Tema que assusta muitos até em pensamento, a morte inibe discussões essenciais para salvar vidas. A próxima segunda-feira (27) é o Dia Nacional da Doação de Órgãos, instituído por lei em 2007 com o objetivo de conscientizar a sociedade sobre o tema, pautando discussões entre familiares e amigos. O Setembro Verde também reforça a importância da iniciativa de se tornar doador.
O debate se torna ainda mais urgente ao se considerar o abalo provocado pela pandemia no número de procedimentos realizados. De acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), registrou-se queda de 30% nas cirurgias desse tipo nos piores momentos da crise sanitária — o segundo semestre de 2020 e o primeiro semestre deste ano —, em decorrência da mobilização da rede hospitalar para priorizar o combate à covid-19.
Para que um transplante se viabilize, é necessária a autorização dos familiares do paciente diagnosticado com morte encefálica (perda completa e irreversível das funções cerebrais). Observam-se diversos outros requisitos de viabilidade, mas a possibilidade de beneficiar doentes em fila de espera por um órgão depende dessa sinalização positiva dos parentes.
Manifestar o desejo de se tornar doador, deixando pais, filhos, irmãos e demais familiares cientes dessa decisão, dá segurança e tranquilidade para quem será consultado a respeito do assunto pelas equipes responsáveis. Psicóloga da Central de Transplantes do Estado, Naida Machado sugere que se aproveitem momentos como o da veiculação de notícias pela imprensa para que se expresse essa vontade, naturalizando, aos poucos, a discussão a respeito do assunto, especialmente em núcleos em que há mais hesitação. Reportagens sobre vítimas de acidentes de trânsito ou artistas e outras personalidades que morrem e têm a doação de órgãos autorizada são bons pontos de partida.
— As pessoas pensam que é ficar chamando a morte, mas é um assunto tão importante — salienta Naida. — Já tem uma pequena abertura, mas ainda falta muito. É preciso falar mais, não fugir do assunto — acrescenta.
A psicóloga afirma que, na imensa maioria das situações, a família do doador se sente confortada com o benefício que pôde proporcionar, salvando outras vidas, mesmo durante o devastador momento do luto recente.
— Noto que as famílias se tornam multiplicadoras: “Doamos os órgãos, meu filho está fazendo alguém viver” ou “meu filho melhorou a qualidade de vida de alguém” — exemplifica Naida.
Quando há indivíduos muito resistentes, que sequer cogitam a possibilidade, por desinformação ou crença religiosa, a argumentação pode ajudar na mudança de opinião.
— Tem gente que diz ter “medo de não estar bem morto”. São feitos vários exames que não deixam dúvida alguma sobre a morte encefálica — diz Naida, complementando que as escolas também devem aproveitar o tema em sala de aula desde cedo.
Valter Duro Garcia, nefrologista responsável pela unidade de transplante renal da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e membro do conselho consultivo da ABTO, avalia que a pandemia prejudicou de forma “violenta” o setor de transplantes. Obstáculos enfrentados no início da disseminação mundial do coronavírus já foram superados em boa parte, como a indisponibilidade, de madrugada, para exames de detecção da infecção ou a demora na liberação dos resultados — o tempo é fator-chave para os trâmites e etapas que precisam ser cumpridos até a realização do procedimento.
Os momentos de maior superlotação das instituições de saúde, quando UTIs que antes recebiam transplantados tiveram de virar áreas exclusivas para doentes com covid-19 e até blocos cirúrgicos foram improvisados como setores de terapia intensiva, impediram a realização de transplantes, que chegaram a ser suspensos.
— Faço transplantes há 40 anos e nunca tinha parado — surpreende-se Garcia, relembrando que casos urgentes foram encaminhados para outros hospitais do complexo, em espaços cedidos provisoriamente.
De acordo com os dados mais recentes da Central de Transplantes do Estado, de janeiro a agosto de 2021, foram realizados 253 procedimentos no Rio Grande do Sul, em comparação com os 392 do mesmo período do ano passado, o que representa uma queda de 35%. Garcia observa tendência de retomada iniciada no último mês de julho, ainda que os indicadores referentes à pandemia continuem exigindo estado de alerta. Na metade de outubro, será possível verificar a possível melhora com base nos dados compilados no terceiro trimestre.
— Houve uma diminuição muito importante de internações por covid. Agora existem leitos para fazer transplantes, mas temos que reorganizar todo o sistema. É como uma máquina que, quando para, vai engrenando de novo até atingir o normal — diz o nefrologista.
Outra consequência da pandemia é que os cerca de 80 mil pacientes transplantados que vivem no Brasil atualmente, com uma rotina saudável amparada em medicações imunossupressoras, mostraram-se muito suscetíveis a complicações da doença. No comparativo com a população geral, os imunossuprimidos (com deficiência no sistema de defesa do organismo) morrem 10 vezes mais em decorrência de complicações da infecção pelo vírus.
— Quando nos demos conta de que a mortalidade deles era 10 vezes maior, falamos com as autoridades. Eles não estavam nas prioridades e se vacinaram muito tarde. Perdeu-se muito tempo — lamenta o médico.
Saiba mais
- Doadores: existem dois tipos, que são doadores em vida (em condições de doar órgão ou tecido, como um rim, sem colocar em risco a própria saúde) e doadores com morte encefálica (diagnosticada entre os hospitalizados que respiram por aparelhos).
- Impedimentos: não podem ser doadores pacientes com tumores malignos (há exceções), doença infecciosa grave aguda e doenças infectocontagiosas, entre outros. Se o paciente teve covid-19 há mais de 30 dias e apresentar resultado de exame PCR negativo, pode ser doador.
- Morte encefálica: quando se constata, com base em diversos exames, que houve perda completa e irreversível das funções cerebrais.
- Órgãos: doadores vivos podem doar um rim, medula óssea (se compatível), parte do fígado (cerca de 70%) e parte do pulmão (situações excepcionais). Um doador falecido pode beneficiar até oito pacientes com coração, pulmão, fígado, rins, pâncreas, córneas, intestino, pele, ossos e válvulas cardíacas.
- Receptores: o hospital aciona a Central de Transplantes do Estado, que consulta a lista de espera para avaliar quem são os candidatos mais compatíveis.
- Corpo: o cadáver fica sem deformidades, apresentando apenas uma cicatriz no abdômen. O doador poderá ser velado e sepultado normalmente.
Fonte: Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO)