Planejar os próximos passos da vida, sonhar e ter objetivos são prazeres de qualquer pessoa. Para algumas, porém, projetar a vida que deseja para 2024 tornou-se ainda mais especial. É o caso de quem foi transplantado e, com isso, recebeu uma nova oportunidade. GZH conversou com pessoas que, após transplantes no final de 2023, iniciaram este ano sem as limitações e ameaça de morte que um órgão com insuficiência traz.
Quando a vida é pausada e trocada por uma espera indefinida, o cotidiano pode se tornar um sonho mais audacioso. Os personagens dessa reportagem agora têm liberdade para pensar além dos limites do hospital e anseiam o prazer de atividades aparentemente básicas. Comer churrasco, caminhar, ver pessoas queridas, ir à praia e simplesmente fazer xixi são algumas delas.
Paulo Simch, engenheiro civil de 57 anos, traz no peito um coração transplantado em novembro de 2023. Para ele, 2024 é o ano de voltar a viver.
— O que é viver para mim? É trabalhar, é poder curtir o meu neto, é poder conversar com a minha mulher, é sair, é comer um churrasco, é poder discutir, brigar, discordar… Isso para mim é viver e também é o meu plano — conta Simch.
Natural de São Luiz Gonzaga e morador de Pelotas, Simch sorri e gesticula com braços abertos ao falar de sua alegria, própria de quem ganhou uma nova chance. O medo de nunca mais ver pessoas queridas ou de deixar desassistidos seus colegas de trabalho – em um escritório que possui há 25 anos – durou 33 dias. Trata-se do tempo entre a internação e o transplante.
O engenheiro tinha insuficiência cardíaca desde fevereiro de 2021, quando teve um infarto. A partir desse momento sua expectativa de vida era de cinco anos. Em agosto de 2023, contraiu uma gripe que o debilitou ainda mais. Em outubro ele precisou ser internado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Quase não se alimentava mais, caminhava até a esquina e tinha que parar. Disseram-lhe que a única solução era o transplante. Foi quando entrou na lista de espera por um doador compatível.
Simch acredita que a sensação deve ser parecida àquela de um detento condenado à execução, esperando no corredor da morte. Você sabe que, se nada mudar, o pior pode acontecer a qualquer momento.
— Aí quando tu recebes a notícia (do transplante) é como se tu fostes absolvido, que descobriram o verdadeiro culpado do crime, que não é tu — descreve.
Ele perdeu oito quilos em um mês internado. Seu abdômen ficou roxo com as injeções de anticoagulantes e o coração era acessado por um cateter para receber a medicação. Mesmo assim, fazia questão de manter na rotina atividades como o banho e o trabalho pelo notebook. O que eram entre 12 e 14 horas diárias de atividade profissional se transformaram em alguns acessos eventuais, para “ocupar a cabeça”.
— Perguntei (aos médicos) se poderia trabalhar, falaram que no meu caso podia, porque já me conheciam e sabiam que eu ia enlouquecer sem fazer alguma coisa — conta.
Ele estava justamente trabalhando na poltrona do quarto do hospital quando seu médico entrou, sentou-se na cama e lhe disse a notícia mais esperada:
— Eu pensei, ué? Médico nunca senta na cama. Que negócio é esse? Ele disse: temos uma oferta de órgão, e aí? Eu disse e aí que eu estou pronto. Eu estava focado.
O paciente pediu alguns minutos para ligar para a esposa, Márcia Simch, que o acompanhou em todo o processo. Tinha medo da possibilidade de que não saísse vivo na cirurgia.
Ele disse: temos uma oferta de órgão, e aí? Eu disse e aí que eu estou pronto. Eu estava focado.
PAULO SIMCH
Transplantado de coração
— Liguei e ela veio. Eu já não estava mais naquela unidade, estava na UTI, na sala de cirurgia. Ela conseguiu me ver, falou comigo — recorda. Ele chegou ao bloco cirúrgico às 2h e terminou todo o processo antes das 8h. Às 20h30min, voltou totalmente à consciência.
— Eu acordei e já resmunguei. Este é o sinal de que estou bem — brinca.
Sua esposa e filho estavam ao lado da cama conversando alto quando viram Simch, ainda em ventilação mecânica e impedido de falar, acenando com os braços. Os familiares entenderam que ele queria baixar a cama do hospital, mas não era o caso. Ele pedia papel e caneta para escrever. “Preciso me concentrar! Só um pouco! Necessito ficar um pouco quieto!”, exigiu, no bilhete. Simch já se sentia bem logo após o procedimento.
— Foi uma grande felicidade, eu não tinha força e a minha força logo voltou. No terceiro dia de UTI eu já fui ao banheiro caminhando, já comecei a me alimentar, tinha apetite outra vez. Meus pés, que eram gelados, já tinham voltado a uma temperatura normal. Muda tudo, parece que aconteceu uma mágica — relata.
Na data em que saiu do hospital, 15 dias após o procedimento, Simch foi a uma churrascaria comer costela com a esposa. Pouco tempo depois, participou da Caminhada dos Transplantados. Agora sua meta é ir a Itapema (SC) visitar o neto de dois anos, Henrique. Faz seis meses que os dois não se encontram. Também pretende visitar a mãe, de 82 anos, em Alegrete, na fronteira oeste do RS.
