"Ignorado”. A palavra, escrita grosseiramente em tinta azul, indica as duas gavetas do Cemitério Municipal de Novo Hamburgo onde foram sepultadas as vítimas de um crime brutal e que marcou o Rio Grande do Sul em setembro de 2017. Nas gavetas 710 e 721, estão as duas crianças esquartejadas e localizadas em uma caixa de sabão em uma estrada do bairro Lomba Grande, na área rural da cidade. Sem terem sido identificadas até hoje, viraram números: 115/17 e 116/17.
Os dois corpos foram sepultados em dezembro de 2019, após mais de dois anos armazenados no Departamento Médico-Legal. O máximo que se conseguiu descobrir, por meio de análise do Instituto-Geral de Perícias (IGP), é que as duas vítimas são um menino e uma menina, entre oito e 12 anos, e que possuíam material genético compatível pelo lado materno. Ou seja, podem ser irmãos, primos ou mesmo tia e sobrinho. Não se descobriu nome, familiares, nem mesmo de onde eram.
No cemitério, o coveiro que levou a reportagem até o local lembra de quando as sepultou. Foi com uma ordem judicial, sozinho, que ele fechou as gavetas.
— Não teve missa, não teve cerimônia. Nunca apareceu ninguém para procurar, vocês são os primeiros. Eu fiz tudo em silêncio.
A investigação segue até hoje em aberto na Delegacia de Homicídios de Novo Hamburgo. No início deste mês, a quarta delegada passou a assumir o inquérito. Recém chegada na unidade, Ariadne Langanke ainda não teve tempo de olhar toda a investigação, mas reafirmou o que vem sendo respondido pela polícia nos últimos três anos: “Não há novidades”.
A chefe de polícia do Rio Grande do Sul, delegada Nadine Anflor, garante que o caso "não foi esquecido”, mas a esperança de ser desvendado depende de “um fato novo”.
— Continua sendo algo que acompanhamos e de forma prioritária, porque não se tem certeza do que aconteceu. Mas, infelizmente, de tempos em tempos, temos alguns fatos que não se pode apontar autoria ou dinâmica de como aconteceram. Esse é um deles, infelizmente — ponderou.
O Ministério Público acompanha as investigações, mas também reitera que não houve desdobramentos.
A investigação e o “ritual satânico”
Além da brutalidade do crime, o caso também foi marcado por um episódio considerado vergonhoso dentro da Polícia Civil: não há nenhum réu pelo assassinato, mas um dos delegados que atuaram na apuração, Moacir Fermino, responde na Justiça por fraudar a investigação e afirmar que havia ocorrido um ritual satânico. A história chegou a virar livro, escrito por Marco Mejìa, advogado que defendeu um dos acusados: Operação Revelação: o maior erro histórico de um delegado no Brasil.
O primeiro delegado que atuou no caso foi Rogério Baggio, que admite que o fato marcou para sempre sua carreira. Em 4 de setembro de 2017, quando as vítimas foram localizadas por um catador, era a primeira hora do primeiro dia de expediente do policial à frente da Delegacia de Homicídios. Ainda sob o comando dele, a polícia deu início às investigações, repleta de dificuldades em função da cena do crime e das poucas informações.
Não existiam câmeras de segurança na via, a Estrada Porto das Tranqueiras, e nenhum morador disse ter visto o descarte. O estado dos corpos levava a polícia a suspeitar de que o crime havia acontecido poucos dias ou até horas antes. Não havia marcas de sangue no local, o que permitia concluir que o assassinato não acontecera ali.
As cabeças das crianças nunca foram encontradas. Com elas, seria possível tentar reconstituir a face das vítimas. As digitais e o DNA foram coletados, mas não havia registros compatíveis no Estado.
