Tomar um copo de suco de laranja, uma batida de banana ou uma água de coco são desejos simples, mas inacessíveis ao bacharel em Direito Carlos André Araújo, 22 anos. Conviver com restrições faz parte da rotina de pessoas que aguardam um transplante de órgão no Brasil, cuja espera aumentou na pandemia.
O número de procedimentos sofreu queda: no ano passado, o país realizou 17.656 transplantes, redução de 36% frente a 2019, segundo o Ministério da Saúde. A diminuição se mantém neste ano: de janeiro a abril, foram 6.424 transplantes no país, 12,5% menos do que no mesmo período do ano passado e 26% abaixo do mesmo intervalo de 2019.
Como consequência, a espera cresceu: em março, 44.309 pessoas estavam na fila por um transplante no Brasil, 16% a mais do que em 2019, antes da pandemia, segundo os dados mais recentes da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).
– Laranja e banana são frutas com muito potássio. Como eu tenho falência renal, tenho que controlar. Além disso, a hemodiálise aos poucos te destrói, deixa a gente com dor de cabeça muito forte, cansaço, náusea, vômitos. A espera é muito angustiante – afirma Carlos André, que vivia em Alta Floresta d’Oeste, cidade de 23 mil habitantes a duas horas de distância de Boa Vista (Rondônia) e veio a Porto Alegre para aguardar um novo rim.
Não há como realizar transplante por plano de saúde no Brasil: toda a regulação de órgãos é operada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – cada Estado tem uma fila de espera. O país é referência mundial pela qualidade dos médicos da área e por ter o maior sistema de transplante de órgãos do mundo. No entanto, a superlotação de hospitais, a alta transmissão de coronavírus (doença que inviabiliza a doação) e a dificuldade em processar muitos testes RT-PCR trouxeram obstáculos às cirurgias de transplante no Brasil.
Carlos André descobriu que tinha falência renal em abril de 2019, poucos dias após a mãe falecer – ela própria recebera transplante de rim sete anos antes, mas retornou à hemodiálise e morreu por acidente vascular cerebral (AVC) causado por problemas com a pressão arterial. O mau funcionamento dos rins é presente na família: avó, primos, tia e o irmão caçula, Carlos Henrique, também lidam com a questão.
O velório da mãe foi gatilho para Carlos André ter problemas de pressão, desenvolver uma parada súbita dos rins e começar a hemodiálise. A rotina virou do avesso: três vezes por semana, acordava às 3h30min e percorria uma viagem de mais de duas horas para realizar o tratamento. Apesar dos efeitos colaterais, manteve os estudos em Direito à noite, numa cidade vizinha, obstinado em buscar uma melhora de vida – o pai é freteiro e a mãe era professora.
Ainda em 2019, Carlos André entrou na fila de espera por um transplante de rim em Rondônia. Para acelerar o processo, foi aconselhado pela médica, gaúcha, a aguardar na fila do Rio Grande do Sul, uma das unidades da federação referência na área. O irmão caçula, Carlos Henrique, à época com 16 anos, piorou de saúde e veio junto para também transplantar o rim.
Em janeiro do ano passado, os irmãos desembarcaram em Porto Alegre com a irmã mais velha, Jaqueline, 24 anos, e o esposo dela. À época, Carlos André estava no fim da graduação de Direito e Jaqueline, de Farmácia. Preocupados com os estudos, voltaram a Rondônia por alguns dias para trancar a faculdade.
Entretanto, com a pandemia, Carlos André e Jaqueline ficaram impossibilitados pela Secretaria de Saúde de Rondônia, afirmam, de voltar à capital gaúcha. O caçula Carlos Henrique, que permaneceu na capital gaúcha, realizou o transplante dois meses depois.
– Estávamos no último ano da faculdade, e ia ter complicações se a gente não trancasse, não havia ensino remoto ainda. Se soubesse que não teria como voltar, teria ficado. O arrependimento é muito forte – diz Carlos André.
O jovem passou um amargo 2020 na fila de espera de Rondônia, em uma mistura de sentimentos infelizes: angústia porque a salvação depende da boa ação de um desconhecido, ansiedade por não ter previsão de quando tudo terminaria, preocupação pelo atraso nos transplantes e cansaço pelos impactos da hemodiálise.
