A Corregedoria da Polícia Civil (Cogepol) identificou pelo menos sete falhas na investigação do delegado Moacir Fermino que apurava a morte de duas crianças encontradas esquartejadas em Novo Hamburgo, em setembro do ano passado.
O policial ficou responsável pelo caso nas férias do titular da delegacia de homicídios, Rogério Baggio. Em coletiva em janeiro, Fermino chegou a afirmar que teve "revelações divinas" para a investigação.
Na última sexta-feira (16), o delegado foi indiciado por corrupção de testemunhas e falsidade ideológica. Outro policial foi responsabilizado por falsidade ideológica e um terceiro homem, de nome Paulo - que está preso - por corrupção de testemunhas.
Veja quais são as sete falhas encontradas pela polícia:
1. Relatório inicial
Documento de 7 de novembro aponta o que teria motivado o ritual, quem teria participado e onde os corpos estariam enterrados. Entretanto, segundo delegado Antônio Salvador Lapis, titular da delegacia de Feitos Especiais, ligada à Corregedoria, apresenta uma "série de informações que não condizem com a realidade". Na análise do inquérito, GaúchaZH já tinha identificado que situações eram relatadas sem se apontar como se chegou até elas.
O texto do relatório, assinado por um inspetor de polícia e analisado por Fermino, acabou sendo utilizado praticamente na íntegra na representação à Justiça para as prisões temporárias, observa o delegado Bruno Pitta:
— A gente entende que a representação tem relevância particular, pois reprisa tudo, postulando medidas evasivas e até mesmo a segregação cautelar das pessoas, sem prova alguma, testemunhal ou perícias que corroborassem com isso.
Lapis relata outro problema no documento:
— Dizia "fizemos diversas apurações", mas quais apurações? Isso foi questionado, não se teve uma resposta porque não foram feitas apurações. Então, isso ensejou e levou a erro do poder judiciário na decretação da prisão temporária, que foi cumprida no dia 27 de dezembro.
2. Livro satânico
No relatório, os policiais da Corregedorias encontraram "supostas transcrições" de um livro sobre rituais satânicos. A obra foi encontrada na casa do delegado Fermino durante cumprimento de mandados de busca e apreensão. Páginas do livro apresentavam destaques em marca texto amarelo.
— A equipe de investigação deparou com semelhanças em diversos trechos na narrativa com aquilo que fui inserido no relatório de serviço que veio a instruir a representação (das prisões temporárias), do próprio delegado — explica Bruno Pitta.
3. Cofre do templo
A história construída por Paulo apontava o pagamento de R$ 25 mil para a realização do ritual satânico. Mesmo com a informação, um cofre que estava no templo de Lúcifer, em Gravataí, não foi aberto por policiais subordinados a Fermino, em cumprimento de mandado em 27 de dezembro.
— Há elementos que mostram que foi uma determinação do delegado Fermino ir embora e deixar o cofre para trás. Então, sabe-se do pagamento de R$ 25 mil, se está na casa do investigado, cumprindo busca e apreensão e esse cofre não é aberto? No mínimo, causa estranheza — observa Lapis.
A abertura do cofre só ocorreu no dia 6 de janeiro.
4. Local da morte das crianças
Os investigadores da Corregedoria encontram inconsistência sobre o local da morte das crianças. A primeira testemunha, que depôs em 4 de janeiro, relatou que o crime teria ocorrido na Estrada Porto das Tranqueiras, em Novo Hamburgo. Entretanto, no pedido para as prisões temporárias dos investigados é relatado que as mortes teriam ocorrido em Morungava, em Gravataí.
— É uma divergência gritante, que não foi contestada. Por quê? As investigações continuaram mesmo com divergências gritantes acontecendo e que culminou com a prisão temporária — salienta Lapis.
5. Mensagens para delegado
Os investigadores da Corregedoria tiveram acesso a mensagens trocadas pelo delegado Fermino com dois homens. Um deles é o informante, de nome Paulo. Em 21 de janeiro, ele encaminhou um SMS para Fermino avisando que conseguiu encontrar a testemunha que faltava para ligar os sete investigados:
— Uma missão está cumprida. Vai ter o depoimento que faz a ligação dos sete discípulos.
