Não há consenso sobre os motivos que fizeram a Região Metropolitana enfrentar, ao mesmo tempo, troca na gestão de hospitais, suspensão de serviços, emergências superlotadas e crise financeira em organizações basilares na rede de saúde.
Há, porém, uma guerra de justificativas para o problema. Sindicatos, parte dos hospitais e prefeituras relacionam ao Assistir, modelo estadual de financiamento da saúde, como um dos motivadores da crise. Eles também dizem que o caos está relacionado às dificuldades no IPE Saúde e na Fundação Universitária de Cardiologia (FUC).
O governo estadual argumenta que a mudança na destinação das verbas tornou mais justa e transparente o financiamento hospitalar; o Executivo gaúcho pondera que a crise é multifatorial e relacionar todos os problemas é um equívoco.
Especialistas dizem ser necessário avaliar a eficiência da gestão da rede e considerar fatores como o envelhecimento da população e disparada de busca por atendimento devido a surtos simultâneos de doenças.
Assistir segue em debate
Lançado em 2021, o Assistir foi apresentado pelo governo do Estado como um modelo capaz de tornar “mais transparente e justo” o repasse de verbas da saúde.
Para 2024, o programa tem a previsão de repassar R$ 1.045 bilhão para os hospitais. O montante é 31% maior do que o repassado no último ano, quando o governo transferiu R$ 807,1 milhões. Além disso, o número de unidades de serviços beneficiados pelo programa passou de 900 para 975.
O modelo motiva posicionamentos contrários entre as autoridades. Segundo Fernando Ritter, secretário de Saúde da Capital, um dos objetivos era o fortalecimento da oferta de serviços no Interior, para assim reduzir a demanda de pacientes nos hospitais de Porto Alegre. Essa finalidade, porém, não foi alcançada até o momento, na avaliação dele:
— Ainda não sentimos o impacto da descentralização do programa: continuamos aumentando o número de pessoas que buscam Porto Alegre, na média e alta complexidade. O Assistir faz uma recomposição de valores, não repercute diretamente em aumento de serviços.
A prefeitura de Porto Alegre diz registrar aumento de pacientes de fora da Capital. Dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) indicam que os porto-alegrenses representaram menos da metade (47,3%) das internações nos hospitais de alta complexidade, nos três primeiros meses do ano. Alvorada, Viamão, Gravataí, Cachoeirinha e Canoas, na Região Metropolitana, foram os que mais tiveram pessoas em atendimento nos centros de saúde de Porto Alegre.
O Assistir faz uma recomposição de valores, não repercute diretamente em aumento de serviços.
FERNANDO RITTER
secretário de Saúde da Capital
Os hospitais da Capital tiveram aumento anual de 76,9% com o Assistir: de R$ 75,9 milhões em 2020 para R$ 134,4 milhões neste ano; oito dos 11 centros de saúde tiveram acréscimo de recursos.
Em 2021, o Consórcio dos Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (Granpal) estimava perda anual de R$ 200 milhões em transferências a instituições de sua área de abrangência com o programa. Desde então, após reclamação dos municípios, negociações foram feitas com o governo estadual. A entidade não tem um cálculo atualizado do montante, mas assegura que os prejuízos seguem:
— Todos os 11 hospitais da Região Metropolitana (que fazem parte dos municípios da Granpal) continuaram perdendo dinheiro com o Assistir: só perdemos menos do que íamos perder — resume Ana Boll, coordenadora do Fórum de Saúde da Grampal.
Ana é também diretora-geral do hospital São Camilo de Esteio, onde, segundo ela, o Assistir tem sido prejudicial às contas.
— Perdemos R$ 1 milhão de recursos em janeiro e fevereiro. Estamos revendo equipes de profissionais em algumas áreas, buscando credenciar convênios e encontrar outra fonte de receita para mitigar os custos. Os hospitais ficaram à mercê dos municípios terem dinheiro para investir aquilo que foi retirado (pelo Assistir) — comenta Ana Boll.
Outro caso de redução de verbas com o novo modelo é do Hospital Bom Jesus de Taquara: são R$ 415 mil a menos por mês na comparação com 2020 – antes do início do programa, segundo a Associação Hospitalar Vila Nova (AHVN), responsável pelo centro de saúde.
— Diante dessa situação, estamos estudando a possibilidade de abrir novos ambulatórios como vascular, reumatologia, dermatologia visando o incremento de novas receitas, bem como, a continuidade de alguns serviços para equilibrar a redução de custos em relação aos cortes do Assistir — conta Dirceu Dalmolin, presidente da AHVN.
A direção da AHVN, porém, define o Assistir como benéfico: o Hospital Vila Nova, por exemplo, receberá R$ 17,4 milhões neste ano; antes do modelo, o ganho anual era de R$ 3,8 milhões.