Em fevereiro deste ano, finalmente retornou a Porto Alegre para viver com a irmã Jaqueline na Casa de Apoio Madre Ana, instituição filantrópica ligada à Santa Casa de Misericórdia. Assim como outros hospitais, a instituição chegou a suspender transplantes, mas os procedimentos já retornaram. Agora, os rondonienses aguardam, com esperança, a ligação no telefone que colocará fim às preocupações.
– Antes de vir para cá, foi um ano de luta. A enfermidade me atacou no último ano de faculdade, antes de iniciar uma nova fase da vida. E ainda perdi a minha mãe junto. A doença renal crônica deixa a gente em estado bastante depressivo. No meu Estado, eu não tinha perspectiva de transplante, não tem cultura de doação lá. Agora que estou em Porto Alegre, está mais tranquilo porque tenho esperança maior – afirma Carlos André.
A irmã Jaqueline confidencia saudades da família, mas agradece a mudança para o Rio Grande do Sul.
– Ao menos agora não tenho mais a ansiedade, o susto de pensar: será que meu irmão vai aguentar até chegar em Porto Alegre? Sou grata, muito grata a Deus. Uma hora vai chegar – diz Jaqueline.
Hospitais lotados, o obstáculo
Dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) mostram que o rim é o órgão mais transplantado do país. A queda nos procedimentos desse órgão foi de 34% de janeiro a março deste ano em comparação ao mesmo período de 2020. A seguir, o fígado é o órgão mais requisitado, com redução de transplantes de 28%. Houve ainda queda de 62% nos transplantes de pulmão e de 25% nos de córnea.
O grande obstáculo foi a superlotação hospitalar, explica o médico cirurgião José Huygens Garcia, presidente da ABTO e referência nacional em transplantes. Para abrir espaço a pacientes com covid-19, diferentes Estados suspenderam cirurgias não urgentes, o que incluiu transplantes de órgão.
– Antes da pandemia, estávamos em ascensão no número de doadores por milhão de habitantes no Brasil. Mas muitos hospitais pararam de fazer transplantes por meses, por causa da superlotação e da falta de leitos. Não havia onde fazer procedimentos – afirma Garcia. – Além disso, a pessoa que vai doar precisa ser assistida em cuidado intensivo para que não haja parada cardíaca antes da morte cerebral. Esse cuidado é dado nas UTIs, que estavam lotadas de pacientes com coronavírus. Fora de UTI, muitos não receberam o atendimento necessário para se qualificarem a serem doadores.
No Rio Grande do Sul, a suspensão de transplantes chegou a durar dois meses em alguns hospitais, pontua a médica e coordenadora da Central de Transplantes da Secretaria de Estado da Saúde (SES-RS), Sandra Coccaro. Durante o período, leitos clínicos, UTIs, blocos cirúrgicos e salas de recuperação foram adaptados para pacientes com covid-19.
Como resultado, o número de transplantes de órgão em solo gaúcho caiu 55% de janeiro a maio deste ano em comparação ao mesmo período de 2020, de acordo com dados do governo estadual. Balanço de maio mostra que há 2.172 pessoas na fila de espera do Rio Grande do Sul, o maior contingente desde janeiro do ano passado. Destas, 1.076 aguardam um rim, incluindo o rondoniense Carlos André.
– Não tínhamos como operar os pacientes. As equipes (de hospitais) puxaram o freio de mão porque não havia onde colocá-los. E tinha risco de internação, já que pacientes imunodeprimidos têm risco grande na pandemia – diz Sandra.
Menos doadores na pandemia
A pandemia, além de impedir as cirurgias, também reduziu o número de doadores devido à alta transmissão viral: muitos brasileiros, apesar de perderem a vida por outras razões, morriam também com coronavírus e não podiam efetivar a doação. O Rio Grande do Sul foi prejudicado pelo limite da capacidade de processamento de testes do Laboratório Central (Lacen) no início da pandemia, pondera Sandra Coccaro. A espera de dias para o resultado de um PCR era demais para a conservação de um órgão, cuja resistência é de algumas horas.
