“Querida doadora, naquele instante em que você partiu, ao abrir a porta do céu, você deixou que a luz irradiasse na minha direção. Eu não sei sua idade ou sobre sua história, mas sei que pessoa generosa você se tornou. A cada dia que fiquei na UTI, e mesmo agora em casa, me pego pensando em você. Será que um dia você imaginou que me salvaria?”
A carta para a destinatária desconhecida é de autoria de Marindia Cecchetti Lahm, 31 anos, que recebeu um transplante de pulmão há quase um ano, em 27 de setembro, Dia Nacional da Doação de Órgãos — a mais feliz das coincidências possíveis. Na voz da atriz e apresentadora Mônica Martelli (veja vídeo abaixo), a mensagem de agradecimento de Marindia ilustra a primeira peça da campanha de conscientização “Palavras salvam vidas. Diga SIM à doação de órgãos”, que a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre lança nesta quinta-feira (1º) e deve se estender por todo o mês, buscando sensibilizar potenciais doadores e seus familiares.
Todas as mensagens são reais, escritas por transplantados agradecendo às famílias que autorizaram a doação de órgãos no momento da morte dos pacientes. Por questões éticas, esclarece a Santa Casa, não é possível divulgar de quem eram os órgãos e para quem foram transplantados, e por isso as correspondências não são enviadas. A iniciativa do complexo hospitalar é uma forma de dar visibilidade a essas palavras.
“Eu estava com um bilhete somente de ida pra essa viagem maluca da vida. E no instante que recebi a ligação do hospital, eu nasci mais uma vez. E quando tive a sensação de respirar com os novos pulmões, eu renasci. Mais uma vez. Quantas vezes podemos renascer, afinal? Eu chorei de dor, e hoje choro de emoção”, continua o texto de Marindia, médica veterinária baiana que se mudou para Porto Alegre em 2020 por conta da progressiva piora de seu quadro de fibrose cística (ou mucoviscidose, doença genética que deteriora o pulmão) e da necessidade de estar perto do centro onde teria a possibilidade de receber o novo órgão.
Apesar de ter nascido com a enfermidade, Marindia, moradora de Luís Eduardo Magalhães, no interior da Bahia, só teve o diagnóstico aos 14 anos, devido à carência de especialistas e hospitais. Sofria com muita falta de ar, secreção, desnutrição, infecções repetidas. Passou 15 anos em tratamento, viajando a cada dois meses para Salvador, distante quase 1,2 mil quilômetros.
Perseverante, Marindia não deixou de estudar, apesar das imensas dificuldades. Terminou a escola e se formou em Medicina Veterinária. Atuou por oito anos na profissão. Em 2020, sua capacidade pulmonar estava em apenas 27%. Mudou-se, então, para Porto Alegre. Foram 11 meses na lista de espera até a ligação com a boa-nova, na madrugada de 27 de setembro do ano seguinte. A paciente despertou com o toque do celular às 2h53min.
— Apareceu um pulmão compatível — anunciou a médica da Santa Casa.
Marindia estava na companhia da mãe e da irmã. Havia tido uma breve alta para que pudesse se despedir da família fora do hospital. As perspectivas, até então, não eram boas. Com o telefonema salvador, as três se sentaram no chão para rezar e agradecer. Marindia já havia decidido cortar o cabelo bem curto porque cansava demais para lavá-lo. Antes de sair de casa rumo ao bloco cirúrgico, pediu que a mãe resolvesse a questão:
— Passa a tesoura no meu cabelo!
Agradeço todo dia quando acordo. Aquela sensação do geladinho no travesseiro é maravilhosa. Abro os olhos, sinto o geladinho e penso: estou viva. Ano passado, nesta data, eu estava me despedindo
MARINDIA CECCHETTI LAHM
Transplantada
Riram do novo visual torto, de fios desalinhados. No hospital, choraram novamente. Era, ao mesmo tempo, uma despedida e um “até logo”. Tudo dependeria de como transcorreria a operação. Ninguém era capaz de antecipar o desfecho.
