A espera por um órgão compatível é uma realidade angustiante para milhares de pessoas que enfrentam problemas de saúde graves no Rio Grande do Sul. Entre eles, a demanda por transplantes renais se destaca, com números expressivos ao longo dos anos.
Segundo levantamento da Secretaria Estadual de Saúde (SES), considerando os primeiros oito meses deste ano, das 2.756 pessoas que estão aguardando por um transplante, 47,4% estão na espera de um rim, totalizando 1.307 pacientes. Além disso, 1.202 pessoas aguardam por córneas (43,6%), 169 por fígados (6,1%), 62 por pulmões (2,2%) e 16 por corações (0,5%).
A lista de espera é dinâmica, sujeita a mudanças de um dia para o outro. Na busca por clareza no processo de distribuição de órgãos para transplantes, o Ministério da Saúde divide os pacientes que aguardam o procedimento em ativos e semiativos.
Ativo é considerada aquela pessoa apta para o transplante, estando elegível para participar das listas de seleção que determinam a cirurgia. Já aquela em estado semiativo encontra-se temporariamente inapta para o procedimento, ou seja, não é incluída nas listas de seleção. Esse “status” é atribuído ao paciente em diversas circunstâncias, como por exemplo: quando ele não apresenta condições clínicas adequadas, quando é suspenso pela equipe médica ou quando seus exames pré-transplantes estão incompletos.
Quando o possível receptor cumpre os pré-requisitos, ele volta a ser considerado “ativo", e mantém a sua posição original na lista de espera. Se uma pessoa permanecer por 365 dias consecutivos no status semiativo, ele será automaticamente excluído do sistema e removido da fila.
Segunda nova chance
Uma história de destaque e de reviravoltas é a da estudante do segundo semestre de direito, Karine Tamires Gonzales Ferreira, 20 anos, que conseguiu sair da lista de espera em 2023. Esta foi a segunda vez que ela passou por um transplante de rim. Natural de Rolim de Moura, 500 quilômetros distante de Porto Velho e a mais de 3 mil quilômetros de Porto Alegre, a jornada de luta da jovem começou em 2014, quando foi diagnosticada com falência renal. Cinco anos depois, ela iniciou a hemodiálise. Foi durante uma pesquisa que ela descobriu que a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre era referência nacional para o transplante renal pediátrico.
— Era meu sonho fazer um transplante. E quando eu tive a oportunidade de saber mais sobre a Santa Casa, eu busquei os fundamentos e vi que aqui era o lugar certo. Vim em novembro de 2019 e meu primeiro transplante foi em 14 de janeiro de 2020 — explica a jovem.
A cirurgia trouxe alívio e esperança. O procedimento bem-sucedido permitiu que Karine levasse uma vida normal por três anos, até fevereiro de 2023. A jovem contraiu covid-19 durante o trabalho, o que debilitou o rim transplantado e comprometeu sua função. Ela foi internada na UTI de sua cidade, mas os esforços médicos para reverter a situação falharam.
— Foi um susto muito grande quando a doutora chegou na cama e falou: "Karine, você perdeu o rim". Eu tive muito medo de não conseguir o segundo transplante. Porque é muito difícil. Os anticorpos são muito altos, demora muito mais tempo para ser chamada. Voltei para a fila de transplante e o meu (transplante) foi totalmente diferente — afirma.
Karine retornou ao Rio Grande do Sul pela segunda vez em março deste ano, acompanhada de sua mãe, Rosimeire. O segundo transplante de rim ocorreu um mês e 23 dias após sua chegada ao Estado. Enquanto faz tratamento, está hospedada na Casa de Apoio Madre Ana, que oferece abrigo a pessoas de baixa renda de todo o Brasil. Lá, eles recebem teto, alimentação e apoio psicológico. A jovem relembra o momento que mudou sua vida novamente:
— Era meio-dia, meio-dia e meio, a doutora ligou e falou: "olha, eu te dou meia hora pra estar aqui no hospital". Aí a gente se arrumou e foi. No hospital, se os seus exames na hora que você é chamado estão 100% com o painel do doador, o rim é seu. E estava tudo 100%.
Após o transplante, Karine permaneceu 17 dias internada no Complexo Hospitalar da Santa Casa. Ela recebeu alta e agora aguarda o mês de dezembro para retornar à sua cidade natal para reunir-se com seu pai, irmã e namorado.
— Eu continuo tomando imunossupressores, e vai ser para o resto da vida. É demorado (para voltar para casa) por conta que a gente vai a cada 15 dias no hospital fazer consulta. E como que na minha cidade não tem um centro de referência de nefrologia, a gente precisa ficar aqui um pouquinho de tempo a mais, seis meses após a cirurgia — relata.
