Após o impacto causado pela pandemia, a doação de órgãos e tecidos no Rio Grande do Sul começa a apresentar sinais de recuperação. Dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES) apontam que entre os meses de janeiro a julho deste ano foram realizados 1.212 transplantes. O número é superior àqueles registrados entre os anos de 2018 a 2022, quando comparado ao mesmo período (veja os gráficos abaixo).
No levantamento realizado pela reportagem de GZH é possível observar a redução de procedimentos em 2021 — ano em que a pandemia atingiu seu ponto mais crítico no Estado. No período de janeiro a julho, foram apenas 388 órgãos e tecidos transplantados – número quase três vezes menor do que o contabilizado em 2023.
Nos hospitais referências em transplantes no Rio Grande do Sul, como o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e a Santa Casa de Misericórdia, a pausa nas operações foi sentida especialmente nos procedimentos que dependiam de doadores falecidos. A incerteza quanto aos riscos e a possibilidade de contaminação pelo coronavírus fizeram com que muitas cirurgias fossem paralisadas ou adiadas.
Atuando na coordenação da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (Cihdott) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a enfermeira Karla Cusinato Hermann afirma que o trabalho foi prejudicado pela ação do coronavírus.
— O Hospital de Clínicas era referência para receber os pacientes de covid-19 gravíssimos. Então, nossos leitos foram dedicados a isso. Nós praticamente não tivemos doação durante um bom tempo, até porque o hospital tinha que estar com os recursos todos voltados para salvar a vida de quem estava com a doença. Por muitos meses, só realizamos a notificação de morte encefálica — afirmou Hermann.
A busca pelo “sim” das famílias
Com o aumento da frequência nos procedimentos, as equipes trabalham para reduzir a lista de espera por um órgão a partir da conscientização das famílias. O contato inicia a partir do momento que o paciente tem declarada a morte encefálica – que pode ser em decorrência de Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou algum traumatismo craniano.
Em seguida, a equipe médica faz uma análise do paciente para observar a situação de cada um dos órgãos e tecidos que poderiam estar disponíveis para doação, e busca a família do potencial doador para que ocorra a autorização do procedimento.
A entrevista com os familiares exige preparo dos profissionais e costuma ser realizada por uma equipe mais experiente. A enfermeira Kelen Machado, que atua na Organização de Captação de Órgãos (OPO) da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, ressalta a importância de que a comunicação com a família já esteja em andamento quando são iniciados os testes para comprovação da morte encefálica.
— A morte encefálica é totalmente diferente do que imaginamos do conceito de morte. Porque o familiar vai entrar lá na UTI e vai ver que o seu ente querido está quentinho, está com o coração batendo, está respirando com o pulmão movimentando, ainda está urinando. Então, culturalmente, é difícil para as pessoas entenderem isso. Por isso que eu reforço que a comunicação com essas famílias é de extrema importância, para que elas possam realmente saber que a morte encefálica é a morte — afirmou Kelen.
Foi em um destes momentos que a enfermeira teve contato com a família Citolin Verlindo. Em 2018, a estudante de direito Elizabeth Citolin Verlindo, de 63 anos, recebeu a notícia da morte encefálica do marido, Everton De Sá Verlindo, 64 anos em decorrência de um AVC hemorrágico. Ela estava junto com as filhas Caroline, 35, Nathallye, 32, e Izabelle, 29.
Everton ficou internado na UTI da Santa Casa de Misericórdia por cerca de uma semana e a família foi informada sobre a morte encefálica. No momento da confirmação, houve o baque, mas Elizabeth e as filhas sabiam qual a resposta dar para a equipe de Kelen.
— Tu começas a respirar e pensa: “não, peraí”. Daí a enfermeira veio e disse que ele só poderia doar as córneas e a pele. Naquele momento, ficamos com pena, pois era a vontade dele de doar. A equipe ficou muito comovida com nossa reação, pois, geralmente as famílias ficam receosas e nós não ficamos. As quatro estavam bem, conscientes de que era isso mesmo, que ele iria ficar feliz, sabendo que ele ia poder ajudar outras pessoas — afirmou Elizabeth Citolin Verlindo.
Recusa para doação
Se para algumas famílias a doação de órgãos é algo já definido, para 44,3% das famílias consultadas nos primeiros sete meses deste ano no Rio Grande do Sul a resposta foi negativa. Esse é o patamar mais elevado dos últimos seis anos (veja abaixo mais dados). Foram 137 recusas no período, com o mês de junho tendo maior número de negativas: 29.
O alto índice de recusas reflete um desafio para as equipes de captação de órgãos, reforçando a importância de abordar questões emocionais e culturais relacionadas ao tema. Mesmo que uma pessoa tenha expressado sua vontade de doar órgãos, a legislação brasileira estabelece que, no momento da morte, a decisão final recai sobre a família. Isso significa que a vontade do doador pode não ser assegurada.
Quando a doação acontece em vida, a lei permite a possibilidade de doar um dos rins, parte do fígado, dos pulmões ou medula óssea. Entretanto, apenas cônjuges e parentes de até quarto grau podem ser doadores.
Conforme a SES, a causa mais frequente dos 137 não consentimentos familiares para a doação de órgãos no Estado em 2023 (janeiro a julho) é que o ente falecido não era doador em vida: 59, ou seja, 43%.
Para as equipes responsáveis pela captação dos órgãos, a falta de conhecimento e a desconfiança que as famílias possuem do procedimento podem explicar o número de recusas. A doação de pele, por exemplo, é apontada pelos especialistas como aquela que mais causa receio nos familiares, justamente pela desinformação de como ocorre a retirada do órgão.
— As pessoas têm muito medo da mutilação do corpo. Isso não acontece de forma alguma, vai aparecer cicatrizes cirúrgicas, de onde ocorreu a extração do órgão. No caso da pele, é retirada uma pequena parte que fica coberta pelas vestes do paciente. Então, se garante isso as famílias e muitas perguntam sobre como é o transplante — complementa o coordenador da Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (Cihdott) do HCPA, Paulo Carvalho.
Na tentativa de facilitar a decisão das famílias, desde 2022 já é possível manifestar esta intenção de forma expressa, formal e gratuita junto aos tabelionatos de notas do Rio Grande do Sul. Conforme dados do Cartório Notarial, até o dia 16 de agosto de 2023, foram realizadas 318 escrituras públicas de doação de órgãos no Rio Grande do Sul. Mesmo com iniciativas como essa, o mais importante é que o assunto esteja presente no diálogo entre as famílias, como destaca o cirurgião do aparelho digestivo da Santa Casa Misericórdia e atuante na equipe de captação de órgãos, Rodrigo Mariano.
— Eu vejo como o melhor caminho para facilitar e aumentar o número de doação é aumentar a conversa dentro de casa, instigar essa conversa dentro de casa. Que muitas vezes soa mórbido. As pessoas dizem “eu quero ser cremado” ou “quero ser enterrado” e, então, por que você não vai conversar sobre a doação de órgãos?