O programa tem critérios transparentes, estabelece uma métrica para distribuir o recurso do Estado para quem efetivamente produz.
JULIO MATOS
Diretor-geral da Santa Casa de Porto Alegre
O diretor-geral da Santa Casa de Porto Alegre, Julio Matos, elogia a iniciativa do governo estadual ao defini-la como “acertada” e “corajosa”. Ele afirma que a instituição recebeu, em 2023, R$ 41 milhões do programa, que auxiliou a instituição a reduzir o déficit de R$ 184 milhões nos atendimentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS); antes do Assistir, a instituição recebia R$ 828 mil por ano.
— O programa tem critérios transparentes, estabelece uma métrica para distribuir o recurso do Estado para quem efetivamente produz. Sem esses R$ 41 milhões, a Santa Casa não poderia continuar fazendo a dimensão assistencial que faz hoje para o SUS — comenta Matos.
Lisiane Fagundes, diretora do Departamento de Gestão da Atenção Especializada da SES, diz que o Assistir inovou ao adotar critérios técnicos para a destinação dos recursos. Isso, conforme ela, não existia antes de 2021. Como exemplo da necessidade da mudança, sem citar nomes, ela conta a avaliação de dois centros de saúde feita durante a criação do modelo de financiamento:
— Um hospital na Região Metropolitana recebia R$ 4 milhões (do Estado). Ele é semelhante a outro centro de grande porte no interior do Estado. Ao compará-los, vimos que o que recebia mais entregava 60% menos de serviço para a população do que o do Interior, que não recebia nem R$ 1 milhão. Não pode haver tanta diferença em estruturas similares. Isso precisava ser ajustado — comenta Lisiane.
Troca de gestão em hospitais
A crise financeira na Fundação Universitária de Cardiologia também é citada como um dos principais problemas na saúde da Região Metropolitana. No fim de 2023, a situação resultou em um processo de recuperação judicial da instituição, que acumulou mais de R$ 300 milhões em dívidas.
Nesse contexto, após 25 anos, a FUC deixou de administrar o Hospital de Alvorada na segunda-feira (1º). Além dele, o Hospital Padre Jeremias, em Cachoeirinha, terá outra administradora a partir de segunda-feira (8).
Também sob gestão da FUC, a continuidade de atendimentos no Hospital Viamão ficou ameaçada: em janeiro, o centro comunicou o fim dos serviços de urgência e emergência. Na terça-feira (2), porém, um acordo entre a fundação, prefeitura de Viamão, Secretaria Estadual da Saúde e Ministério Público garantiu o funcionamento.
— A fundação é o principal ícone do problema da superlotação que estamos vendo nos hospitais de Porto Alegre. Todas essas mudanças fazem com que a população fique insegura para procurar qualquer um desses lugares, o que, por consequência, faz com que ela busque a Capital. Os trabalhadores também vivem sob incerteza quando uma nova gestão assume — comenta Julio Jesien, presidente do Sindisaúde.
O diretor-geral da Santa Casa de Porto Alegre, Julio Matos, cita ser “evidente” que as dificuldades financeiras da FUC contribuíram para o cenário de crise na rede de saúde. Ele afirma que pacientes de hospitais administrados pela fundação têm procurado o Hospital Dom João Becker, de Gravataí, gerido pela Santa Casa. Somado a isso, a instabilidade política em Canoas causa também prejuízos nos atendimentos:
— Estamos tendo custos adicionais com as demandas de Cachoeirinha, Viamão e Alvorada. Canoas tem uma boa estrutura de UBS e hospitais, mas está sofrendo com uma alternância de governança, uma descontinuidade dos sistemas de governo. Houve várias mudanças de secretários de saúde nos últimos anos, cada um com uma política diferente. Isso ocorreu em um município que também é referência para a Região Metropolitana — pondera.
Lisiane Fagundes, diretora do Departamento de Gestão da Atenção Especializada da SES, argumenta que a troca de administração nos hospitais de Alvorada e Cachoeirinha faz parte de um contexto no qual o Estado busca melhorar os atendimentos nos centros, que, por conta da crise da FUC, precisavam de outros administradores.
— Os hospitais não fecharam. Não conseguíamos fazer partos há meses em Alvorada e, agora, voltaram a acontecer. Cachoeirinha sempre funcionou e continuará depois da troca de direção. Temos a segurança do funcionamento de ambos, isso precisa ficar claro. Relacionar a transição de gestão à superlotação de hospitais de Porto Alegre é um equívoco — argumenta.
O secretário de Saúde da Capital afirma que a crise enfrentada pelo IPE Saúde é outro desafio para a administração da saúde no Estado. O instituto tem sofrido rejeição e críticas por parte de seus usuários: ao buscar os serviços de saúde, segurados em todo o Estado se deparam com a escassez de médicos, cobranças "por fora" e demora para conseguir consultas.