Para ele a vida é outra, mais regrada. O engenheiro toma 35 comprimidos por dia para manter seu organismo funcionando bem, entre eles corticoide, analgésico, antiácidos, antiviral, redutor de colesterol e imunossupressores. Ele vai precisar ingerir a medicação durante toda a sua vida, mas deve diminuir as doses ao longo do tempo. Sua alimentação precisa ser mais regrada, deve evitar o sol e se resguardar para não contrair infecções, já que os imunossupressores, que impedem a rejeição do coração, também baixam a imunidade.
— Mas é tranquilo, não é difícil. É preciso só ter foco, disciplina e saber onde se quer chegar — garante.
Em sua mais recente ida ao médico, em 31 de janeiro, Simch perguntou se já poderia dirigir:
— Ele disse que se eu me sentir bem, posso. Então já vou começar a dirigir na minha cidade e vou programar uma viagem para ver o meu neto, porque antes de debilitado eu pegava o meu carro e ia para Itapema sozinho.
Simch também tem o compromisso de se envolver em projetos de conscientização sobre a doação de órgãos. Ele admite que, antes de precisar de um órgão, não tinha informações sobre o processo e não tinha noção da importância da doação. Agora, sua missão é levar conhecimento e incentivar as pessoas a serem doadoras.
— Eu assumo a minha culpa. Quando o Faustão transplantou eu fui um dos que duvidou do processo, achava que alguma coisa aconteceu de uma maneira que não era tão transparente. Mas por quê? Por ignorância — diz.
Além disso, o engenheiro tem a intenção de trabalhar menos a partir de agora, mas não muito menos:
— Não me sinto bem em estar parado, eu tenho que estar produzindo alguma coisa. Não é pela condição financeira, é pela condição de me sentir útil.
Livre das "amarras da máquina" para viajar
Fernanda Frizzo, caxiense de 41 anos, passou 134 dias sentada, ligada a uma máquina que garantia a sua vida. A soma corresponde às sessões de três horas e 45 minutos, três vezes por semana, de hemodiálise. Foram cinco anos, até que conseguiu um transplante de rim em 4 de dezembro de 2023, com sua irmã, Patrícia Frizzo, como doadora.
Desde recém-nascida ela tinha problemas de refluxo urinário – quando a urina flui de volta para o tubo que liga a bexiga ao rim e às vezes pode chegar até o órgão vital. Em 2013, médicos detectaram que complicações da condição estavam causando insuficiência renal. Fernanda conseguiu controlar a doença até 9 de junho de 2018, quando precisou começar a hemodiálise, momento no qual já pensava no transplante.
Nos dias em que fazia hemodiálise, sentia-se mal, cansada e com fome. Também estava sempre com sede, já que não podia beber muita água, para prevenir o acúmulo de líquidos. Nos finais de semana o controle era ainda maior, porque precisava ficar dois dias sem a hemodiálise.
É uma segunda chance. Quero tentar fazer algum curso, viajar, voltar a trabalhar sem as amarras da máquina.
FERNANDA FRIZZO
Transplantada de rim
— Eu sempre chegava com uns três quilos para tirar. Estava sempre inchada, cansada, parecia um balão. É a pior sensação do mundo, parece que suas pernas não aguentam o peso — descreve.
Agora, depois do transplante, ela pode sonhar novamente em viajar. Antes ela nem se animava para planejar uma viagem, já que sempre tinha que buscar clínicas próximas para fazer a hemodiálise.
— É uma segunda chance. Quero tentar fazer algum curso, viajar, voltar a trabalhar sem as amarras da máquina. Sem precisar me preocupar tanto, só manter a rotina de água, remédios e boa alimentação — diz.
Fernanda entrou na lista de espera por um rim em 2019. Aguardava por um doador falecido, mas, em quatro anos, não conseguiu ninguém compatível. O fim da longa espera veio por meio da irmã, Patrícia, que se predispôs a doar o órgão já quando soube que a irmã precisava e começou a preparar os documentos necessários.
— Até a teimosia dela me ajudou bastante. Tem que ir nas consultas, falar com psicóloga, tem toda uma burocracia e ela foi atrás de tudo — conta Fernanda.
Quando a doação foi liberada, as irmãs foram ao hospital dois dias antes do procedimento, quando Fernanda começou a tomar imunossupressores, para se habituar à medicação. Como a doadora era sua irmã e os exames apontaram altos níveis de compatibilidade, os médicos disseram que o maior risco era de infecção – não tanto de rejeição.
Depois das cirurgias as irmãs ficaram em quartos separados e, no terceiro dia, Patrícia já estava bem e recebeu alta, apenas com algumas dores abdominais. Fernanda ficou sete dias no hospital. Como o transplante foi de doador vivo, o órgão já estava funcionando logo após o enxerto.
— É algo indescritível. Meu Deus, tenho um rim! Tenho que fazer xixi! Quanto tempo que não fazia mais aquele xixi clarinho, bonito. Foi a melhor coisa do mundo poder fazer algo tão básico — conta.
