Audete Lazzari, de 69 anos, recebeu a reportagem de GZH 35 dias após passar por transplante duplo de rins. A senhora de olhar expressivo, aparência forte e fala firme, apesar das cirurgias que passou, está cheia de vida. Audete abre a casa sinalizando de imediato um pedido a partir da publicação: incentivar a doação de órgãos, porque foi através deste ato que ela sobreviveu.
Aos 40 anos ela foi diagnosticada com câncer de mama. Por essa razão, foi necessário fazer dois procedimentos, a retirada da mama e o esvaziamento da axila. Durante este tratamento, passou por quatro cirurgias. Como efeito colateral, o fígado ficou prejudicado devido aos medicamentos, causando a chamada cirrose não alcoólica e também diminuição das plaquetas. A paciente ficou mais de 20 anos em tratamento até que o transplante de fígado se tornou a única opção para continuar vivendo.
David Saitovitch, chefe do Serviço de Nefrologia do Hospital Moinhos de Vento, explica que a aposentada desenvolveu uma doença chamada de cirrose hepática não alcoólica, em que o fígado fica gorduroso, causando um processo inflamatório, evoluindo para um estágio de insuficiência hepática. Com isso, o único tratamento possível passa a ser o transplante do fígado.
Assim, em maio de 2022, ela entrou para a fila de espera e ficou três meses internada no Hospital Moinhos de Vento aguardando um doador de órgão compatível.
— Já não conseguia comer mais nada, a situação era bem difícil — relembra a idosa.
Três meses depois, chegou a vez dela. Audete foi transferida para o Hospital Santa Casa onde foi realizado o transplante de fígado, vindo de um doador de 38 anos, de Caxias do Sul.
Apesar da saúde frágil, a paciente nunca perdeu a esperança e a fé e ainda profetizou quando a cirurgia iria acontecer.
— Entreguei para Deus e ele fez na hora certa. Mesmo com a espera nunca fiquei ansiosa, Deus colocou as pessoas certas no meu caminho e fez com que tudo desse certo — comenta ela.
Pós-operatório
Após a cirurgia, a paciente ficou 20 dias internada, porém, a busca por uma vida saudável ainda não tinha chegado ao fim. Devido ao problema no fígado, os rins também foram prejudicados.
— Durante um período ruim do fígado, muito frequentemente, se desenvolve insuficiência renal. É o que chamamos de síndrome hepatorrenal, que é uma resposta do rim à insuficiência hepática, onde diminui a circulação de sangue nos rins — analisa Saitovitch.
Dessa forma, a paciente precisou realizar sessões de hemodiálise, porém os rins não se recuperaram e um novo transplante foi necessário.
Assim, logo após se recuperar completamente do transplante de fígado, Audete voltou para a lista de espera, desta vez para aguardar a doação de um rim. Casada há 43 anos e com um filho, recebeu na véspera do Dia das Mães o presente mais esperado, a chegada de um órgão compatível, vindo de uma senhora de 76 anos, de Londrina, no Paraná.
E oito meses após o primeiro transplante, a paciente foi novamente transplantada. E o caso, que já era raro, se tornou ainda mais especial. Pacientes que estavam na frente da idosa na fila de espera não aceitaram receber o órgão.
— Já que ninguém quis, eu aceitei os dois. E graças a isso hoje estou aqui — conta ela.
Doação de rins
Quanto ao processo de doação dos rins, o médico lembra que foi um procedimento nacional, já que a doadora era de fora do Estado. Por se tratar de uma senhora de 76 anos, a decisão passou pela análise da equipe de transplante do Moinhos de Vento, e só então o órgão foi ofertado para Audete. Mesmo sendo uma doadora idosa, ela era uma pessoa saudável, tendo como causa da morte um atropelamento, detalha Saitovitch.
O médico relata ainda que as demais equipes de transplantes já tinham desistido desta doação por se tratar de uma doadora limítrofe, por ter idade avançada e de baixo peso. Assim, para ofertar uma função renal adequada foi solicitado a doação dos dois rins da doadora para Audete.
— O resultado foi maravilhoso, pois agora ela tem uma função renal normal. Assim, a paciente que estava em uma situação bastante delicada devido a insuficiência hepática e renal, ficou muito bem e hoje está em plena fase de recuperação dos transplantes — salienta o nefrologista.
Com o sucesso do segundo transplante e mesmo com as fortes dores que sentiu no pós operatório, o otimismo esteve sempre presente.
— Não fiquei angustiada, acreditei que Deus faria o melhor por mim, que se fosse para eu aguentar assim seria. Eu estava bem calma e nem quando me chamaram para a cirurgia eu fiquei nervosa. Não fiquei ansiosa e acreditei, acho que isso também ajudou na minha recuperação — aponta Audete.
O resultado foi maravilhoso, pois agora ela tem uma função renal normal. Assim, a paciente que estava em uma situação bastante delicada devido a insuficiência hepática e renal, ficou muito bem e hoje está em plena fase de recuperação dos transplantes
DAVID SAITOVITCH
chefe do Serviço de Nefrologia do Hospital Moinhos de Vento
Para a equipe médica, a paciente se recuperou dentro do prazo previsto para transplantes, que não são muito longos. Normalmente um transplantado de rins e fígado tem uma recuperação relativamente rápida. Apesar da grande quantidade de remédios que precisa tomar para que não tenha rejeição dos órgãos, a idosa encara a situação de forma leve.
Em casa, já retomou a rotina, executando tarefas domésticas e praticando exercícios leves como caminhadas, acompanhada do marido. Quando for liberada pelos médicos, Audete planeja viajar e já tem dois destinos certos: Santuário de Fátima, em Portugal, para agradecer e uns dias em Vitória, no Espírito Santo, onde o casal tem um apartamento à beira mar. Reunir a família e os amigos também está nos planos da aposentada que agora tem três datas de aniversário para comemorar a vida.
Incentivo a doação de órgãos
Mesmo tendo consciência de que seu caso é raro e de superação, Audete e seus familiares têm apenas um objetivo ao contar sobre os transplantes, incentivar a doação de órgãos.
— Todos os dias eu agradeço a Deus pelas pessoas que me doaram e pelos familiares que aceitaram realizar as doações. Agradeço pela existência dessas pessoas que foram embora, mas deixaram uma parte delas para mim.
A respeito da importância da doação de órgãos, o nefrologista chefe do Moinhos de Vento, ressalta a palavra conscientização, pois as pessoas leigas, que são os familiares dos pacientes que vem a óbito, às vezes não tem conhecimento do que significa a morte encefálica - que é uma situação muito peculiar porque a pessoa está morta (não há fluxo cerebral), mas os pulmões seguem ventilando e o sistema cardiovascular também continua funcionando normalmente.
— Este é um trabalho contínuo que a sociedade precisa fazer. As equipes de transplante precisam sempre orientar e explicar a situação e os procedimentos necessários para que as pessoas consigam se conscientizar e entender o que é o processo de doação de órgãos, o que é a morte encefálica, e que existe um tempo para que a retirada dos órgãos seja possível. Dessa forma, quando as famílias concordam com a doação muitas pessoas podem ser beneficiadas, assim como foi com dona Audete, que estava em falência funcional de órgãos e devido ao gesto da doação agora está recuperada — afirma Saitovitch .
De acordo com dados da Central de Transplantes do Rio Grande do Sul, em abril deste ano, a lista de receptores de rim ativos chegava a 1.376. Nesse mesmo mês, foram realizados 160 transplantes desse órgão no Estado.