A rotina de quem espera há mais de mil dias
No cenário de pacientes à espera de transplantes, a cirurgiã dentista Elayne Midori, de 39 anos, compartilha sua história, que já dura mais de mil dias (três anos). Diagnosticada com uma doença renal crônica em 2011, ela entrou na lista por novos rins no começo da pandemia em 2020 após os dois órgãos entrarem em falência.
A última vez eu fiquei 24 horas em jejum esperando no banquinho duro do hospital. Fora que é um massacre mental, ficar pensando que qualquer hora eles vão te chamar ali pra ser ou não ser. Então a volta é assim, a gente volta abatido e triste.
ELAYNE MIDORI
Cirurgiã dentista
A cirurgiã dentista fez hemodiálise por um ano e relembra que chorou muito durante a sua primeira sessão. Ela confessa ter sentido pena de si mesma, e a intensidade das sessões de hemodiálise a fez enfrentar dificuldades.
— Tu sais exausta, como se tu tivesses feito uma maratona. Eu fazia três vezes por semana, quatro horas na máquina. E a gente sempre sai abatido — relata.
Foi então que Elayne optou por diálise peritoneal, um procedimento que oferece a comodidade de ser realizado em casa e utiliza um cateter abdominal para filtrar o sangue. Embora essa técnica tenha trazido mais conforto e independência, sua rotina envolve cerca de 10 horas diárias de diálise, além de diversas precauções.
— Durmo com ela (máquina de diálise), tenho uma vida normal e não passo mal. O ideal é fazer todos os dias, não faltar as consultas, me alimentar direito. Tem vários remédios que a gente precisa tomar, fora isso tem uns 20 medicamentos que uso para remover potássio, remover fósforo da alimentação, então é uma série de compromissos a que tu te submetes pra ser uma pessoa independente — conta Elayne.
Ao longo do tempo, a cirurgiã dentista já foi chamada em cinco ocasiões distintas para verificar a compatibilidade com possíveis doadores.
— Quando te chamam, significa que tu já tens uma compatibilidade com aquele rim que tá vindo. Aí quando tu for fazer mais exames, eles vão saber se realmente tu não tá com covid-19, se não tem nenhuma infecção, não tem gripe. Porque tu tens que estar 100% saudável. Na ligação, eles anunciaram que tu podes decidir se queres ou não concorrer. Eles avisam a idade da pessoa, se era homem ou mulher, o quanto de creatina que a função renal está funcionando, e o porquê que a pessoa morreu. E daí então tu podes saber se tu vais querer aceitar ou não - explica.
Elayne relata a ansiedade após esses chamados e expressa o temor de enfrentar a nova fase de compatibilidade e a possibilidade de mais uma negativa.
— Quem acha que é só ouvir, chegar aqui e falar: “não, não é pra ti, volta”, não é. A última vez eu fiquei 24 horas em jejum esperando no banquinho duro do hospital. Fora que é um massacre mental, ficar pensando que qualquer hora eles vão te chamar ali pra ser ou não ser. Então a volta é assim, a gente volta abatido e triste — explicou.
Apesar dos desafios, a esperança pelo tão aguardado transplante renal continua viva. Da última vez, um contratempo surgiu quando o rim destinado a Elayne sofreu isquemia – um intervalo crítico entre a retirada do órgão do doador e seu implante no receptor.
— Falaram que eu ia ser transplantada, deu 10 minutos e eles falaram que não, porque o rim ‘isquemiou’. Então, a emoção sobe e desce – desabafa.
A espera pelo momento
Por conta do grande número de critérios a serem considerados, o tempo de espera por um transplante pode variar para cada paciente. Dados divulgados pela Secretaria de Estado da Saúde (SES) na metade de agosto, a pedido da reportagem de GZH, apontam que cada órgão e tecido possui um tempo de espera específico. No entanto, praticamente todos ultrapassam o período de um ano.
Para o transplante de córnea, que chegou a ser praticamente suspenso durante a pandemia, as equipes trabalham para restabelecer o tempo de espera que era de 30 dias. Atualmente, os pacientes aguardam por cerca de um ano para realizar o procedimento.
No caso do transplante de coração, a média de espera é de 14 meses enquanto um procedimento de fígado pode demorar cerca de 15 meses para ocorrer (veja abaixo). Já o transplante de rim, que possui a maior lista de receptores do RS, tem espera de cerca de 15 meses. De acordo com a Central Estadual de Transplantes, pelo dinamismo desta lista, não é possível fazer uma separação por tipo sanguíneo.