Agora Fernanda está animada para fazer viagens. Após o transplante ela já foi à praia, em Arroio dos Ratos e Governador Celso Ramos (SC). Antes da hemodiálise, viajou pela Europa e pensa em visitar novamente a Itália.
— Agora já estou livre das agulhas, mas tenho a rotina dos remédios, então ainda estou indo aos poucos. Primeiro mais perto, depois mais longe — planeja a viajante.
Como são os procedimentos
Tudo começa com uma avaliação do receptor, explica Joana Carolina Junqueira, coordenadora de transplantes da Santa Casa. O transplante é indicado quando não há mais possibilidades de tratamento, cirúrgico ou não, que possam prolongar a vida do paciente.
É feita uma série de exames para identificar se a pessoa está em condições de fazer uma cirurgia do tipo, para saber se não tem nenhum outro órgão comprometido ou outra doença grave, por exemplo. Também são avaliadas características de peso, altura, tipo sanguíneo e funcionamento do sistema imunológico, para que se possa encontrar um doador compatível.
As doações que podem ser feitas com doadores vivos são um dos rins, parte do fígado e medula óssea. Para outros tipos de transplantes, os potenciais doadores são vítimas de morte encefálica – parada de todas as funções do cérebro como consequência de um ferimento grave na cabeça ou falta de oxigenação – sem comprometimento de outros órgãos.
Após feita a constatação da morte e um exame complementar para comprovar que o cérebro está de fato morto. A equipe médica pede autorização à família do falecido para a doação. Depois de concedida a liberação, o órgão é colocado na lista de espera estadual, conta o chefe de Transplantes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Roberto Manfro.
O hospital notifica a disponibilidade de órgãos e começa a busca por receptores compatíveis, explica Joana.
— Aí quando dá o sim a gente fica muito contente, mas começa a contar um cronômetro e a gente tem uma corrida grande para que todo esse processo esteja alinhado — detalha a coordenadora.
Entre os principais riscos para uma pessoa que passou por um transplantes estão a rejeição do órgão e o aparecimento de infecções, já que esses pacientes precisam tomar imunossupressores e por isso têm um sistema imunológico mais limitado.
Sobre o doador, no caso de falecidos, só são reveladas informações se perguntadas. A equipe revela apenas dados simples, como sexo e idade, afirma Roberto Manfro, chefe de Transplantes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
O tempo de espera na fila é variado, independente do órgão pelo qual a pessoa aguarda, pois a doação depende da compatibilidade genética com o receptor. A espera pode ser de dias ou anos.
Transplante de coração
No caso do coração, quando o órgão é ofertado para doação, um cirurgião vai até o local onde está o doador e, junto com uma equipe de três ou quatro pessoas, faz a remoção. O grupo tem quatro horas para finalizar todo o processo, desde a retirada do órgão até o implante no receptor.
O coração é o órgão com a janela de tempo mais curta para o transplante, afirma Joana. Segundo ela, quanto mais tempo passa entre o retirada do órgão e o implante, maior a chance de que as células do coração comecem a morrer e ele tenha problemas de funcionamento. Depois de retirado, o órgão precisa ser armazenado adequadamente e transportado até o receptor, que muitas vezes está em outra cidade. Entre 10 e 12 pessoas trabalham no bloco cirúrgico na operação para implantar o coração.
Transplante de rim
Quando o transplante renal é feito com doador vivo, a equipe médica avalia se a pessoa tem condições para realizar o procedimento. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre, por exemplo, utiliza um sistema que calcula a probabilidade da pessoa ter complicações nos rins ao longo da vida, afirma Manfro. Se ela chega próxima a 10% a doação já não é permitida, exemplifica o chefe de Transplantes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Familiares consanguíneos de até quarto grau e cônjuges não precisam de autorização judicial para doar. O transplante ocorre com hora marcada, nas melhores condições possíveis.
O percentual de transplante de rins com doadores falecidos em relação aos doadores vivos aumentou de em torno de 30% nos anos 1990 para cerca de 90% hoje, diz Manfro. Ele atribui o aumento a um aprimoramento tecnológico e otimização de procedimentos com doador falecido. Também ao fato de que antigamente as famílias eram maiores, o que aumentava a possibilidade de encontrar doadores compatíveis entre familiares. No ano passado foram feitos 519 transplantes de rim no Rio Grande do Sul, 28 deles com doador vivo (5,4%), diz Manfro.
O rim também é o órgão com mais pessoas na lista de espera, já que nesses casos as pessoas conseguem ser mantidas vivas, em hemodiálise.
A equipe que realiza o procedimento costuma ser composta de um anestesista, um instrumentador, um cirurgião principal e dois cirurgiões auxiliares. Com o treinamento das equipes de hoje, o índice de complicações é mais baixo. O risco maior costuma ser para idosos. Também há casos em que o risco é alto demais para fazer a cirurgia, quando o pacientes tem arritmia, pressão baixa, hipertensão, diabetes grave e outras doenças, conta Manfro.
Enquanto o rim de doador vivo já sai da cirurgia funcionando, o de doador falecido demora entre uma e duas semanas.