Vítimas de uma barbárie, duas crianças encontradas esquartejadas em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, não puderam nem mesmo ser sepultadas. Dois anos depois, a garota de unhas pintadas de rosa e o menino de no máximo nove anos sequer tiveram os nomes descobertos. Nestes 24 meses, ninguém reclamou por eles. Os restos mortais encontrados em setembro de 2017 em uma estrada de chão batido, no bairro Lomba Grande, são mantidos pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP) em Porto Alegre, à espera de que o caso seja desvendado.
— Sem dúvida nenhuma, foi o inquérito que mais trabalhamos na delegacia. Não só pela barbárie, mas pelo fato de serem crianças. Isso mexe com qualquer pessoa e com a investigação. Mas infelizmente, não se tem nada. Nenhuma luz no fim do túnel de quem possa ter cometido esse crime. Nenhuma pista — lamenta o delegado Rogério Baggio, que conduziu as investigações até agosto pela Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de Novo Hamburgo.
Em 4 de setembro de 2017, quando parte dos corpos das crianças foi encontrada por um catador, era o primeiro dia de Baggio na delegacia. Mais precisamente, a primeira hora. Quase dois anos depois, no início de agosto deste ano, o policial deixou a DHPP sem conseguir desvendar o caso que ganhou repercussão pela crueldade e por gerar constrangimento na corporação.
A investigação teve reviravolta em dezembro de 2017, durante as férias de Baggio. À frente do caso, o delegado Moacir Fermino — hoje aposentado e réu por falsidade ideológica e corrupção de testemunhas — afirmou que havia elucidado o crime e que se tratava de um ritual satânico. Cinco pessoas chegaram a ser presas e duas foram consideradas foragidas. A própria Polícia Civil precisou desfazer a investigação. Os presos foram libertados e a apuração voltou à estaca zero.
— Aquelas circunstâncias atrapalharam demasiadamente a investigação. Aquilo tudo que se descobriu que era mentira. De certa forma, tirou o foco. Quem realmente matou as crianças teve todo tempo do mundo para se livrar de uma eventual prova. Pode até ter saído do país — afirma Baggio.
Antes mesmo das reviravoltas na investigação, peculiaridades do caso desafiavam a polícia. O cenário onde os restos mortais foram depositados deixava a apuração mais complexa. Não existiam câmeras de segurança na estrada e nenhum morador relatava ter visto o descarte. As casas mais próximas ficavam a cerca de 700 metros. O estado dos corpos levava a polícia a suspeitar de que o crime havia acontecido poucos dias ou até horas antes. Não havia marcas de sangue no local, o que permitia concluir que o assassinato não aconteceu ali.
As únicas informações sobre as vítimas foram descobertas por perícias. Quando os corpos foram encontrados, a polícia acreditava que se tratava de uma mulher e uma criança. Chegaram a cogitar que fosse mãe e filho. Mas na mesma semana, a análise do IGP apontou que eram duas crianças, entre oito e 12 anos. Outra perícia permitiu descobrir que as vítimas possuíam material genético compatível pelo lado materno. Ou seja, podem ser filhos da mesma mãe, primos ou mesmo tia e sobrinho. É o máximo que se sabe sobre a identidade das crianças.
A descoberta de que os dois eram menores trouxe desafio maior para a investigação. Crianças, em geral, não têm carteira de identidade. As cabeças nunca foram encontradas. Com elas, seria possível tentar reconstituir a face das vítimas. As digitais e o DNA foram coletados, mas não havia registros compatíveis no Estado. Um dos pontos que sempre intrigou a polícia foi o fato de nenhum parente registrar a falta de duas crianças. Situação que levou a investigação a suspeitar de que os pais poderiam ter sido assassinados. O material genético permitiu descartar ligação com outros casos de pessoas achadas mortas.
Buscas por desaparecidos
Uma das principais apostas ao longo da investigação foi a identificação de desaparecidos e a localização de crianças que não estavam frequentando a escola. Um dos últimos casos apurados pela equipe de Novo Hamburgo envolveu o sumiço de dois irmãos na Bahia, com idades semelhantes às das vítimas. As caixas de papelão onde estavam parte dos corpos eram de uma marca de sabão em pó produzida na Paraíba e em Pernambuco. O produto não é vendido no Rio Grande do Sul. O vínculo não se confirmou.
— A equipe chegou a acreditar que realmente podiam ser esses irmãos. Mas, graças a Deus, as crianças estavam vivas e foram achadas. Saí da delegacia, mas os policiais seguem sempre na procura desses casos de desaparecidos — afirma Baggio.
À frente da DHPP de Novo Hamburgo há quase um mês, o delegado Márcio Niederauer afirma que a apuração segue em aberto, mas não teve evoluções recentes:
— Desde que assumi a delegacia, não há nenhuma novidade. Certamente, vamos investigar, se houver.
O Ministério Público (MP) do município acompanha o caso e pediu diligências à Polícia Civil ao longo da investigação para tentar elucidar o caso. Enquanto isso, os restos mortais do menino e da menina são mantidos nas dependências Departamento Médico-Legal (DML), sem ninguém reclamar por eles.
Contraponto
O advogado José Cláudio de Lima da Silva, responsável pela defesa de Moacir Fermino, afirmou que só se manifestará nos autos do processo.