Se a história que levou para a cadeia pessoas sem envolvimento com a morte e o esquartejamento de duas crianças, em Novo Hamburgo, foi minuciosamente arquitetada, também o esforço para desconstruí-la foi detalhista e silencioso. Na quarta-feira, a Polícia Civil surpreendeu ao anunciar que a investigação do caso estava baseada em mentiras e voltava à estaca zero.
Por trás da reviravolta, além do mal-estar na cúpula policial, está uma trama de depoimentos combinados entre testemunhas e um rastro de objetos deixados ao alcance da polícia para serem apreendidos e reforçarem a versão falsa para o crime.
1) O início
O começo de tudo: 4 de setembro, quando os restos mortais das crianças foram achados em sacos plásticos e caixas de papelão, no bairro Lomba Grande, em Novo Hamburgo. No centro da cidade, no prédio da Central de Polícia, no mesmo dia, o delegado Rogério Baggio Berbicz, 39 anos, dava início a seu primeiro dia de trabalho como titular da Delegacia de Homicídios de Novo Hamburgo.
A partir dali, foram três meses de intensas diligências para descobrir quem eram as vítimas, o autor da brutalidade e a motivação. Baggio e sua equipe vasculharam registros de secretarias de educação municipais e a do Estado em busca de informações sobre crianças que tivessem deixado de comparecer à escola. Chegaram a ir atrás de alguns casos, mas, felizmente, as crianças estavam vivas e haviam evadido do colégio por outros motivos
Também analisaram registros de desaparecidos. Foram centenas de ocorrências lidas atrás de uma pista do nome das vítimas — identificadas depois pela perícia como irmãos, com idades entre oito e 12 anos. A busca por câmeras de segurança na região onde estavam os corpos foi infrutífera. Sem um suspeito para ter eventuais telefonemas analisados, os policiais pediram a quebra de sigilo de estações de telefonia móvel da região. São três antenas. Apenas da operadora Vivo o resultado foi de 20 mil ligações captadas naquela área. O material ainda está sendo filtrado pelos investigadores.
Em paralelo a essas medidas, os agentes tomavam o depoimento de eventuais suspeitos, que surgiam a partir de denúncias anônimas. Desde o começo, houve informações de que o crime poderia ser resultado de prática religiosa, de algum tipo de ritual.
Foi uma ligação anônima que teria sido feita para a 2ª Delegacia de Novo Hamburgo, comandada pelo delegado Moacir Fermino Bernardo, que deu os primeiros detalhes da versão que, depois, embasaria a conclusão mentirosa para o crime. Uma ocorrência foi registrada em outubro com o teor da denúncia, que teria sido recebida pelo próprio delegado Fermino: que o crime havia sido encomendado por um dos homens, que depois acabou preso, a um "bruxo" de Gravataí para sacrifício das crianças visando prosperidade nos negócios. Policiais da 2ª DP passaram a fazer diligências com base na denúncia, que indicava nome de suspeitos.
2) O interino
Mas nada se confirmou e, apesar da repercussão do caso na imprensa, nenhuma testemunha apareceu até o dia 10 de dezembro, quando o delegado Baggio entrou de férias. A investigação da morte das crianças passou então a ser conduzida pelo delegado Fermino, que ficou como interino na Homicídios. Com base no relato anônimo, a equipe de Fermino seguiu fazendo averiguações e, em 19 de dezembro, pediu à Justiça a prisão de seis pessoas. O Ministério Público entendeu não haver elementos que justificassem a decretação da prisão dos suspeitos apontados pela polícia, mas a Justiça acatou o pedido.
Em 4 de janeiro, surge a primeira testemunha, considerada "chave" na investigação de Fermino. O homem contou ter sido chamado por um dos suspeitos, em agosto, para fazer um trabalho no templo em Gravataí, cujo líder também já estava preso naquele momento. Depois, teria sido contratado para trabalhar em uma obra, próxima de onde foram achados os restos mortais das crianças.
Por fim, a testemunha revelou ter visto detalhes de parte do ritual com as crianças. Alegou ter voltado à obra em uma noite por ter esquecido o casaco e a carteira. Teria então visto os sete investigados (os seis iniciais e mais outro, o que contratara a testemunha para o serviço no templo e na obra) em semicírculo, com velas acesas e duas crianças ao centro.
