista à RBS TV que não sabia que a filha dormia na rua. Ele alega que tentou diversas vezes ficar com a guarda de Kerollyn, e que chegou a procurar diversas vezes o Conselho Tutelar. A filha chegou a morar com ele nos primeiros meses de vida e aos sete anos. Contudo, a criança voltou para a casa da mãe. Em julho de 2022, ele registrou na polícia ocorrência contra a ex, por ameaça, na qual dizia ter procurado o Conselho Tutelar seis vezes e que havia estranhado o comportamento da filha.
Lá, a menina contou sobre as dificuldades que estavam passando em casa, pois sua mãe não tinha dinheiro para sua comida e que só se alimentava de itens industrializados como salgadinhos. Kerollyn contou que, em razão disso, ela costumava ficar “surtada”. A orientadora perguntou quem havia dito que isso era estar surtada. A menina respondeu: “minha mãe”. Sobre os arranhões no rosto ela justificou.
— É porque minha mãe me bate quando eu fico gritando surtada, ela me pega assim do lado e a unha dela é grande — teria dito a criança.
Casos não foram notificados ao Conselho
Na mesma semana, outro episódio envolvendo Kerollyn haviam despertado a atenção da direção. A vice-diretora da escola também foi ouvida e confirmou que desde o último dia 16 de julho, a equipe da direção passou a observar mais de perto o comportamento da menina. Nesta data, a mãe de um aluno esteve na escola para relatar que Kerollyn incomodava, batia e ofendia o filho dela.
A mulher relatou que não adiantava chamar o Conselho Tutelar porque moradores do bairro já haviam acionado e não se resolvia situação. No relato, a mãe do colega informou a escola que a menina ficava até altas horas da noite na rua. A escola alegou que tomaria as medidas cabíveis, e que afastaria o aluno de Kerollyn. Esse fato não chegou a ser comunicado ao Conselho Tutelar.
Outro episódio voltou a ocorrer no início de agosto, envolvendo a criança. Na quarta-feira, dia 7, a orientadora enviou mensagens via WhatsApp para a mãe de Kerollyn, perguntando se seria possível comparecer à escola no dia seguinte no período da tarde.
No dia 8 de agosto, no turno da manhã, uma reunião foi realizada na escola, por outro motivo, com uma psicóloga da Secretaria Municipal de Educação, e uma assistente social do município. Nesta data, as duas teriam sido informadas sobre os episódios. A orientação recebida foi para que o caso fosse comunicado ao Centro Integrado Amanhecer — que acompanha crianças e adolescentes vítimas de violência em Guaíba.
Na última vez em que esteve na sala da orientação, a menina perguntou, ao fim da conversa, se havia algo para piolho. A orientadora explicou que ela deveria ser encaminhada a um posto de saúde. No depoimento à polícia, a orientadora diz que repassou “o teor da conversa somente à psicóloga (da escola) a fim de preservar em um primeiro momento a integridade da criança, pois é essa a orientação que recebeu da Secretaria de Educação”.
Segundo o Conselho Tutelar, o relatório da escola sobre os episódios envolvendo Kerollyn só foram entregues na sexta-feira, dia 9, às 22h12min, quando a criança já havia sido encontrada morta. Zero Hora esteve na escola, tentando conversar com a direção, mas a orientação recebida foi para que procurasse a Secretaria Municipal de Educação. Até o momento, a pasta não se manifestou sobre o episódio. A prefeitura de Guaíba afirma que não pode falar sobre o caso, em razão de orientação da Polícia Civil.
Como denunciar
Casos de violação dos direitos de criança e adolescente devem ser reportados ao Conselho Tutelar, ao Disque 100, à Polícia Civil, a Brigada Militar ou outros órgãos que integram a rede de proteção. A Lei Henry Borel, de julho do 2022, atribui o dever de denunciar esse tipo de violência a qualquer pessoa que tenha conhecimento dela ou a presencie.
Contraponto
A Defensoria Pública do Estado informou que representou a mãe durante a audiência de custódia. Cabe à investigada definir se seguirá sendo representada pela instituição. Caso siga na defesa, a Defensoria Pública só se manifestará nos autos do processo.
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