— Você tem que voltar. É você que resolve as coisas lá em casa — suplicou a irmã da paciente.
— Você tem que voltar para a gente ir ao salão — disse a mãe, desgostosa com o mau serviço na cabeça da filha.
A permanência na UTI e a recuperação no quarto somaram mais de três semanas. Desde então, Marindia retorna para avalições e medicação.
— Engordei, não precisei mais ficar internada, não preciso mais usar oxigênio para caminhar. Vou caminhando e agradecendo. Tudo mudou, é completamente diferente. Antes eu estava durando, agora estou vivendo — relata.
A veterinária, acostumada ao calor do Nordeste, não quer mais sair do Rio Grande do Sul:
— Agradeço todo dia quando acordo. Aquela sensação do geladinho no travesseiro é maravilhosa. Abro os olhos, sinto o geladinho e penso: estou viva. Ano passado, nesta data, eu estava me despedindo.
Valter Garcia, responsável pelos transplantes renais da Santa Casa e referência internacional na área devido aos 45 anos de dedicação, destaca que o trabalho de captação e doação de órgãos é baseado em quatro pilares: financiamento público, legislação, organização do sistema — no Brasil e nos Estados — e educação.
— O transplante é a única forma de tratamento que depende da sociedade. Com qualquer outro tipo de tratamento, para câncer, para doença do coração, você marca consulta, faz a cirurgia. Se precisar de um transplante, o paciente vai entrar em uma fila. Não interessa se tem convênio, se é particular, se é do SUS. Você só vai fazer o transplante se a sociedade, por meio da família (do doador), autorizar — comenta Garcia.
O momento é crítico no país. Atualmente, o número de negativas está em 44% — ou seja, quase metade dos familiares de um indivíduo com morte cerebral não permite a doação de órgãos.
— Campanhas como esta tocam a população e podem ajudar a mudar opiniões — acrescenta o médico.
No passado, Marindia, sempre doente, pensava que nunca poderia planejar casamento e filhos. Agora pode. Está prevista para 14 de março do ano que vem uma cerimônia pequena que oficializará o relacionamento com o companheiro. Será em Bombinhas, no litoral de Santa Catarina, porque Marindia gosta muito de praia.
Leia a íntegra da carta de agradecimento de Marindia Cecchetti Lahm
“Querida doadora, naquele instante em que você partiu, ao abrir a porta do céu, você deixou que a luz irradiasse na minha direção. Eu não sei sua idade ou sobre sua história, mas sei que pessoa generosa você se tornou. A cada dia que fiquei na UTI, e mesmo agora em casa, me pego pensando em você. Será que um dia você imaginou que me salvaria?
Eu estava com um bilhete somente de ida pra essa viagem maluca da vida. E no instante que recebi a ligação do hospital, eu nasci mais uma vez. E quando tive a sensação de respirar com os novos pulmões, eu renasci. Mais uma vez. Quantas vezes podemos renascer, afinal? Eu chorei de dor, e hoje choro de emoção.
Posso caminhar sem oxigênio, deitar de dia e cair na gargalhada sem tossir ou me engasgar, posso ir ao mercado caminhando. Finalmente, posso dançar a música da vida. Doadora, seus pulmões estão sendo cuidados com muito amor e carinho, e a cada vitória, a cada manhã, eu vou te agradecer, por pensar em me salvar, mesmo sem me conhecer.
Eu vou sempre imaginar como você era, no seu sorriso e na bondade que espalhou e continua espalhando. Te esquecer? Impossível. A cada inspiração, fico impressionada com quanto ar posso recolher, e isso era inimaginável.
Nem nas minhas melhores fases me senti tão bem como hoje. Estou viva. Obrigada! Minha família e eu agradecemos a sua família pelo ‘sim’ que salvou a minha vida. Vou honrar e cuidar desses pulmões especiais até o fim dos meus dias. Obrigada e obrigada!”