— Sabemos do descredenciamento de médicos de diversas áreas fizeram com que as pessoas não tivessem mais acesso a esses profissionais. Em uma situação de urgência, sem esses especialistas do IPE, os pacientes vão para uma unidade básica de saúde ou vão para uma emergência. É uma crise que se arrasta há anos e que sentimos na pele agora — afirma Ritter.
Por meio de nota, o IPE Saúde afirma que a superlotação das emergências em hospitais de Porto Alegre e da Região Metropolitana não tem relação direta com as alterações realizadas durante o processo de reestruturação do instituto, iniciado em 2023. “A região em debate é coberta por uma robusta rede de profissionais e estabelecimentos credenciados ao IPE Saúde”, afirma a nota.
O instituto informou que mantém cerca de 8 mil prestadores de serviço credenciados – de 5,5 mil médicos, 244 hospitais, 678 clínicas, 649 laboratórios, 53 prontos-socorros – e que “tem trabalhado constantemente buscando inserir novos profissionais em cidades e especialidades consideradas estratégicas”. Agrega que a reestruturação já teve como fruto a redução da dívida.
Já o superintendente da FUC, Oswaldo Luis Balparda, afirma que os hospitais de Alvorada e Cachoeirinha estão há mais de dois anos sem reajuste contratual com o Estado. Já o Hospital Viamão, segundo ele, teve redução mensal de R$ 1,4 milhão por conta do Assistir desde 2023.
— Os hospitais tiveram sua condição de sustentabilidade desestruturada pela falta do repasse adequado. É complexo para qualquer entidade manter a qualidade e o volume de serviços. Atribuir à FUC o problema de superlotação dos hospitais de Porto Alegre é uma visão que só percebe o efeito, deixando de perceber as verdadeiras causas da crise — pontua Balparda.
Em busca da eficiência
André Wajner, diretor-executivo da Eficiência Hospitalista, uma empresa que atua para tornar mais eficiente os processos em centros de saúde, acrescenta que, para reverter a crise na saúde, o Estado precisa primeiro rever modelos assistenciais e adotar ferramentas de gestão para a rede.
— De forma geral, temos uma política de remuneração que paga por produção. O hospital ganha por internações até o limite acordado. Depois desse teto, não recebe valores significativos. Portanto, não há estímulo para ser mais eficiente no modelo usual de contratualização do Estado — resume Wajner, também professor da Fundação Dom Cabral e do Hospital Albert Einstein.
Wajner cita Minas Gerais e Espírito Santos como exemplos de locais onde há políticas públicas que estimulam e financiam ferramentas de gestão. No Estado capixaba, ele diz ter participado da implementação de escritório de gestão de altas, medicina hospitalista e gestão de acesso em parceria com a Organização Pan-americana de Saúde, iniciativas que visam qualificar a desospitalização.
Hoje, no Rio Grande do Sul, não conseguimos dizer se um hospital é mais eficiente do que outro, porque não há indicadores efetivos de comparação.
ANDRÉ WAJNER
professor e diretor-executivo da Eficiência Hospitalista
— Hoje, no Rio Grande do Sul, não conseguimos dizer se um hospital é mais eficiente do que outro, porque não há indicadores efetivos de comparação. Em alguns Estados, você vai ganhar mais se for eficiente. É urgente a necessidade de uma política pública que estimule e financie ferramentas de gestão e qualidade hospitalar — pontua.
Fernando Torelly, executivo de Saúde e superintendente do Hospital do Coração (Hcor) de São Paulo, diz que mudança nas características demográficas da população brasileira e surtos de vírus devem ser considerados na avaliação do contexto da rede de saúde na Região Metropolitana.
— A sobrecarga no sistema é um problema em todo o Brasil. Um dos motivos para o aumento de casos de pacientes em prontos-socorros é o envelhecimento da população brasileira, que deve seguir nos próximos anos. Isso significa que vamos ter mais pacientes elegíveis a cuidados de saúde, mas não necessariamente a estrutura está se adequando a esse maior volume de atendimento. Também vivemos um momento de influenza, covid-19 e epidemia de dengue — diz o especialista, que também atuou no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e no Hospital Moinhos de Vento.
Para Torelly, a situação vivida pelo Estado não deve originar uma busca ao “culpado” pela superlotação e suspensão de atendimentos, e sim motivar o mapeamento do problema. Isso significa analisar se as estruturas são eficientes, se o tempo de atendimento e alta hospitalar são adequados, por exemplo, no que ele chama de “raio X” da rede de saúde.
— A solução para essas questões pressupõe maior integração dos atores para construir um plano conjunto, analisando recursos existentes, alternativas de ampliação de leitos ou de referenciamento de pacientes para hospitais menos ocupados. Outro ponto é qualificar o acompanhamento da qualidade do processo de gestão das organizações que assumem hospitais públicos municipais — acrescenta.