Foi com uma sensação de fraqueza acima do normal que Lauri Galle, 67 anos, morador de Três Coroas, no Vale do Paranhana, começou, há um ano e meio, a notar algo diferente em seu corpo. O contador desenvolveu problemas renais crônicos que resultaram em sessões de hemodiálise e o alerta para a necessidade de um rim novo. O transplante a que foi submetido, no início do mês, foi o de número 10 mil no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Lauri vivenciou seu grande dia na última segunda-feira (2). Depois de cerca de duas horas de procedimento, um rim aproveitado por meio da doação de órgãos foi para o lado esquerdo do seu corpo. A cirurgia transcorreu normalmente e, em menos de cinco dias, o paciente, que é casado com Irene Galle, 67, já está na sala de recuperação. No oitavo andar do hospital, espaço dedicado aos transplantados, ele relembra os passos que permitiram chegar ao Clínicas.
— Há um ano e cinco meses, comecei a ficar ruim. Após consultas e exames, vi que precisava fazer três sessões semanais de hemodiálise. Foram cinco meses na lista de espera até fazer o transplante — conta, ainda com pouca força na voz.
O casal se junta ao coro das pessoas que apoiam e estimulam a doação de órgãos, possibilitando que outros tenham a chance de sobrevida que o contador teve.
— Que tenham muitas campanhas sobre isso. É muito angustiante para as famílias de quem precisa de transplante. Esperamos que outras pessoas se engajem para termos mais doadores — diz a incansável esposa de Lauri, com quem ele divide as vivências há 42 anos.
Diabético e hipertenso, o contador relevou que as rotinas no trabalho pareciam ainda mais estressantes nos últimos meses. A partir de agora, desacelerar será fundamental para a mudança de vida do futuro avô, que já tem três filhos crescidos.
— Quero voltar a pescar na Argentina, que eu gosto muito – conta o sorridente paciente 10 mil, que ainda não tem previsão de voltar para casa.
Decisão da família
O Hospital de Clínicas realiza procedimentos com órgãos sólidos (coração, pulmão, rim e fígado), medula óssea e de córnea desde 1977. Naquele ano, um estudante de Medicina da UFRGS acompanhou, mesmo sem participar, o primeiro transplante no hospital que, coincidentemente, também era de rim. Outra obra do destino é que a marca dos 10 mil tem aquele aluno novamente, desta vez como o atual chefe do Serviço de Transplantes do Clínicas. Não bastasse isso, Roberto Manfro é o nefrologista que acompanha Lauri.
— Descobrimos este número fortuitamente. Estávamos fazendo um levantamento por outra razão e vimos que eram 9.988 transplantes realizados até uma semana atrás. Tem muito trabalho, dedicação e investimento por trás disso. É um número que nos deixa satisfeitos — conta o médico.
Os primeiros dez anos de transplantes na instituição envolveram procedimentos renais. Aos poucos, a estrutura possibilitou contemplar outros órgãos, com desenvolvimento das tecnologias contribiundo para um número cada vez menor de rejeição a órgãos transplantados (índice não ultrapassa 3%). Antes deste processo, no entanto, vem a doação como lembra Manfro.
— A mortalidade média me um ano de pessoas que aguardam por um rim é de até 6%, um índice considerável. Fígado, entre 30% e 40%, o mesmo para coração e pulmão. Por isso, precisamos de mais órgãos que possam propiciar bons transplantes — alerta.
Segundo dados mais recentes da Central Estadual de Transplantes do Rio Grande do Sul, há 2.711 receptores ativos na lista de espera. Para atender esta demanda, além de hospitais equipados e equipes treinadas, é fundamental aumentar o número de doadores. Um dos desafios é estimular a decisão das famílias em um momento difícil: em cerca de 50% dos casos, a resposta é não. Por isso, falar em casa sobre a vontade de ser doador é determinante.
— A legislação brasileira pressupõe o chamado “consentimento informado”. Há, recentemente, uma iniciativa em cartórios em que as pessoas podem registrar o desejo de serem doadoras. Isso é muito bom, mas a palavra final é da família. Não existe um cadastro de pessoas. Toda pessoa que morre por morte encefálica no Brasil, por lei, deve ser avaliada com vistas à doação — explica Manfro.
DNA do hospital
A diretora-presidente da instituição, Nadine Clausell, salienta que a marca é importante, ainda mais se tratando de um hospital público universitário.
— Os primeiros transplantes começaram com o funcionamento do hospital, na década de 1970, porque sempre se entendeu que estes procedimentos estão na ponta da alta complexidade na área assistencial e qualificam a própria instituição. Está no DNA do Clínicas e dá uma satisfação de olhar para esta trajetória e ver o tanto de pacientes e familiares beneficiados — explica a médica.
Nadine acrescenta que os profissionais que trabalham nesta área passam por um treinamento complexo, o que favorece o desenvolvimento das carreiras, mesmo depois de saírem do hospital.
— Para cada tipo de órgão, há entre 200 e 300 pessoas, divididas em equipes de cirurgiões, médicos clínicos especializados, enfermeiros e técnicos, fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais, psicólogos, além do setor administrativo e do pessoal que faz as buscas dos órgãos — relata.
Ela destaca o trabalho dos profissionais de saúde que se dedicam ao período de pós-operatório nos ambulatórios.
– Depois de receberem alta, os pacientes continuam voltando ao hospital para que o cuidado continue. É para isso que fazemos os transplantes: para as pessoas se recuperarem, voltarem a ter qualidade de vida e sobrevida.
Uma nova cultura
Mais da metade de transplantes no Hospital de Clínicas ocorreram de 2012 para cá. Trata-se de um indicativo de que os 20 mil procedimentos deverão chegar em bem menos tempo do que os 10 mil primeiros. Para Nadine, a previsibilidade deste número dependerá do engajamento da sociedade em relação às doações de órgãos.
— Todo transplante começa por um ato de doação, um tipo de solidariedade que envolve uma cultura. O Brasil precisa e tem espaço para uma entrega uma maior neste campo e que as doações efetivamente se transformem em transplantes. Espero que possamos enxergar a transplantação no país com um grau de certeza e estabilidade até maior do que temos hoje em dia.