3) O mal-estar
A partir deste depoimento, o delegado Fermino pediu à Justiça a conversão das prisões temporárias em preventivas e a prisão do sétimo suspeito, detido no dia 5 de janeiro. Com a autoria do crime praticamente esclarecida, Fermino comunicou detalhes a superiores e convocou entrevista coletiva. Já havia, na cúpula da polícia, um desconforto pela contundência religiosa que o delegado estava dando ao caso. A coletiva de 8 de janeiro foi o ápice do mal-estar. Fermino anunciou ter tido revelações divinas e disse que profetas o orientaram sobre quem deveria ouvir no inquérito.
De férias, mas já na cidade, o delegado Baggio acompanhava a coletiva pelo Facebook, ao mesmo tempo em que recebia telefonemas de colegas questionando o tom da entrevista do colega.
— Havia um clima de preocupação. Estranhei porque fugia muito da forma como costumo trabalhar — recorda Baggio.
Na mesma manhã, o chefe da Polícia Civil, delegado Emerson Wendt, convocou reunião para avaliar o inquérito. Ao chefe foi garantido que o trabalho estava bem embasado por uma testemunha e que havia outra que estava prestes a falar à polícia. No dia seguinte, ainda de férias, Baggio foi à delegacia olhar o inquérito. Em 10 de janeiro, estava de volta ao trabalho, depois de 30 dias de férias.
Começou então o que ele chama de "estudo" do inquérito. Não só leitura, mas verificação de vários pontos e também análise aprofundada dos suspeitos e testemunhas. Com o retorno do titular, Fermino e sua equipe seguiram fazendo, principalmente, diligências de rua, e Baggio e seus subordinados, além da análise de apuração, tratavam de outras diligências e burocracias.
4) A surpresa
Nos dia 16 e 17, Baggio comandou novas buscas no templo de um dos suspeitos presos. Foram 55 horas de análises no local, inclusive, com testes periciais para verificar a presença de sangue. Curiosamente, mesmo depois de a equipe de Fermino já ter feito duas buscas no templo, naquele dia 17 foi encontrado um caderno, uma espécie de manual de ritualística e que citava crianças. O documento estava parcialmente queimado, como se alguém tivesse tentado eliminá-lo. Foi apreendido.
Depois, surge uma segunda testemunha (em menos de um mês, duas testemunhas, sendo que nos três primeiros meses de investigação, nenhuma havia aparecido). Era um homem que disse ter visto, em 4 de setembro, suspeitos largando sacos e caixas no local onde foram achados os restos mortais das vítimas. A testemunha descreveu o carro usado pelos suspeitos (exatamente o modelo e cor de veículo que um dos suspeitos teve durante um tempo) e atestou que ao saber das prisões pelo jornal havia reconhecido dois dos suspeitos presos. Baggio surpreendeu-se:
— Como você lembra o que estava fazendo em 4 de setembro, exatamente naquele dia — questionou.
A testemunha disse que era dia do aniversário do filho, que morava em outra cidade e viera passar a data com ele. A polícia confirmou que ele tinha um filho vivendo em outra cidade e nascido naquele dia. Fechou. Mas a testemunha também disse que estava acompanhada por um colega de trabalho, que ambos faziam bicos em obras e que ele costumava dar carona a esse colega todos os dias. Nesse ponto a história que até então vinha se encaixando tão bem começou a emperrar.
A testemunha não sabia identificar o colega, nome completo ou onde morava. Depois de muita insistência, especialmente de Baggio, em 31 de janeiro, a testemunha identificou um homem que estava em Santa Catarina. Parte da equipe que fazia as diligências de rua se preparou para viajar e tomar o depoimento do homem. Quando Baggio chegou à delegacia no dia seguinte, 1º de fevereiro, véspera de feriado, a equipe não tinha viajado, e anunciou:
— A testemunha reconheceu o cara errado.
5) O médico
O homem apontado era médico, o que derrubava a história de que ele fazia bicos em obras com a testemunha. Mas a equipe de policiais já tinha a solução em mãos.
— Ele já reconheceu outro, esse aqui, e vamos atrás — disseram policiais mostrando nova foto
Para Baggio, começava ali a ruir a versão apurada até o momento:
— Achei muito, muito estranho, pois os dois homens reconhecidos pela testemunha eram muito diferentes um do outro. Um de vinte e poucos anos, outro de 40. Como você não reconhece alguém a quem dá carona todos os dias e trabalha junto? Me convenci de que tinha algo errado.
Enquanto uma equipe saía em busca do homem reconhecido, a turma coordenada por Baggio procurou a mulher da testemunha. Duas informações importantes surgiram da conversa: a de que o filho da testemunha, aquele que estava de aniversário no dia 4 de setembro, não havia estado na cidade para passar o dia com o pai, e também que a testemunha não estava trabalhando com bicos em obras em setembro.