O Ministério da Saúde reconhece a queda nos transplantes, mas nega que tenha havido interrupção dos procedimentos. “Mesmo com a queda registrada, não houve interrupção dos processos; a atividade foi mantida, observando-se as normas de segurança para os candidatos a transplantes e para os pacientes transplantados”, afirmou a GZH por meio de nota. O governo federal ainda diz que combateu a queda: cita a ampliação da faixa etária de doadores de pele, a criação de procedimentos para baratear os transplantes, as reuniões com Centrais Estaduais de Transplantes, as mudanças na identificação e confirmação imunogenética de doadores de medula óssea e a elaboração de diretrizes para guiar o sistema de saúde a adaptar os transplantes na pandemia. A despeito do atraso, os transplantes voltam a ser feitos – e a perspectiva é de aceleração com o avanço das vacinas.
Um dos beneficiados pela retomada foi Igor Vinícius da Silva Neves, 16 anos. Ele saiu em novembro do ano passado de Solânea, município de 26 mil habitantes a duas horas de distância de João Pessoa (Paraíba) para aguardar um novo rim em Porto Alegre. Igor convive com problemas renais desde os oito anos, então enxerga as limitações como parte da vida. Amadureceu rápido e, segundo a mãe, Adriana Santos da Silva, 38, nunca reclamou da doença e das viagens efetuadas três vezes por semana para as sessões de hemodiálise. Pelo contrário, buscava, ainda, acalmar a família.
Adriana lembra com detalhes o dia em que soube de um possível rim para o filho: era sábado, 16 de maio, 12h40min. A médica ligara para a mãe de outro rapaz que compartilha do mesmo tipo sanguíneo de Igor e que também estava à espera pelo órgão. Os dois rapazes deveriam se apresentar imediatamente ao hospital – caso o rim não fosse compatível com um, poderia ser para o outro.
O rim chegou às 19h30min do mesmo dia, apto para o organismo de Igor. Às 2h da manhã de domingo, o adolescente entrou para o bloco cirúrgico. A operação durou 3h30min e a recuperação foi rápida. Hoje, ele está em acompanhamento, com a perspectiva de retornar a Solânea ainda neste ano.
– Vou voltar para casa. Quero ir pra praia, visitar meus parentes, praticar esportes. Quero nem pensar no que passou – diz Igor.
A mãe agradece:
– Todo dia rezo pela família da pessoa que fez a doação. Não sabemos quem são. Que sintam o conforto e a nossa imensa gratidão – diz.
Como funciona a doação
Há dois tipos de doadores
- Doadores vivos, que podem doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou parte do pulmão.
- Doadores falecidos, que representam a maior parte das doações e precisam concordar, em vida, a doar um órgão. Devem ter passado por morte encefálica, definida como “morte baseada na ausência de todas as funções neurológicas”, que é completa e irreversível.
Quem pode doar
- Qualquer pessoa que concorde, em vida, a fazê-lo e que tenha morte cerebral – em geral causada por acidente vascular cerebral (AVC) e traumatismo craniano (em um acidente de trânsito, por exemplo). É preciso avisar a família que, quando partir, você quer que seus órgãos sejam doados para salvar outras vidas. No hospital, serão os familiares os responsáveis por respeitar o seu desejo e autorizar a doação.
- "O sistema de transplantes é ético e justo: recebe quem está em situação mais grave, independente de ter convênio ou não. No Brasil, a decisão final é da família. Por isso, todos devem falar, em vida: quero ser doador. Se a pessoa fala em vida, a família respeita o desejo", afirma José Huygens Garcia, presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).
Quem não pode doar
- Pacientes com diagnóstico de tumores malignos (com algumas exceções), doença infecciosa grave aguda ou algumas doenças infecto-contagiosas, como a covid-19.
Não caia em boatos
- Os médicos não desligam os aparelhos antes da hora para quem quer ser doador, conforme boato difundido amplamente. Trata-se de uma mentira, como explica o médico cirurgião José Huygens Garcia, presidente da ABTO: "O diagnóstico de morte encefálica deve ser feito por dois médicos diferentes, e eles não podem fazer parte da equipe de transplantes. Devem estar separados. Além disso, morte cerebral é irreversível. Não existe milagre de acordar depois disso. Doar salva vidas".
Como ajudar
- Comunique sua família de que você quer ser doador de órgãos. Eles serão os responsáveis por fazer o seu desejo ser respeitado. É possível fazer doações para a Casa de Apoio Madre Ana, que acolhe famílias de baixa renda que estão na fila de espera por um transplante. As doações podem ser por Pix para casadeapoio@santacasa.org.br ou pelo site amigos.santacasa.org.br.