Ao se deparar com um diagnóstico de tumor no fígado em 2018, a psicanalista Claudia Picolotto Concolatto, 48 anos, não poderia imaginar o ato de generosidade que seu próprio filho realizaria no futuro. O jovem Franco Concolatto, que tinha 19 anos em 2021 (ano do transplante), viria a se tornar o doador de sua própria mãe, em um gesto impactante. Ele não titubeou em doar 60% de seu próprio órgão para salvar a vida dela.
— Eu queria ter a minha mãe de volta, como tudo era antes. E queria que meu irmão tivesse essa oportunidade de crescer como eu tive, com a mãe saudável do lado – desabafa o estudante.
Franco, aliás, nasceu no dia 27 de setembro, data nacional da doação de órgãos. E além da prova de amor, a experiência de Franco acabou sendo determinante para a escolha da carreira profissional. Ele relata que depois de a "vida virar de cabeça para baixo" pela cirurgia, e com convívio com os médicos, não conseguia mais pensar no curso de direito como primeira opção.
— Conforme a gente foi vivendo tudo isso, mais certeza eu tive que eu queria poder ajudar pessoas como os médicos da minha mãe fizeram por nós. E eu queria fazer diferença na vida de outras pessoas como eles fizeram na nossa. Então optei por medicina e agora estudo na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) — conta.
A trajetória de tratamento de Claudia teve início com a remoção do tumor, momento em que foi descoberto que a única possibilidade de cura para a doença que deforma as vias biliares seria por meio de um transplante hepático.
— Eu fazia colangites de repetição (uma inflamação com fibrose progressiva dos dutos biliares no fígado), e precisava estar sempre no hospital até o transplante. De 2018 até 2021, quando a gente transplantou, foram anos muito difíceis, de antibiótico direto, internações hospitalares longas, uma que durou sete meses. Não pude vir pra casa, porque o meu fígado não funcionava direito e várias coisas no organismo começaram a falhar – explica.
Naquela época, o filho mais novo de Claudia, Marco, tinha 4 anos, enquanto Franco tinha 16. O pequeno aprendeu a contar o tempo em que sua mãe estava hospitalizada usando os dedos de suas mãos e pés. Como ela recorda:
— Eu disse que quando ele terminasse de contar as duas mãozinhas e um pezinho, a mãe ia voltar pra casa.
Quando a necessidade por um transplante surgiu - três anos depois da descoberta da doença – coube ao marido de Claudia, Márcio Concolatto, explicar a Franco que ela precisaria de um transplante.
— Foi então que o Franco disse para o pai dele: eu sou compatível com a mãe e eu vou ser o doador dela. Porque tu precisas ter o mesmo tipo sanguíneo e o teu porte físico precisa ser semelhante ao do doador – explica Claudia.
Transplante intervivo
No caso de Franco e Claudia, o procedimento cirúrgico realizado foi o transplante intervivo, no qual o fígado doente foi completamente removido e substituído por uma porção saudável de um órgão tirado de um doador vivo – geralmente um parente. Trata-se do primeiro transplante hepático intervivos de adultos da Santa Casa. O fígado restante no doador regenera-se e recupera seu volume original em algumas semanas. Simultaneamente, a parte do órgão transplantada no receptor também cresce e assume as funções de um fígado completo.
A cirurgia de transplante intervivo envolve a execução de dois procedimentos cirúrgicos concomitantes. Para o sucesso desse procedimento, é necessário contar com uma equipe composta por médicos cirurgiões e anestesistas altamente treinados.
— Para o transplante intervivo também tem que ter uma avaliação. Precisa do 'ok' da psicóloga, que faz uma entrevista grande, e também o 'ok' do serviço social. Quando a gente tem dúvida se há coação ou não, a gente chama também o comitê de ética — explica Sandra Maria Gonçalves Vieira, coordenadora do programa de Transplante de Fígado Infantil do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
Ela explica que com a possibilidade desse tipo de intervenção, o tempo da lista de espera diminuiu. A coordenadora conta que são feitos por ano 20 transplantes pediátricos no HCPA - número que não foi alterado durante a pandemia. A médica afirma que isso ocorreu devido aos doadores vivos.
— Mesmo com todo o caos, os doadores vivos tomavam muito cuidado porque se eles estivessem com covid, não podiam doar — relata.
Cuidados
Cuidado esse que acompanhou Claudia durante a recuperação e segue na sua rotina. Franco teve alta quatro dias após o transplante, e a mãe uma semana depois do procedimento. Os cuidados diários incluem em uma dieta saudável, não ingerir bebida alcóolica e fazer exercícios físicos, além dos imunossupressores.
— Quando o doutor me disse que eu ia pra casa, eu pensava: "tem certeza"? Porque tu vai para casa e tem que ter uma série de cuidados. O início do pós-transplante, ele é delicado por conta das infecções, já que a nossa imunidade precisa ser reduzida quase a zero. Eu tinha uma criança pequena e eu não podia pegar o meu filho no colo. Eu usava máscara o tempo todo — relembra.
Já Franco não precisa tomar medicamentos.
— Se tu olhas pra mim vivendo o meu dia a dia, tu não diz que eu passei por uma cirurgia do porte que eu passei. Acho que é muito legal a gente conscientizar sobre essa possibilidade. No caso da doação intervivos, é uma coisa muito mais simples, eu acho, que as pessoas imaginam, sabe? Que não limita a tua vida. Que tu vais, sim, ter um processo de recuperação, mas é um processo de recuperação normal e que não deixa sequelas — explica.