6) Proteção policial
A essa altura, a primeira testemunha, a que dizia ter visto parte do ritual, já estava inserida no Programa Estadual de Proteção a Testemunhas (Protege). Era quinta-feira, 1º de fevereiro e a segunda testemunha ingressaria no programa no dia 5. Policiais foram ao local de trabalho desta segunda testemunha e a levaram para depor novamente. No local, o empregador da testemunha chegou a falar com os policiais. Era "um papo estranho", definem investigadores.
Na reinquirição, confrontada com as contradições de informações, a testemunha confessou ter mentido no primeiro depoimento. Disse ter recebido a história pronta, com todas as informações sobre quem deveria reconhecer, que carro deveria dizer que os suspeitos usavam e qual local os havia visto.
Imediatamente, Baggio contatou a coordenação do Protege pedindo para ouvir com urgência a primeira testemunha, que ingressara no sistema de proteção com a esposa. Como as testemunhas costumam ser levadas para outras cidades para garantir sua segurança — um benéfico a quem contribui com a resolução de crimes —, a solução não pode ser imediata. O Protege só disponibilizou a testemunha e a esposa no dia 5.
— Já não dormia, só pensava que provavelmente havia pessoas inocentes presas. Mas precisávamos ter certeza para agir — lembra Baggio.
7) História pronta
Na segunda-feira, 5 de fevereiro, Baggio e sua equipe passaram horas com as testemunhas. A primeira a depor foi a mulher, que forneceu elementos que ajudaram a confrontar a versão do marido. Na sua vez de falar, a testemunha demonstrava muito nervosismo. O delegado ofereceu água. A testemunha virou o copo e a garrafa. Por algum tempo, ainda sustentou a versão mentirosa.
Mas logo confessou: disse ter recebido a história pronta, indicando quem deveria ser reconhecido e o que deveria dizer sobre o ritual que mentiu ter visto, com detalhes até sobre vestimentas que, depois, acabariam se confirmando na primeira versão concluída pela polícia. Por exemplo: a testemunha, no relato mentiroso, descreveu uma capa preta que acabou sendo apreendida e reconhecida por ela. Essa testemunha entrou no Protege com a promessa de receber salário mensal de R$ 3 mil.
Mas antes de a versão começar a ser desmontada já havia aparecido uma terceira testemunha e essa trazia uma informação importante para fechar a história mentirosa.
— Na investigação, tinha a brecha sobre a relação dos seis suspeitos com o bruxo de Gravataí. Não achávamos. Vasculhamos e-mails, redes sociais, nada, nada. Até que a terceira testemunha contou que passava por dificuldades econômicas e que um dos suspeitos, um dos empresários que teria encomendado o pacto de prosperidade com as crianças, havia lhe levado até o templo em Gravataí. Estava feita a ligação que faltava! Todos eram depoimentos mentirosos, mas com muitas informações reais — explica Baggio.
Com a confissão das duas primeiras testemunhas, o delegado se reuniu, dia 6, com a chefia de Polícia para revelar a armação. No mesmo dia, fez ao Judiciário pedido de revogação das prisões dos inocentes (já libertados) e de prisão para o homem apontado como quem passou as versões prontas às testemunhas.
8) "Papo estranho"
Este homem, detido na quarta-feira, dia 7, era o mesmo que se aproximou dos policiais com um "papo estranho" no dia em que uma das testemunhas foi buscada no trabalho, em São Leopoldo. E a terceira testemunha que mentiu, a que fez a ligação dos seis suspeitos com o bruxo, é filho deste homem. Ele teve condução coercitiva decretada pela Justiça e prestou depoimento admitindo a armação. Ele também tinha promessa de morar em um hotel sob o resguardo do Protege.
— Acostumados a trabalhar com informação, tivemos de lidar com contrainformação. Estamos orgulhosos por termos libertado inocentes — desabafa Baggio, que vai completar 10 anos de corporação.
A investigação sobre a morte das crianças segue em aberto, a cargo do delegado de Homicídios. Novo inquérito, que apura denunciação caluniosa, tramita na Corregedoria Geral da Polícia Civil (Cogepol). Nesta apuração, a conduta dos policiais, inclusive do delegado Fermino, que sustentaram a versão mentirosa para o caso está sendo verificada. Também é investigada a motivação para a trama que levou inocentes para a cadeia. A polícia não revela detalhes ainda.
— O inquérito existe para apurar a verdade. Ele pode nascer injusto — como ocorreu neste caso e, felizmente, é uma excepcionalidade. O que não pode é terminar injusto — diz o chefe da Polícia Civil.