A anomalia de Ebstein, que afeta Maria Guilhermina, 11 meses, filha do ator Juliano Cazarré e da bióloga Letícia Bastos, é uma doença cardíaca congênita que se caracteriza por um defeito no funcionamento da válvula tricúspide — uma das quatro válvulas cardíacas que separa o átrio direito (câmara que recebe o sangue) do ventrículo direito (câmara que "bombeia" o sangue para ser oxigenado nos pulmões).
Essa anomalia é rara, representando apenas 1% dos casos de cardiopatias congênitas e afetando um em cada 10 mil nascidos vivos. Ela pode ser diagnosticada em exames pré-natal, o que facilita o tratamento adequado quando o bebê nascer.
GZH entrevistou Marcelo Brandão da Silva, cardiologista pediátrico e fetal do Hospital da Criança Santo Antônio, da Santa Casa de Porto Alegre, e Stelamaris Luchese, cardiologista pediátrica que trabalha no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e no Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC), para trazer esclarecimentos sobre a anomalia de Ebstein.
O que causa a anomalia de Ebstein?
Ainda não há um consenso científico sobre o que pode ocasionar essa doença. Para alguns especialistas, a anomalia de Ebstein pode ter fatores ambientais e genéticos envolvidos.
— Assim como a maioria das cardiopatias congênitas, pode acontecer em qualquer família, com qualquer casal, independentemente de ter algum fator genético ou não envolvido. Muitos casos que a gente acompanha, às vezes, ocorrem como o primeiro caso na família, sem nunca ter tido nenhum caso antes semelhante. Então, muitos são tidos como ao acaso mesmo — afirmou o cardiologista pediátrico da Santa Casa de Porto Alegre.
Alguns estudos apontam que o uso de lítio pela mãe durante a gravidez poderia ser um fator de risco para a anomalia de Ebstein no bebê. Marcelo Brandão, porém, pondera que é necessário investigar mais a fundo a correlação.
— Existem algumas evidências (sobre o uso do lítio contribuir com a doença), mas a grande maioria dos casos que vemos no hospital dessas crianças, não conseguimos identificar uma causa nem genética, nem ambiental que possa estar diretamente associada com essa doença — relatou o cardiologista pediátrico e fetal.
Como a anomalia de Ebstein se manifesta?
A válvula tricúspide deixa de cumprir seu papel, ao não conseguir reter o fluxo sanguíneo que deveria seguir o caminho da artéria pulmonar, quando a pessoa tem a anomalia de Ebstein.
—Com isso, o sangue passa pelo átrio e pelo ventrículo e, quando o ventrículo vai bombear o sangue, na artéria pulmonar, a válvula tricúspide não segura e ele reflui o sangue todo para o átrio direito — explicou Brandão. Esse problema é chamado de insuficiência ou regurgitação da válvula tricúspide.
Quando a doença tem grau mais leve, esse refluxo sanguíneo para o átrio direito ocorre em menor quantidade, sem representar grande perigo ao paciente. Já em casos mais graves, quase todo sangue acaba voltando para o átrio direito, e como ele não consegue chegar aos pulmões em quantidade suficiente, o bebê não vai ter uma boa oxigenação. Isso pode gerar uma série de complicações.
— Nos casos graves, os bebês apresentam cianose (pele azulada) e dificuldade respiratória, necessitando tratamento intensivo — acrescentou Stelamaris Lucchese.
Como é feito o diagnóstico?
A anomalia de Ebstein pode ser diagnosticada antes do nascimento do bebê. Por conta disso, os médicos recomendam que as mães realizem exames na fase pré-natal.
— A doença pode ser facilmente identificada por meio do ecocardiograma fetal, um exame do coração do feto, hoje recomendado que todas as gestantes façam. É um exame de ultrassom tecnicamente semelhante aos outros ultrassons que a gestante geralmente faz no seu pré-natal e deve ser realizado após as 20 semanas de gestação — detalhou Brandão.
Com o ecocardiograma fetal, é possível analisar o coração do bebê, que ainda está no útero materno, em detalhes. Esse exame geralmente é realizado por um cardiologista pediátrico com especialização em ecocardiografia fetal. No entanto, o exame ainda é pouco disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) e, geralmente, realizado somente por meio de planos de saúde ou de modo particular.
O senado aprovou em 23 de maio de 2023 um projeto de lei (PL 130/2018) que garante a realização do ecocardiograma e de ultrassonagrafias para gestantes na rede pública de saúde, mas o PL ainda segue para sanção.