Na época, a polícia também checou a lista de pessoas desaparecidas, mas não havia casos de duas crianças sumidas. Suspeitou do caso de dois irmãos desaparecidos na Bahia, mas as crianças foram encontradas vivas. Depois disso, chegou a se levantar a hipótese de que os pais das vítimas estariam mortos, mas o material genético permitiu descartar ligação com outros casos de pessoas assassinadas. Verificou-se também, em escolas gaúchas, crianças que estariam ausentes, mas também se obteve retorno. Nenhuma investida deu resultado.
Três meses depois, o delegado Baggio saiu de férias. Foi quando Moacir Fermino, delegado quarta classe (a última na carreira) e experiente na região, assumiu temporariamente a investigação. Em pouco tempo, o veterano anunciou ter resolvido o crime após ter tido “uma revelação divina”, em coletiva de imprensa que contou até com a cúpula da instituição.
O delegado prendeu cinco pessoas e obteve mandado de prisão contra outras duas. Detalhou que as crianças eram argentinas e teriam sido mortas em um ritual satânico solicitado por empresários. Logo depois, a própria polícia desfez a investigação, indiciou Fermino e chegou a pedir a prisão dele.
O chefe de polícia à época, Emerson Wendt, revela que o episódio foi “constrangedor para toda a instituição policial”, mas que o delegado Fermino tinha liberdade funcional para investigar.
Três anos depois, Baggio atua na delegacia de plantão de Novo Hamburgo, por decisão própria. Hoje, pontua o que poderia ter feito diferente:
— As investigações deveriam ter sido mantidas em sigilo durante todo o curso do inquérito. Havia diversas diligências em andamento que poderiam surtir, ou não, efeito e frutos. Mas o fato de a investigação ter mudado seu curso para aquela história fantasiosa foi fatal para aniquilar qualquer vestígio de prova. O culpado teve todas as possibilidades diante disso de se desfazer de provas e sumir do mapa.
O caso ainda passou pelo delegado Marcio Niederaurer, que ficou até agosto deste ano na delegacia. Ele lamenta o fato de o inquérito seguir sem solução, mas recordou que chegou na delegacia muito tempo depois e que, em investigações assim, é necessário “correr contra o relógio”.
O processo contra Fermino
Após a “revelação” e de ter sido indiciado pela Corregedoria da Polícia Civil, Moacir Fermino se aposentou, condição que mantém até hoje. A aposentadoria do delegado pode ser cassada. O Conselho Superior de Polícia ainda analisa a possibilidade, em um procedimento administrativo disciplinar.
Questionada sobre o prazo, já que se passaram quase três anos do fato, Nadine Anflor — que, além de ser chefe de polícia, preside o Conselho — defende que “como regra o procedimento é moroso, está andando, mas desde março foram suspensos os prazos” em função da pandemia.
Já na Justiça, Fermino responde por denunciação caluniosa. O processo está na fase final e concluso para julgamento, faltando apenas a posição do magistrado. Procurado por GZH, o juiz Ricardo Carneiro Duarte informou que “a sentença deve ser proferida em breve, na medida do possível” e que “o processo é físico, por isso tem restrições de manuseio e andamento em razão da pandemia”.
Um dos presos no caso e, depois, inocentado, o mestre de magia Silvio Fernandes vive até hoje acompanhado por seguranças particulares, mesmo em casa. Ele declara que foi vítima de perseguição e preconceito religioso.
— É tudo muito difícil. As sequelas psicológicas não se apagam. Semanalmente, em algum momento, me pego pensando em tudo que aconteceu e já volta a imagem das pessoas que trabalham com a lei e a burlam para conseguir as coisas. Tenho medo de que aconteça de novo. Qualquer criança que some, já tem o pensamento de assassinato por magia negra — desabafou.
Escritor do livro sobre o caso e advogado de Sílvio, Marco Mejìa processou o Estado e o delegado buscando indenização pelos danos, mas ainda não obteve resposta.
Contraponto
GZH ligou para os telefones de Fermino, mas estão desligados. A reportagem também tentou falar com o advogado do delegado, José Claudio de Lima da Silva, mas não conseguiu contato no escritório e no celular. A reportagem ainda enviou mensagem, mas não foi respondida.