Um levantamento da Central de Transplantes do Estado aponta redução de 25% no número de transplantes de órgãos em 2020, se comparado a 2019 no RS. De janeiro a agosto foram 356 procedimentos contra 474 no mesmo período do ano passado. A queda é ainda maior nos transplantes de tecido. Foram 358 neste ano e 877 de janeiro a agosto de 2019, o que significa uma redução de 59%. Os números são reflexos da pandemia de coronavírus. Os transplantes e as doações de córneas de pacientes - que não estão em morte encefálica - foram suspensos e os critérios de triagem foram revistos devido aos riscos de contágio.
Não há um levantamento específico da Serra, mas em dois dos maiores hospitais da região, o Geral e o Pompéia, em Caxias do Sul, o impacto na lista de espera é imediato. No primeiro semestre de 2020, as doações de córneas caíram 56% no Geral e 47% no Pompéia, em comparação ao mesmo período de 2019. No HG, foram 34 doações de janeiro a junho de 2020 contra 78 no mesmo período do ano passado. Já no Pompéia, o número de doações baixou de 159 para 84, se comparado ao primeiro semestre de 2019.
Outro fator determinante é a queda do número de notificações, que são as informações repassadas à Central de Transplante de que há um possível doador. Soma-se a isso a reestruturação dos hospitais para ampliar os leitos das unidades de terapia intensiva (UTI) e a falta de dados para prever o efeito do vírus nos pacientes que vão receber os órgãos.
IMPACTOS EM CAXIAS DO SUL
A doação de múltiplos órgãos segue normal no Pompéia, mas as captações de coração e pulmão estão suspensas. Por outro lado, há centros que estão realizando transplantes de rins e fígado, por isso, o hospital ainda capta esses órgãos. Já os transplantes estão suspensos para preservar os pacientes porque não há dados de como o órgão de um paciente infectado poderia impactar o organismo do transplantado. A enfermeira do Hospital Pompéia, que atua no setor de doação de órgãos, Ana Paula Concatto, explica que a equipe de transplantes de rins, procedimento realizado atualmente na instituição, optou por suspender as cirurgias:
- A equipe tem conversado para criar uma estratégia de retomada dos transplantes de rins porque sabemos que muitos pacientes acabam ficando piores na fila. No entanto, não há nada certo ainda.
As captações de córnea também estão paralisadas:
- As captações de córnea naqueles pacientes que vão a óbito e não estão em morte encefálica estão canceladas. Morte encefálica é aquele paciente que vai doar todos os órgãos e esse tipo de captação continua, mas aqueles que morreram de infarto, AVC ou neoplasia não podem, neste momento, ser doadores de córneas - afirma Ana Paula.
Isso ocorre em respeito à nota técnica do Ministério da Saúde, que autoriza a captação nesse tipo de paciente apenas se ele tiver feito o RT/PCR (exame para identificar a covid-19).
- Não tem como fazer esse tipo de exame 24 horas antes do óbito, porque a gente não sabe quando o paciente vai morrer e isso inviabiliza esse tipo de captação _ ressalta Ana Paula.
No HG, situação é semelhante
Antes da pandemia, a lista de espera para transplante de córnea contava com cerca de 80 pacientes no Hospital Geral. Agora, são 300.
- Sabemos que a retomada será com menos doações porque vamos ter que avaliar ainda mais os pacientes. Até que se tenha uma vacina contra o coronavírus, se ocorrer um caso suspeito vai limitar ainda mais a retirada de órgãos. Sabemos que a lista está crescendo, mas em virtude da pandemia não podemos retirar os órgãos - explica o biólogo do Banco dos Olhos, Leandro Casiraghi.
Ele ressalta que há uma série de fluxos de trabalho para evitar a disseminação do vírus:
- Criamos um protocolo com a Central de Transplantes e ele tem que passar pela aprovação do sistema nacional, que avalia a possibilidade de retorno. Será uma retomada gradual, aos poucos, com restrições rigorosas como em todos os setores da sociedade.
Casiraghi lamenta por quem espera na na fila:
- Esperamos retomar para que as pessoas que estão aguardando possam voltar a enxergar o quanto antes e ter qualidade de vida porque sabemos que, dependendo o caso, a situação pode se agravar e nem o transplante resolve o problema.
ANGÚSTIA DE QUEM ESPERA
Para quem aguarda na fila, como Paulo Roberto Borges Boni, 42 anos, a espera aumenta a incerteza e a angústia. Morador de Caxias do Sul, ele aguarda transplante de rim há oito anos:
- Com a pandemia, os transplantes diminuíram muito. Eu particularmente tento ficar tranquilo, mas não é fácil. Sigo em frente sem nunca desistir porque uma hora a gente é contemplado. Basta ter fé, crer, não se deixar abater e seguir o tratamento à risca.
"As pessoas não chegam a ter a chance de doar", afirma coordenadora da Central de Transplantes
O número de notificações também caiu: 379 notificações de janeiro a agosto em 2020, contra 446 no mesmo período em 2019, uma queda de 15%. Isso ocorre porque parte da população tem evitado procurar atendimento, mesmo que tenha sintomas neurológicos, por receio de ser infectado pelo coronavírus. Essas pessoas morrem em casa, o que inviabiliza a doação, uma vez que o procedimento só é feito, na maioria dos tipos de transplantes, quando o doador tem a morte encefálica confirmada.
- As pessoas não chegam a ter a chance de doar. Outro fator é que foram instauradas medidas para diminuir a saída de casa, então há menos acidentes e os traumatismos cranioencefálicos são as principais causas que levam às doações de órgãos - explica a coordenadora da Central de Transplantes, Sandra Lúcia Coccaro de Souza.
Consequentemente, o número de doadores efetivos, que são os pacientes em condições de doar órgãos e tecidos também caiu de 160 para 127, o que equivale a uma redução de 20,62%. Já o total de doadores com órgãos transplantados, aqueles que efetivamente passaram pelo procedimento, também foi impactado pela pandemia. O número passou de 126 para 110, o que representa queda de 12,70%.
A Central de Transplantes não parou as atividades e segue validando e oferecendo doadores.
- A equipe mantém aquele paciente sob condições estritas em uma UTI, mas que pode eventualmente receber alguma contaminação. Esse controle pós-transplante é o grande desafio.
Há estratégias para o pós-pandemia, como campanhas de doação e o fortalecimento e ampliação do trabalho em UTIs em parceria com o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) para mapear potenciais doadores e que as equipes possam chegar até as famílias para trabalhar a doação:
- Tem muito a ser feito, mas nós vamos trilhar esse caminho e voltar aos nossos indicadores. Os familiares precisam entender a importância do sim. Sabemos que, na maioria das vezes, as pessoas não falam sobre morte, mas é preciso porque há uma parcela da população que depende dessa doação que salva vidas - apela Sandra.
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