6. Acompanhado ou sozinho?
Os investigadores também identificaram contradições na fala de uma segunda testemunha, de nome Claudiomiro. O homem afirmou que estava com amigo quando viu os corpos das crianças sendo descartados na Estrada Porto das Tranqueiras. Após o depoimento, os policias tentaram encontrar o amigo.
A fotografia de um homem, de nome Guilherme, foi mostrada para a testemunha, para reconhecimento.
— Ele disse: "sim, esse aí é o que estava presente comigo no momento que nós visualizamos de parte dos corpos" — observa o delegado Bruno Oliveira.
Os policiais desconfiaram do fato homem, médico em Santa Catarina, estar trabalhando em uma obra em Novo Hamburgo. Segundo a polícia, a testemunha procurou o informante de Fermino, o Paulo, e juntos apontaram outro Guilherme.
— Foi exibida outra fotografia e ele reconheceu. Mas um parênteses: esses dois Guilhermes possuem idades bem diferentes: um tem 29 e outro 41 anos, características físicas distintas e nada se parecem e, por si só, já causa estranheza — reforça Bruno.
Segundo o delegado, Fermino teria pedido para o titular da delegacia de homicídios, Rogério Baggio, para "rasgar" o primeiro auto de reconhecimento.
7. Cor de sacos plásticos
Os policiais da Corregedoria conseguiram chegar a uma quarta testemunha - além das três que mentiram em troca de benefícios. No depoimento ao delegado Fermino, ela salientou que viu sacos pretos na casa de um dos sete investigados.
— Entretanto, para a história que narrava, era necessário que sacos fossem azuis — salienta o delegado Pitta.
A testemunha contou que, dias após o depoimento, foi procurada por um informante do delegado Fermino com a oferta para que alterasse a declaração. Em seguida, o delegado foi avisado por ele.
— Após contato com informante, o delegado, acompanhado de outro policial teria procurado por essa testemunha e circulado de carro com a testemunha dentro, tratando disso, para dar a possibilidade de alteração de depoimento. Ela disse que não alteraria depoimento e foi liberada — acrescenta Pitta.
Entenda a apuração da polícia sobre a investigação do delegado
A apuração da Corregedoria durou 45 dias e foi concluída na sexta (16), quando o inquérito foi encaminhado para o Fórum. Ao todo 26 pessoas foram ouvidas, entre elas as três testemunhas que afirmaram ter mentido em troca de benefícios.
— Importante destacar que o inquérito se baseou em muitas provas técnicas e testemunhais — salientou Lapis.
Além da Justiça, o inquérito foi encaminhado também ao Conselho Superior de Polícia, que também pode decidir o futuro do delegado na corporação.
Fermino deve ficar afastado até o final do processo na Justiça, explicou Lapis. O policial está longe de suas funções desde janeiro.
A Cogepol não acredita em apenas uma única explicação do envolvimento do delegado. Entre elas está uma motivação religiosa, de que, com o caso das crianças solucionado, Fermino poderia ter uma "ascensão" entre seus pares na igreja.
Também se acredita que o delegado quisesse favorecer um amigo, o Paulo, que segue preso. O homem teria sido subcontratado entre final de julho e começo de agosto de 2017 - antes dos corpos das crianças serem localizadas - para fazer um serviço em um terreno de um dos sete investigados do começo da investigação.
Como pagamento inicial, foi entregue a Paulo um carro. Entretanto, o serviço nunca foi executado pelo amigo do delegado. Os policiais acreditam que Paulo teria criado a história do ritual satânico para "abafar" o serviço não executado por ele, já que poderia ocorrer prisões.
Apenas o mestre de magias Silvio Rodrigues ficou de fora da situação do terreno e, por isso, Paulo era cobrado por Fermino para encontrar uma testemunha que fizesse a ligação dele com os outros seis.
— Em 22 de janeiro, surge a terceira testemunha, filho do Paulo. Ele se apresentou para fazer depoimento e, coincidentemente, fazendo ligação do bruxo com as pessoas presas, o que estava faltando para aquela história irreal ela tinha sido consumada — observa Lapis.
Policiais tiveram acesso a uma mensagem do informante para o delegado, mandada um dia antes, avisando que tinha conseguido a testemunha que faltava.