Médicos do SUS podem solicitar o ecocardiograma nos seguintes casos:
- Se a ecografia obstétrica demonstrar alguma alteração no feto, como no caso de anomalia de Ebstein grave, em que já é observada uma desproporção entre as cavidades ventriculares
- Gestantes com fatores de risco, como diabetes e hipertensão
- Pacientes com histórico familiar de cardiopatia de primeiro grau
- Pessoas que utilizaram substâncias teratogênicas ou tiveram infecção viral, como rubéola, no primeiro trimestre gestacional
É também possível diagnosticar a anomalia de Ebstein logo após o nascimento do bebê.
— Uma boa notícia é que a anomalia de Ebstein é uma das cardiopatias que podem ser detectadas pelo teste do coraçãozinho, triagem realizada rotineiramente em todos os recém-nascidos entre 24 e 48 horas de vida, utilizando somente um oxímetro de pulso (aparelho que mede a oxigenação sanguínea) — exemplificou a cardiologista pediátrica.
Qual o tratamento para a anomalia de Ebstein?
O tratamento varia de paciente para paciente e conforme a gravidade do caso.
— Varia de somente acompanhamento clínico, uso de medicações, manejo das arritmias, até correção cirúrgica, com técnicas muito variadas que dependem do grau de comprometimento cardíaco — explicou Stelamaris.
A necessidade de procedimentos cirúrgicos varia de acordo com com o grau da doença e as condições de saúde do paciente.
— É uma doença muitas vezes de difícil tratamento, porque não existe uma técnica cirúrgica única que possa salvar ou curar. Existem técnicas diferentes que podem ser aplicadas em diferentes casos. Uma mesma técnica cirúrgica pode funcionar em um paciente, mas pode não funcionar em outro — resumiu Brandão.
O médico cirurgião cardiovascular brasileiro José Pedro da Silva desenvolveu, em 2008, uma nova técnica cirúrgica, atualmente reconhecida a nível mundial, que permite o restauro da válvula tricúspide. O procedimento foi descrito em sua tese de doutorado, apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Existe idade ideal para iniciar o tratamento?
De acordo com os médicos, não existe uma idade ideal para o início de tratamento, pois depende do grau da doença e dos problemas sofridos pelo paciente.
— Existem os casos mais graves, em que o bebê tem que ser tratado desde as primeiras horas de vida, já com o manejo dentro de uma UTI cardiológica especializada, com o tratamento feito pelo cardiologista, pelo intensivista e muitas vezes já requerendo cirurgia cardíaca nos primeiros dias de vida. Em outros casos, não há essa necessidade — exemplificou Brandão.
Nos graus leves, é possível que o bebê vá para casa e tenha acompanhamento médico frequente com cardiologista pediátrico.
— Os bebês podem futuramente ou não requerer um tratamento cirúrgico, mas isso é muito individualizado. Independentemente de cirurgia ou não, eles sempre vão precisar de um acompanhamento de um profissional, que é o cardiologista pediátrico e, depois da idade adulta, o cardiologista — explicou o médico do Hospital da Criança Santo Antônio.
Quais problemas podem acometer o paciente?
Em pacientes cujo grau da doença é elevado, se houver demora para o diagnóstico da doença e o início do tratamento, o paciente pode sofrer uma série de complicações cardíacas e respiratórias e até mesmo correr risco de vida.
Já nos casos mais leves de anomalia de Ebstein, o paciente pode levar uma vida convencional e necessitar somente de acompanhamento clínico e de medicamentos para reduzir os problemas gerados pela doença.
—Há casos em que os pacientes apresentam graus variados de diminuição do oxigênio sanguíneo e cansaço, que pode ser em repouso ou somente no exercício. Podem ocorrer palpitações (arritmias), embolia sistêmica (obstrução da passagem sanguínea) e morte súbita — enfatizou a cardiologista pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
— Quando a gente mede no dedinho a oxigenação do sangue, que em uma pessoa normal seria próxima de 100%, essas crianças podem ter oxigenações muito baixas, abaixo de 80% , 70% ou até menos que isso — acrescentou Brandão.
Existe cura?
Existe tratamento para a anomalia de Ebstein, mas nem sempre há cura. Existem exemplos de pacientes cujo grau da doença é elevado, que se submeteram a uma ou mais cirurgias e conseguiram corrigir os problemas na válvula tricúspide. Já outros, mesmo após a realização dos procedimentos cirúrgicos, ainda são acometidos por problemas cardíacos e respiratórios.
No caso de Maria Guilhermina, filha de Juliano Cazarré, ela já passou por pelo menos cinco procedimentos cirúrgicos.
— Os bebês acometidos com a doença precisam de um bom pediatra ou cardiologista pediátrico, e nos casos onde haja necessidade de cirurgia, logicamente, um ótimo cirurgião cardíaco que possa fazer a correção, ou, se não for possível fazer essa correção, cirurgias paliativas que melhorem a condição clínica dessas crianças — destacou o cardiologista pediátrico e fetal Marcelo Brandão.
Produção: Filipe Pimentel